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Criando o homem perfeito

Minha melhor amiga me olha por um longo tempo depois de ler o primeiro capítulo que criei, a ideia inicial não era essa, eu só… derramei toda maldade que eu estava sentindo naquele papel e criei isso. As palavras fluíram sem muito esforço, precisava colocar para fora o que se encontrava entalado.  

— Não gostou? 

— Está bom, realmente bom.

— Por que está com essa cara então? — perguntei desconfiada. 

— É a única que eu tenho — ela ri —  Falando sério, você  matou  toda a família deles! Muito cruel. Para sua sorte são apenas personagens   — respondeu abrindo seu fichário, agora era  a minha vez de avaliar seu trabalho, nossas histórias se complementam e eu estava encarregada de criar um passado sombrio para um ser sombrio e sarcástico. 

Peguei o fichário que Ester me estendeu, totalmente desconfiada da cara que ela fazia, cheia de expectativa e levemente tendenciosa. O cateter nasal dela, nem se quisesse poderia esconder. 

— Eu vou me arrepender de ler isso — murmuro para mim mesma. 

— É claro que não vai — o sorriso condescendente dela não me engana nem um pouco. 

—  Você é muito sem vergonha Ester, não quero mais escrever essa história! — Grito sentindo minha face queimar, Corada seria um elogio, eu era a personificação da cor vermelha. O que diabos  minha amiga escreveu? era um livro ou um porno escrito?!

— Meninas, façam silêncio! — Antonia nos chama atenção do outro lado da biblioteca de Santa Bárbara, de onde está sentada, atrás de uma montra de livros, o óculos, na ponta do nariz,  e  cabelos tão tensionados que desconfio que esse seja o motivo dela ter alopécia. 

— Não seja rabugenta, Antonia, nós podemos morrer a qualquer momento e você vai chorar nos nossos caixões — Ester faz um gesto obsceno para a bibliotecária, que responde à altura. É um tipo de rito que ambas têm. Isso acalma o gênio sanguíneo que elas têm. 

— Pequena bastarda, não diga besteria, vocês viverão o bastante para cuidar de mim na velhice  — Antonia volta ao trabalho nos ignorando. 

— Ela totalmente nos ama, essa oportunista  — Tessa confidência, como um segredo. Reviro os olhos prosseguindo na leitura. 

Eu não sou tão inocente, As caixas de doações de livros chegavam  e nós ajudamos Antonia a separar, higienizar, catalogar e realocar por gênero. Achamos muitas revistas explícitas entre os livros, nunca folheei, mas vi capas com homens muitos nús, sozinhos ou acompanhados no ato. A primeira vez que vi foi um choque, era uma coisa esquisita, parecia muito uma calabresa, mas com alguns detalhes que eu me policio para não lembrar.

 — Você é muito talentosa, está profissional, muito bom. Não vou mais escrever com  você… oh! — parei de falar, absorta na descrição, ela era muito talentosa, exatamente da forma que eu descrevi,  ela os personificou, ficou até melhor do que eu imaginei. 

— Tive que dividir o bonitão  em dois, as personalidades que me deu se anulam, por isso pedi para que escrevesse  o prólogo com dois irmãos — explica naturalmente. Minha cara estava engraçada depois de ouvir essa barbaridade.  Ela  não aguenta e dá uma risada alta cheia de vida que logo  abafa com as mãos.

Nós escrevemos como se nós fossemos as personagens principais, eu não ia ficar com dois irmãos, isso era, tipo, um pecado. 

— Sinceramente? pra mim já deu, voce não tem medo de ir para o inferno? — levanto, tirando a haste metálica com oxigênio que ela precisa para seu cateter. 

— Não, estou precisando um bronze inclusive, e você também. Mari, por favor. 

— Não e não. Sabe que não sou boa nisso. Tenho certeza que será o melhor livro que já li, quando terminar de escrever ele. 

Estava sendo má com minha melhor amiga, mas só iria atrapalhar ela, ela tinha talento, não eu. Sem cabeça para usar a imaginação, aquela dorzinha do luto  no peito não passava, suspeitava que nunca fosse passar, messes se passara. Sem conseguir dormir, tendo pesadelos.

                                                                 🇧🇷

Alguns anos depois. 

Alonguei meus braços doloridos tomando cuidado para minhas marcas não aparecerem no processo, lojas atacadistas acabavam com as  operadoras de caixa.  Nunca foi meu sonho de infância, mas pagava as contas. Me apoio no caixa para dar uma olhada na fila, estava gigante e eu precisava fazer xixi e nosso trocador desapareceu, meu empacotador tinha ido almoçar.  

— Boa tarde! — Saudei o cliente. 

Nem me permitir prestar atenção na reclamação murmurada. Concentrei em passar as caixas pesadas. Minhas mãos congelariam se eu não desse um tempo. No segundo fardo de congelados ́ precisei parar abruptamente, torci a merda da minha mão, fecho os punhos de uma vez tentando não fazer um escândalo, eu precisava me manter na linha. Esfreguei no uniforme  meus dedos esqueléticos que não tinham um pingo de carne, e o ar condicionado potente da loja não ajudava. Doía como uma cadela. Comprimi meus lábios, evitando que algum xingamento os deixasse.  

— Vai demorar aí ou tá difícil?

— Me desculpe, acho que torci minha mão, os pacotes estavam muito pesados  — acenei para os pacotes de carne congelados. 

— Isso não é problema meu — Me gritou e eu afastei um pouco com sua aproximação, os demais que esperavam na fila começaram a reclamar e o homem se validou disso  — Saia daí, deixa que eu mesmo passo minhas merdas — o cliente me agarrou pelo colarinho do meu uniforme querendo me puxar da cadeira na marra. 

Eu estava cansada, tão cansada. 

A maioria dos dias era assim, eu conseguia me sair e não levar para o pessoal, mas hoje… hoje era meu aniversário, o dia em que fui deixada para adoção. Nuca faria isso com um filho, eu o amaria, o protegeria com minha  vida! 

Qual o motivo de uma mãe abandonar o filho? Tinha algo errado comigo, além do óbvio, esse poderia ser o motivo. Era pálida demais, minhas veias eram visíveis e pretas no tronco tentando descer pelos ombros, como os ossos proeminentes, marcando, sem o mínimo de esforço, a pele. Uma caveira ambulante, vamos lá, tratamos um cadáver bem, sejam educados senhores clientes. 

Querem uma doença de brinde também? 

 Respirou fundo querendo controlar minhas emoções. Já bastava o mundo me julgar, ter uma mini Mari dentro de mim aceitando tudo isso ... tendo o inimigo totalmente dentro do meu corpo remoendo e sussurrando frases amarguradas já era demais. 

 Apenas respire, faça seu trabalho e ignore esse cliente filho do cão. 

— Que  merda é essa? — percebo tarde demais que meu lenço ficou frouxo e ele estava vendo tudo. Tento cobrir minhas manchas de nascença no pescoço  apertar o laço, não consigo ele é mais forte que eu.   — Não adianta esconder essas coisas nojentas no seu pescoço, eu já vi. Como um supermercado contrata uma pessoa dessas? — diz se virando para a mulher que o acompanhava. 

— Deixa para lá querido, vamos em outro caixa — a mulher me dirige  um olhar de desculpas e tenta puxar ele, o homem careca abruptamente retira as mãos dela, empurrando-a  e começa a falar muito mais alto.  

— Onde está o gerente dessa incopetente fingindo que torceu a mão  só para não trabalhar!? — Ele grita e as pessoas ao redor param o que estão fazendo para ver o desenrolar da história, é muito azar para uma pessoa só, eu precisava ter um desempenho exemplar para ser gerente junior, já que o atual iria para outra filial.

Nem precisa chamar, o gerente já  marchava a caminho  om aquela máscara de sorriso irrevogavelmente falso. 

O gerente só faltou ficar de joelhos e, praticamente, me obrigou a humilhação das desculpas. Depois que o idiota foi embora com um cupom gordo de desconto eu ainda ouvi mais reclamações:   

— Quantas vezes já falei para cobrir essa coisa no seu pescoço? Estamos em um mercado, seja higiênica. E pare tentar justificar, peça desculpa aos fregueses e evite escândalos, como posso recomendá-la ao cargo se não consegue lidar pacificamente com os clientes — ele seriamente estava colocando minha promoção em jogo? Pois eu não ligava que o cliente sempre tinha razão. Deveria pedir desculpa por nascer também? Sorrio com o pensamento repentino: Tessa no meu lugar teria quebrado a cara deles. A vontade de fazer o mesmo não faltou. Mas eu não posso perder essa promoção.Não posso! Antonia precisa de mim!

 — Está certo, não sei onde eu estava com a cabeça, prometo que não vai mais acontecer — repito a terceira vez esfregando meus olhos, ele ameniza a feição e relaxa os ombros pensando que eu estou prestes a chorar  — Torci a mão, está doendo muito e começando a inchar — aponto para a bolo que está se formando. 

— Tudo bem, está liberada, vá ao hospital, não esqueça de pegar atestado para a tarde de hoje — eu ranjo os dentes, mas fico calada, não tem como ele manipular quantos dias de atestado eu vou pegar, afinal só um médico pode avaliar quantos dias é o necessário.  

Antes que eu fecha a perto meu gerente  diz o que eu temia: 

— Terei que repensar sua promoção Maria.

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