A noite estava alta quando Sara chegou em casa. Esgotada mental e fisicamente, adentrou ao apartamento preferindo a escuridão do ambiente. Acender as luzes, talvez trouxesse os problemas que ela preferia manter escondidos. Caminhou com cautela até o sofá e jogou o corpo cansado sobre ele. A luminosidade da rua criava sombras nas paredes brancas. Ela ergueu a mão e visualizou o desenho formado pelo gesto. Dedos longos e perfeitos. Uma inverdade. Uma vez que não necessitava enxergar as unhas para saber que estariam sujas de terra, assim como as roupas.
Quando fugira da Tisiros, fora para o único lugar bem-vindo: o orquidário. Lá dentro, cercada pelas plantas tentou bloquear as emoções e mergulhou nos afazeres. Aceitou a energia emanada das flores e encheu o coração de esperança. Chorou quando não conseguiu mais controlar as lágrimas e sofreu com a mesma intensidade que revolvia a terra. No entanto, mesmo após horas no local que mais lhe trazia paz, ela ainda se encontrava perd
Sara acordou com o toque insistente do celular. A música alta preenchia a sala silenciosa, aprofundando a dor de cabeça. Os músculos também demonstravam o desagrado por ter dormido no chão. O dia tomava forma, através do sol vindo da janela aberta. Aos passos trôpegos, levantou-se sem preocupação com a toalha caída ou o corpo gelado. Caminhou até a roupa da noite anterior e buscou o aparelho no bolso da calça. Mesmo com os olhos inchados pelo choro, identificou o intruso. Castelo havia lhe telefonado algumas vezes, assim como Igor, Jonas e Teresa. Ótimo, virei o assunto do momento, ela balbuciou. Recusou a ligação e enxergou seu reflexo na tela preta da televisão. Sua imagem não estava melhor do que a bagunça que ainda a atormentava. Havia alternativas, ela imaginou. Continuar com a lamentação, fugir de tudo ou de todos, ou seguir o conselho do avô. Exaurida e sem forças para chegar a uma conclusão saudável, optou por um banho. Após um asseio rápido, regresso
Sara passou o dorso da mão pelo rosto banhado em lágrimas. Percebeu a mancha negra deixada pelo rímel. À prova d’água uma ova! O pensamento desconexo com a ocasião fazia parte do seu mecanismo defesa. Quando menina, principalmente nos momentos onde broncas lhe eram dirigidas, a técnica a carregava para tantos mundos imaginários que, às vezes, sua mãe necessitava de algo mais forte do que um leve som de pigarro, para chamá-la de volta à realidade. Exatamente como o advogado à frente fazia. — Menina Sara, está prestando atenção? — A intimidade condizia com os anos prestados à família Tisiros. Duas gerações desfeitas num piscar de olhos. Na verdade, em vários piscares, sendo mais honesto. Ele encarou a menina, agora mulher, sentada no outro lado da sua mesa. Ombros caídos, face voltada para o colo, cabelos lisos que escondiam seus verdadeiros sentimentos... Ela vai me dar trabalho, o senhor de aparência solene e bigodes com as pontas voltadas para cima, ponder
Deixar o lar em que fora criada nos últimos oito anos sangrava um pouco mais o coração de Sara. E o fato de a mansão possuir ótimos esconderijos para uma pré-adolescente que adorava fugir dos criados e do avô, e perder-se na internet stalkeando os meninos mais interessantes do colégio, não arranhava os verdadeiros motivos para a sua dor. Sara estava sozinha no mundo. Literalmente. Filha única, de filho único, de filho único... uma família reduzida a somente um indivíduo. Qual era o problema dos Tisiros, com relação à quantidade de crianças?, ela se perguntava. Falta de grana? Impossível. Eles possuíam condições financeiras para bancar, tanto os estudos quanto as babás. Questões estéticas? Até poderia ser, mas o dinheiro daria um jeito nos peitos caídos e barrigas flácidas. Escassez de amor? Nem longe essa possibilidade estava em pauta. Todos eram muitos amorosos. Eu te amo, meu amor, minha vida... faziam parte do vocabulário cotidiano. — Talvez seja a
Ao estacionar o carro simples em frente ao prédio, um longo suspiro escapou dos lábios de Sara. No porta-malas, algumas roupas, acessórios, notebook e o unicórnio antigo – presente dado pelo pai no seu aniversário de oito anos – compunham sua bagagem. Buscou o envelope dentro da bolsa e conferiu o número do local. Pelo vidro, avaliou a fachada. De tijolinhos à vista, três andares, janelas marrons, sem portaria, a não ser uma grande porta maciça de vidro, com trava e interfone, o prédio a fazia lembrar-se das casas antigas que conhecera em uma de suas visitas à Nova York. Procurou por uma entrada de garagem, mas não encontrou. Que lugar é esse, vô?. Em nada combinava com a extravagante mansão dos Tisiros. Será que tem elevador, Sara se perguntou. E, por mais que a simplicidade fizesse parte de suas características, a falta de um jardim aparente, onde pudesse se alimentar da energia da terra, a fez questionar sobre a decisão de abandonar seu antigo lar. Determ
Sara pagou o chaveiro, assim que o serviço ficou pronto. Mesmo que Igor tivesse devolvido a sua cópia da chave, a lembrança de sua afirmação a respeito de entradas furtivas a fez decidir por trocar o segredo da fechadura. Com a mala estacionada ao seu lado direito e as compras no lado contrário, aproveitou o primeiro momento sozinha para avaliar o ambiente. O apartamento esboçava uma premissa perfeita. Livre de ornamentos alheios, a neta de Vargas mentalizou as possíveis transformações que surgiriam com o tempo. Lógico que em todas as imagens, plantas, vasos e folhas... compunham o cenário. O sofá de três lugares encostado à parede branca, se escondia sob um lençol azul marinho manchado. No canto oposto, uma mesa de vidro com quatro cadeiras em tom cerejeira deixava um espaço aberto para tapetes, almofadas coloridas, quadros e puffs bem centralizados. As janelas envidraçadas permitiam o ar da noite adentrar pela fresta e davam uma visão privilegiada do bairr
Quando Sara estacionou o carro na frente do prédio, no final da tarde, seu corpo doía pelo trabalho árduo travado durante o dia. Arrependeu-se de não ter colocado um tênis e uma roupa mais confortável, principalmente quando avaliou o vestido sujo de terra. Como sempre, repor as energias deixava sua mente mais clara e centrada. Conversar com rosas e folhagens parecia uma loucura para os demais, mas para Sara, elas eram suas melhores amigas. Afinal, qual adolescente em sã consciência trocaria uma tarde no shopping com as meninas da escola por uma poda no jardim? Sara Vargas, com certeza. A nova herdeira não tinha problemas em fazer amizades. No entanto, a sua inutilidade em demonstrar seus sentimentos transmitiam aos outros uma indiferença errônea. Por essa razão, suas amizades se limitavam ao tratamento cordial e quase insignificante. Falar com plantas era muito mais fácil, elas não faziam perguntas. Retirou a compras do banco traseiro e olhou resigna
Os dias foram passando e Sara entrou numa rotina. As manhãs eram dedicadas à decoração do apartamento, as plantas ocupavam todas as tardes e, com um sorriso forçado, a faculdade ficava com o período noturno. Como prometido, Tereza apareceu para ajudar nos serviços domésticos e sua neta postiça não se fez de tímida ao aceitar a oferta. Cuidar de casa não fazia parte de suas habilidades. Mesmo porquê, em todos os seus vinte anos, nunca houve necessidade para tal. Seu quarto sempre estivera limpo e em ordem, assim como seus pertences. Independente da maneira como Tereza resmungava ao tirar as manchas de terra das roupas, dos sapatos e do carpete. Contudo, as mudanças que Sara tanto almejava pareciam crescer dentro do seu peito. Havia algo errado, e ela não conseguia encontrar a fonte dessa sensação. — Volto na próxima semana, pequena Sara. Cuidarei da casa e da roupa. Não se preocupe. — Tereza pendurou os vestidos no armário. — Não acho justo te ocupar dessa for
Sara abriu a porta de seu apartamento e as fragrâncias das flores invadiram suas narinas, disputando atenção com o aroma da pizza. Respirou fundo, buscando energia para lidar com o homem que acompanhava seus passos. Acendeu as luzes, colocou a caixa sobre a mesa e ligou o som. Uma música suave preencheu o ambiente. — Uau. Estou vendo que você esteve ocupada esses dias. Estava curioso para saber onde você colocaria todas aquelas flores, mas agora vejo que ficaram perfeitas. — Igor parou por alguns instantes para apreciar a sala bem decorada. Os móveis de outrora haviam ganhado colegas de espaço. Almofadas nudes enfeitavam o sofá vermelho. Mesa lateral propícia para o aparelho de telefone, algumas revistas de jardinagem e um pequenino vaso com bromélias vermelhas. — Você fez tudo sozinha? — Obrigada. Mais ou menos. Tive um pouco de ajuda... — Ela imaginou como soaria se contasse que tinha uma governanta à disposição e preferiu omitir esse fato. — Fique à