Lia nunca poderia imaginar o quão drástica seria a mudança que a vida lhe reservaria. Desde o seu nascimento, o destino a colocou em um caminho cheio de desafios. Cresceu protegida, cercada pelo carinho e atenção de sua mãe, mas, ironicamente, sempre foi exposta à crueldade do mundo. Desde pequena, testemunhava decisões insensatas de pessoas ao seu redor, atos de egoísmo e destruição. Embora, na época, não compreendesse completamente o significado do que via, essas memórias ficaram gravadas em sua mente. Com o tempo, ela aprenderia a interpretar cada cena, a compreender a verdadeira face do mundo.
Ainda muito jovem, Lia já possuía uma visão realista da vida. Foi forçada a amadurecer cedo, a encarar a realidade sem ilusões. E quando teve a oportunidade de tomar suas próprias decisões, acreditou estar preparada. Aos treze anos, começou um novo capítulo de sua vida ao ser transferida para um colégio com melhor estrutura e recursos. A chance de construir um futuro promissor estava ao seu alcance, mas o destino tinha outros planos. Três meses depois, sua mãe começou a apresentar sinais de uma doença aparentemente comum. No entanto, enquanto Lia estava mergulhada nos estudos, subestimou os sinais que indicavam que a situação era mais grave do que parecia. Nove meses depois, no início do novo ano letivo, a tragédia aconteceu. Durante um passeio no parque, sua mãe desmaiou ao seu lado. O desespero tomou conta de Lia enquanto ela gritava por socorro. A ambulância chegou rapidamente, mas, mesmo na emergência da situação, sua mãe tentou acalmá-la com um sorriso fraco e palavras gentis. Lia acreditou que tudo ficaria bem. No hospital, disseram-lhe para voltar para casa e pegar algumas roupas para a estadia de sua mãe na recuperação. Mas, ao retornar, recebeu a pior notícia de sua vida: sua mãe não resistira. O choque a atingiu como um golpe seco no peito, um vazio arrasador tomou conta dela. Lia não conseguia comer, dormir ou encontrar consolo. As noites eram tomadas por pesadelos e despertares em pânico. Sua casa, antes um lar acolhedor, agora era um lugar vazio. Sem mais ninguém para cuidar dela, Lia foi entregue ao único parente vivo: seu tio. Um homem frio, de poucas palavras, que há anos mantinha uma relação distante com sua irmã. Mesmo com a indiferença entre eles, ele não a rejeitou. Sem demonstrar afeição, a acolheu e garantiu que suas necessidades básicas fossem supridas. Não era um homem carinhoso, mas também não era cruel. Seu jeito fechado dificultava a criação de laços familiares, mas ele reconhecia a dor da sobrinha e tentou, de sua maneira reservada, oferecer algum tipo de apoio. Nos primeiros meses, Lia não conseguiu retornar aos estudos. Sua mente estava em ruínas, incapaz de se concentrar. Seu tio, compreensivo, não a pressionou. Nos dias vazios que se seguiram, ela passou a se refugiar nos livros da biblioteca dele. Durante essas leituras silenciosas, seu tio, às vezes, sentava-se ao seu lado com um livro próprio. Não trocavam muitas palavras, mas a companhia mútua servia como um conforto silencioso. Com o tempo, essa rotina se tornou a base de um vínculo discreto, mas genuíno. Ele nunca lhe ofereceu palavras de carinho, mas a permitiu encontrar um espaço seguro para se recuperar. Com o passar dos meses, Lia começou a retomar sua rotina. Voltou a estudar, embora ainda carregasse o peso da dor. A ausência de sua mãe nunca deixou de ser uma sombra constante, mas ela aprendeu a conviver com a saudade sem que as lágrimas fossem inevitáveis. Se antes sua vida era preenchida apenas por estudos, agora ela também encontrava tempo para se divertir com suas amigas. No entanto, sua relação com os homens sempre foi marcada pela desconfiança. Fora seu tio, ela nunca conseguiu confiar em nenhum. As decepções acumuladas durante a adolescência apenas reforçaram essa barreira. Muitos se aproximavam apenas por interesse, seja para tirar vantagem de sua inteligência ou por intenções menos nobres. Isso a levou a erguer muros ao redor de si mesma. Lia se destacava nos estudos e também em atividades físicas que exigiam precisão e estratégia. O arco e flecha tornou-se seu refúgio, um esporte que lhe proporcionava uma sensação única de controle. Era um de seus poucos momentos de verdadeira tranquilidade, momento em que podia relaxar e apenas se concentrar no seu objetivo, O alvo. E assim que sempre deveria ser, até que, certo dia, algo inesperado aconteceu. Concentrada no alvo, mas como pensamentos em sua mãe, ela respirava fundo, preparando-se para atirar, como já havia feito dezenas de vezes. Mas, de repente, sentiu sua respiração se tornar instável, seu corpo não respondia como deveria. O pânico se instalou enquanto tentava recuperar o controle, mas, em um impulso, disparou a flecha. No instante em que a soltou, uma sensação estranha percorreu seu corpo, como se uma energia fluísse diretamente para o projétil, ela fechou os olhos assustada. Antes mesmo de ver o alvo, ela sabia que tinha errado. Caiu de joelhos, ofegante e confusa, os pensamentos não a deixavam, seu choro foi inevitável, assim permaneceu jogada e chorando até se acalmar um pouco. Ao abrir os olhos novamente, notou algo estranho em seu arco: uma marca escura, como se tivesse sido queimada. Olhou para o alvo e percebeu um buraco nele. A flecha havia atravessado completamente, ela se levantou, andou até poder ver a flecha. Lia surpresa, encarou a flecha cravada na parede, o peito subindo e descendo em respirações descompassadas. O que havia acabado de acontecer? Sua mente tentava buscar uma explicação lógica, mas nada fazia sentido. Seu corpo ainda tremia, e seus dedos formigavam como se tivessem segurado eletricidade pura. O medo e a euforia travavam uma batalha dentro dela. Teria sido apenas um delírio? Um erro de percepção? Tentou se convencer de que sim, mas algo dentro dela sabia a verdade. Algo havia ativado. Algo que sempre esteve ali, oculto, esperando o momento certo para se revelar. Lia tinha dezesseis anos e acabava de despertar seu Ortus. Nos meses seguintes, dedicou-se a entender o que havia acontecido. A princípio, foi um processo frustrante. O que antes fora um acidente, agora parecia impossível de repetir. No entanto, sua determinação era inabalável. Com muito esforço e prática, conseguiu reproduzir o feito. Seu controle passou de bruto para refinado, tornando-se mais preciso. Cada sessão de treino era uma busca incessante por aprimoramento. Seu tempo passou a ser dividido entre os estudos e os treinos, deixando pouco espaço para sua antiga vida social. As amizades foram se tornando distantes, os romances inexistentes. Apenas três coisas importavam: estudar, treinar e buscar respostas. A internet, no entanto, não fornecia nenhuma pista sobre o que havia despertado dentro dela. Lia sentia que estava entrando em um território desconhecido. E então, um dia, enquanto caminhava distraída, perdida em seus pensamentos, aconteceu o inesperado. Um carro desgovernado surgiu de repente, vindo em sua direção. O grito das pessoas ao redor foi o único aviso que teve. Seu corpo reagiu instintivamente, ativando sua habilidade recém-descoberta. Mas era tarde demais. O impacto do carro foi violento. O som da batida ecoou pela rua. Lia caiu, visão embaçada, estava assustada, em choque, ela estava no chão, sangrando…A busca pela perfeição é uma jornada cruel. Quando se tenta algo diversas vezes e continua a falhar vez após vez, parece totalmente incompreensível, e o desespero se instala. Cada tentativa frustrada parece sussurrar que nunca será bom o suficiente, porque a dificuldade continua a aumentar exponencialmente. O caminho é repleto de dores, angústias, decepções e traições. Alguns desistem. Outros persistem. E alguns poucos desafiam todos os limites para se tornarem algo maior. Noah pertencia a esse último grupo. Mas, por mais que superasse obstáculos, havia uma área em que sempre fracassava: o amor. Ele nem sempre foi forte. No início, era apenas um garoto frágil, sem coragem ou entusiasmo para aprender qualquer coisa. Sofria na infância, como tantas outras crianças esquecidas em um orfanato sem recursos, ele também não era muito inteligente, não se diferenciava em praticamente nada de qualquer outra criança daquele lugar. Chorava, sentia fome, era alvo dos mais velhos, tudo que ele p
Noah começou pedindo esmolas enquanto não encontrava uma forma de conseguir dinheiro suficiente para sobreviver. Não conhecia nada de verdade, exceto o que tinha lido em livros, mas nem sempre se pode confiar no que se lê. Então, buscou conhecimento nas ruas, observando tudo ao redor, procurando comida onde podia e dormindo em becos, protegendo-se da chuva da forma que fosse possível. Para seu infortúnio, entrou em uma área que não deveria. Aqueles que controlavam o local ficaram visivelmente irritados com sua presença. Poderia ter ido embora calado e seguro, mas seu erro foi xingar um homem com o pavio extremamente curto. O sujeito o ameaçou e correu em sua direção. Desesperado, Noah também correu. Era rápido, mas, comparado a um adulto, não o suficiente. Ao ver uma chance, virou em uma esquina para tentar se esconder, mas era tarde demais: havia entrado em um beco sem saída. O homem o alcançou com facilidade, percebendo que Noah estava encurralado e sozinho, foi então que saco
Noah não era um homem de agir sem pensar, mas naquele momento ele o fez. Impulsionado ao máximo por sua habilidade, correu em direção à moça com uma força de vontade e determinação que dominavam todo o seu corpo. Sua velocidade era impressionante, e sua visão mal conseguiu acompanhar os próximos movimentos. Antes do impacto, no último instante, Noah saltou, seus braços se fechando ao redor dela. O mundo girou quando se lançaram para longe, o rugido do carro passando tão perto que ele sentiu o deslocamento do ar. Então, um estrondo, o carro se espatifou contra uma árvore, o som do impacto foi devastador. Lia estava ensanguentada, seus braços e pernas tinham arranhões do impacto contra o chão. Noah sentiu sua energia se espalhar, pronta para protegê-la… mas algo resistiu. Como uma barreira invisível, uma força estranha anulou sua habilidade, deixando-a vulnerável no último segundo. Felizmente, seus ferimentos não eram graves. Noah, por outro lado, mal conseguia se manter de pé. Nunca
Lia estava tão imersa em suas próprias perguntas e dúvidas que se esqueceu de explicar como estava praticamente intacta, considerando seu corpo aparentemente frágil. — O quê? Do que está falando? – disse Lia, forçando um sorriso nervoso enquanto desviava o olhar. – Deve ter batido a cabeça muito forte, mas a Sophia disse que estava bem. A Sophia é a médica dona desta casa, caso esteja se perguntando. — Não estou interessado. Quero saber sobre você. Já testei embutir meu poder para proteger outras pessoas algumas vezes. Às vezes funcionava bem, outras nem tanto. Mas nunca senti meu poder ser rejeitado. Então, sem drama ou teatro. Apenas me diga... Lia permaneceu calada. Seus olhos buscaram os de Noah, mas tudo o que encontravam era o peso de um julgamento silencioso. Sentia o corpo rígido, como se cada célula temesse dizer a coisa errada. Era péssima em mentir quando pega de surpresa. Se tentasse, talvez Noah fosse embora sem dizer nada. Ainda assim, tentou mudar de assunto.
Os próximos dias foram bem planejados. Noah alugou uma pequena casa afastada da cidade para que ambos pudessem usar e demonstrar suas habilidades sem o risco de serem vistos. Lia tirou uns dias de descanso de seus estudos para focar. A princípio, sentiu-se estranha, até um pouco triste, nunca havia negligenciado seus estudos de propósito. Mas, naquela ocasião, os dias passavam tão rápido que ela mal tinha tempo ou disposição para abrir um livro. Cada dia, um aprendia um pouco das habilidades do outro, ajudando-se mutuamente. As falhas e erros levavam a muitos sorrisos e brincadeiras, apesar do temperamento arrogante de Lia, que começava a aparecer. Noah, no entanto, lidava bem com isso. Já estava acostumado aos mais diferentes tipos de personalidade ao longo da vida. — O que vamos tentar aprender hoje, Noah? — Eu realmente não sei. Já treinamos intensamente por cinco dias desde que chegamos aqui… Estou um pouco cansado. Não podemos apenas dormir mais hoje? — Bom, tudo bem. Eu vou
Os dias seguintes passaram tão rápido quanto os anteriores. Vivendo juntos, começaram a se acostumar com as manias um do outro. O treino já não era tão intenso como antes, pois Lia parecia estar exausta. Ela não tinha forças para manter o mesmo ritmo, e Noah não entendia o motivo. Ele preparava refeições nutritivas o suficiente para treinarem todos os dias, mas supôs que fosse apenas por conta do período dela. Sem querer causar constrangimento, preferiu não perguntar. Apenas questionava se Lia queria treinar e em quais horários, mas ela nunca explicava o porquê de sua fadiga. Lia já não dormia direito havia várias noites. A falta de descanso afetava seus treinos e seu humor. Como dormiam em quartos separados, Noah nem desconfiava do real problema. Ela se sentia perdida, como se estivesse presa em uma tempestade de emoções que não sabia nomear. Cada vez que tentava entender, acabava mais confusa e frustrada consigo mesma. Já havia se apaixonado antes, mas su
No dia seguinte, Lia e Noah deveriam estar completamente recuperados. Lia abriu os olhos como quem desperta de um pesadelo. Assustada, levantou-se bruscamente, tentando entender onde estava. Ao notar que não era sua cama, um calafrio percorreu seu corpo. Seu peito subia e descia rapidamente, como se lutasse para conter uma ansiedade repentina. O quarto estava silencioso, mas sua mente era um campo de batalha. Pensamentos colidiam violentamente. Olhou ao redor. Os lençóis estavam levemente bagunçados, o cheiro sutil de Noah ainda pairava no ar, misturado ao seu. Com algum esforço, lembrou-se do que fizera na noite anterior. As memórias vieram de forma abrupta. Levou a mão aos olhos, desacreditada. Processar aquilo não era fácil, ainda mais despertando tão bruscamente. Mas, mesmo em plena consciência, ela não saberia como reagir. — Não acredito... Não deveria... Por que fiz isso? Eu dormi aqui? – murmurou, passando as mãos pelo corpo para se certificar
Dizem que todas as pessoas merecem uma segunda chance. Noah também acreditava nisso com fé silenciosa, quase ingênua. Mas, em contrapartida, havia uma pergunta que o assombrava: onde está a segunda chance daqueles que morrem em vão? Era uma dúvida genuína e dolorosa. A verdade é que todas as almas têm a chance de retornar aos corpos, uma espécie de segunda oportunidade. No entanto, não é simples. Na imensa maioria das vezes, ao tocar o outro lado, ao vislumbrar a entrada… o brilho não era apenas luz. Era a ausência de dor, o silêncio da paz, o eco de um abraço nunca recebido. Ali, o tempo não existia. Só havia completude, ao sentir a felicidade verdadeira, ao ver o esplêndido lugar de farturas e sem horizontes... a alma não deseja voltar. Por que retornaria ao caos? À fome, à doença, à guerra, à miséria, à dor e à solidão desse lugar chamado "planeta"? Além disso, em muitas ocasiões, mesmo que a alma tente voltar, o corpo já não tem salvação. Está morto, sem con