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A magia da Criadora

Nós nunca deveríamos ter criado aquela história.

Eu jamais deveria tê-los feito sofrer, as coisas que imaginamos e escrevemos naquelas páginas era para ser algo divertido para duas adolescentes com hormônios à flor da pele  passarem o tempo, e não sermos os monstros da história de duas crianças. Os dois irmãos que eu passaria a amar mais que a mim mesma, eu os fiz se transformar nas criaturas que eles mais odiavam. 

O meu eu inocente, sem conhecimentos das barbaridades que lhes aconteceriam chegou em casa, um apartamento minúsculo para encontrar Ester debruçada, escrevendo ferozmente no seu notebook roxo, ela estava editando a história que criamos anos atrás.

Como toda boa história deve começar, com chamas, caos, gritos e sangue. Foi assim que começamos:

Mais uma noite que  não consegui dormir, meu irmão mais novo não sabia das coisas que estavam acontecendo e caiu  feito pedra no travesseiro, ele não costumava ter medo, entretanto, esses últimos dias, Claus tem dormido comigo, ele sabe, sente que há algo lá fora e isso o fez assumir minha cama como sua. As mãozinhas dele se agarram a mim com tanta força que se eu não o conhecesse diria que ele estava acordado. 

 Na primeira luz da manhã, nós sairemos  de Palmares, coço minha cabeça e me viro de lado, nossa trouxa, minha e de Claus, jazia encostada ao lado da porta, as nuances da luz vacilando no tecido surrado. O azeite da lamparina em breve acabaria, a luz se encontrava fraca o suficiente para eu nem pensar em piscar. A janela  fechada, com tábuas por fora e por dentro firmemente pregadas, uma túnica grossa e um cobertor quentinho não diminuem o frio no meu âmago.

Apertei a coberta tentando parar o tremor nos meus dedos, duvidava que tão logo conseguiria me livrar das olheiras profundas e escuras. Eles estavam chegando e eu não queria estar.

Em algum momento da noite eu cedi ao sono, minhas pálpebras pesadas se fecharam e eu mergulhei em um descanso sem sonhos. 

Uma urgência me atacou e eu meu corpo me puxou para despertar, creio que fora meus instintos mais básicos, predadores estavam perto. Abri os olhos já sabendo que eles estavam lá. As criaturas da noite. Os coaxos  dos sapos ecoando pela noite, grilos churriando por todos os cantos possíveis da pequena fazenda  e até o ranger recorrendo do chão de madeira cessou.  Encontrei os olhos muito arregalados de um Claus imovel que estava como um macaco aranha em cima de mim. 

 — Eu tô com medo, maninho — Claus sussurrou para mim e um baruto ao longe nos assustou, ele enterrou o rosto no meu peito e eu queria ter alguém para recorrer também. Nós estávamos completamente sozinhos na casa, eu fiz o que pude durante o dia, dei um jeito na janelas frágeis, encobrindo-as com camadas tábuas, a grade de ferro que nosso pai usaria para outros fiz jazia como proteção extra na entrada principal, engoli em seco. Nada daquilo pararia as criaturas. 

Bati em suas costas, tentando acalmá-lo quando as minhas próprias mãos se moviam por conta própria, num tremor sem interrupções,  e não ousei dizer que estava tudo bem. 

O segundo foi o mais alto que já ouvira nas últimas noites. 

Levantei-me  da minha cama e coloquei Claus em pé em cima das nossas cobertas. Olhei para seus olhos azuis, com as pupilas dilatadas, segurei firme em seus pequenos ombros para que ele não me escalasse, seus olhos se encheram de água com puro medo. 

— Claus, eu preciso que faça o que eu mandar, está me entendendo?— perguntei me abaixando um pouco para que pudesse olhá-lo face a face.

Claus balança a cabeça e se encolhe com os barulhos que, cada vez mais,  se aproximam da vila.  Nunca ficaram tão fortes e tão próximos. E eu faria o que minha mente gritava para mim: fugir dalí sem olhar para trás. 

— Nós vamos sair pelas portas do fundo, e por razão nenhuma olhe para trás, me prometa que não vai chorar até amanhacer —  falo trocando de roupas o mais rápido que posso, sem precisar pedir que Claus faça  o mesmo, pego o seu chapéu, que Clarissa lhes deu de presente, e coloco firmemente sobre seus cabelos. 

— Como um jogo? — ele perguntou e eu acenei em concordância  —  Mas papai e mamãe e Clarissa… —  ele tenta argumentar. 

—  Ele me disse para cuidar de você, e é isso que eu vou fazer. 

 A lamparina apagou e levou todo o resquício de coragem que eu tinha com ela, não me preocupei em reabastecer o azeite, sabendo exatamente onde estavam, caminhei a me agachei para pegar três moedas de ouro que nosso pai deixara no esconderijo sobre o piso de madeira.  Enfiei as rodelas no bolso e paralisei. 

Uma palavra gritada que perdeu  o significado com a distância, se fez ouvida, o som  feminino estridente ecoou pela noite. A voz era conhecida, a ouvimos todos os dias, reclamando sobre dormirmos demais ao puxar nossas cobertas e nos arrastar para a cozinha. A mesma que cantava canções de ninar para Claus,  por mais que ele reclamasse que já era um homem, com seus sete  anos de idade, ele ainda adormecia com sua voz melodiosa.

Agarrei a mão de Claus e corremos rumo à porta dos fundos, os cômodos da casa pareciam criar vida e formas estranhas, a ausência da lamparina e meu medo me deram essas alucinações. Não tínhamos tempo nem de avisar nosso vizinho mais próximo.  Raul e os demais arrombaram de mim quando confidenciou sobre as criaturas da noite que dizimavam três vilas, deixando corpos sem vida e desfigurados para trás. 

Eles se confiaram demais em um rei que Eununco que não poderia nem ter seus próprios filhos.

Já na porta ele quase nos faz cair se segurando na maçaneta, eu bati minha cabeça na grade devido ao solavanco para trás, minha vista turvou e eu rezei a todos os todos os deuses que não me deixassem vacilar, se eu caísse nós dois morreríamos.. 

— Mamãe, era ela — Claus olha para trás e dessa vez é a voz da nossa irmã, Clarissa, pedindo socorro. Gritos diferentes se misturam e  rugidos seguidos de clamores de dor vinham da vila — Nós precisamos voltar — ele se desprendeu do meu agarre e se virou para correr até onde eu sabia que não voltaria mais. 

Meu irmão mais novo era muito mais corajoso  que eu, que tinha o dobro de sua  idade, eu queria ir lá, mas meu medo não deixou, as criaturas que os mercadores sussurrava que estavam atacando as vilas estavam aqui. Ninguém se importou com os rumores e os dias passaram. Nossos pais foram à capital e deveriam chegar em cinco dias. Clarissa estava mal e conseguir horário com um bom médico não era fácil. 

— Não são eles, eles só  virão no dia dos Santos — respondi meio chiado meio gemido, eu não falei aquilo para meu irmão, disse a mim mesmo, tentando me convencer que não eram eles. 

— Me larga, me solta — Claus tentou me chutar, eu o ignorei, grudei em seu braço e o arrastei para a floresta, tomando rumo contrário de onde viam todos aqueles gritos. Eu já ouvira as lamúrias que as mulheres entoavam ao ter bebês, e esses gritos eram muito piores — Eu vou te odiar para sempre! 

Eu corri e arrastei Claus, que chorava e esperneava, ele me mordeu várias vezes, mas eu não parei, não parei até que meus pés latejavam o suficiente, nós não tivemos tempo de calçar nossos sapatos, certamente haveriam muitos cortes na sola dos nossos  pés, eu não os sentia, estava apavorado, correndo sem rumo, deixando que minhas pernas ditarem o caminho.

A lua era a única que me dava um norte por onde passar, inspirei  cheiro de fumaça, uma densa cortina cinza envolvia a mata que cercava Palmares,  parte dela chegou até nós e me arrependi de olhar para trás, nossa vila inteira queimava, ouvi gritos de socorro e até de súplica, súplica para poupar suas vidas e então suas palavras eram cortadas. Inacabadas.   

Algo quente desceu pelas minhas pernas e não consegui me sentir envergonhado por ter mijado nas minhas calças, Claus vomitou algumas vezes, mas não paramos. Ele era minha única tábua de salvação, era uma criança, mas eu não estava sozinho. Ele estava alí comigo. 

Não parei até que o sol apareceu, nós encontramos a estrada principal e desabamos. Desmaiamos no chão.  

Queria muito continuar dormindo, eu não desejava acordar. 

— Pobres crianças, que os deuses os conforte — ouvi ao longe as palavras de pena. 

— Eles são os únicos sobreviventes dos ataques, era melhor que tivessem morrido do que se tornam órfãos — as palavras dessas pessoas poderiam ser duras, mas eu sabia melhor. Eles estavam certos. 

—  Oh, querido, você já acordou?... esse rapazinho que foi encontrado com você é seu irmão?

— Não. 

— Entendendo, você consegue identificá-lo? 

— Não.

Sua resposta cheia de desprezo e mágoa foi a única coisa que me lembro de ter ouvido antes de ser puxado pelo cansaço. 

Levantei-me e sentei no leito do hospital, as janelas abertas, cortinas esvoaçando, deixando a brisa da praia entrar e refrescar o quarto, o dia nublado, supunha que o sol fosse embora em poucas horas. Um homem alto e grisalho, em pé, ao lado da cama de Claus, segurando uma bengala que parecia cara, usando roupas finas conversava calmamente com Claus. 

— Sinto muito por vocês, crianças, se sobreviverem até a maior idade, me procurem. Tenho muitas coisas a dizer sobre as criaturas. Com um pequeno preço, é claro — ele se inclinou para trás, totalmente ciente de que eu estava ouvindo, mesmo tendo estado de costas para mim. Ele entregou um cartão para Claus e outro para mim. 

Nós sobrevivemos, mas o preço que aquele senhor de aparência tranquila exigiu  para podermos entrarmos em suas fileiras e caçar aqueles monstros malditos custou nossa alma. A minha covardia me tirou a dádiva da morte, minha família e o meu irmão. 

Ele cumpriu o que disse. Me odiar para sempre.

"Sempre" era um tempo consideral quando se era um maldito demonio sugador de sangue.

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