Capítulo 4

Sara pagou o chaveiro, assim que o serviço ficou pronto. Mesmo que Igor tivesse devolvido a sua cópia da chave, a lembrança de sua afirmação a respeito de entradas furtivas a fez decidir por trocar o segredo da fechadura.

Com a mala estacionada ao seu lado direito e as compras no lado contrário, aproveitou o primeiro momento sozinha para avaliar o ambiente. O apartamento esboçava uma premissa perfeita. Livre de ornamentos alheios, a neta de Vargas mentalizou as possíveis transformações que surgiriam com o tempo. Lógico que em todas as imagens, plantas, vasos e folhas... compunham o cenário. O sofá de três lugares encostado à parede branca, se escondia sob um lençol azul marinho manchado. No canto oposto, uma mesa de vidro com quatro cadeiras em tom cerejeira deixava um espaço aberto para tapetes, almofadas coloridas, quadros e puffs bem centralizados.

As janelas envidraçadas permitiam o ar da noite adentrar pela fresta e davam uma visão privilegiada do bairro. Cortinas amarelas com pequenas margaridas bordadas pareciam criar vida da imaginação de Sara. O apartamento vazio ganhava uma profusão de cores e alegria conforme a moradora levava as compras até a cozinha.

Não diferente da sala, aquele ambiente também possuía o básico: fogão, geladeira, armários embutidos e uma pequena mesa presa à parede. Nada sofisticado, porém todos novos. Sara se perguntou quanto tempo Igor havia permanecido no local, ainda mais quando começou a guardar os mantimentos nos espaços vazios.

Fingiu não procurar por pistas do antigo morador, enquanto levava a mala para o quarto desabitado. Pior que o restante da casa, o cômodo era composto por uma cama de casal king size – um detalhe primordial, para alguém que não gostava de dormir com os pés pendurados –, um guarda-roupa de três portas e mais nada. Alguns respingos de tinta e cimento nas esquadrias da janela denunciavam a reforma. Sara raspou a unha sobre a sujeira. Com certeza, a vinda de Tereza seria perfeita, ela concluiu.

Enquanto desfazia as malas, os pensamentos da universitária se voltaram para Igor. A decepção por voltar do mercado e não encontrá-lo, fora jogada para o local onde ficavam todos os sentimentos que não poderiam ser esclarecidos, muito menos mencionados.

Questões se acumulavam a cada passo dado pelo novo habitat. Quem era aquele homem que conquistara a confiança de Vargas? Será que realmente existia uma reciprocidade entre seu avô e o visitante, ou tudo não passava de um gesto cordial? De onde Igor conhecia Vargas? E talvez a indagação mais interessante, se Sara ousasse admitir, porque o desejo de conhecê-lo melhor percorria por todo seu corpo? Lógico que havia uma explicação saudável e racional para tal questionamento. Ela era uma mulher jovem, bonita, com todo o interior e exterior funcionando em perfeita harmonia. Possuía problemas para despejar suas frustrações e emoções para as pessoas. Contudo, reagir a um homem bonito, ou melhor dizendo, lindo, não fazia parte desse desvio de personalidade.

Cansada demais para avaliar qual seria a resposta, limitou-se a flutuar para o mundo imaginário. Lista de compras: cortinas, roupas de cama, móveis... Sua mente travava uma batalha árdua para escapar dos olhos cor de terra, gravado em suas retinas.

Quando adentrou no banheiro, um bufo resignado encheu as paredes. No ar, o aroma de sabonete trazia Igor direto para a sua frente. Sara chacoalhou a cabeça. Sua vida estava conturbada demais para percorrer aquele corpo, aqueles olhos, aquele sorriso, aquelas sardas... As mudanças batiam à sua porta, com a mesma força que ela colocava seu nécessaire sobre a pia de mármore. Pensar nas responsabilidades a livraram da cobiça alheia, lembrar do avô a acometia do que realmente importava: gratidão eterna. Sem ele, Sara nunca teria se tornado a mulher que encarava o espelho sujo de pingos d’água. Por essa razão, Igor e sua compleição generosa ficariam presos ao apartamento no andar superior.

                                                           ******

“Querer não é poder”, Tereza costumava dizer a Sara. Um ditado simples, mas concreto, uma vez que ela queria ser botânica e não podia. Queria ter os pais ao seu lado, seus avôs... Uma colocação cabível para o momento, já que a neta de Vargas desejou ficar longe de Igor. Contudo, as olheiras profundas e o mau humor matinal provavam que, outra vez, suas vontades não foram realizadas.

Dormir no apartamento, e fingir que o motivo de estar ali não tinha nada de anormal na decisão, levou uma boa parte da noite. Quanto a isso, Sara já esperava. No entanto, ser acordada ainda quando pequenos pontos de raios solares flutuavam sobre sua cama, com o som dos acordes mal desenhados de um violão, deixava a limonada azeda independentemente das colheres extras de açúcar. Precisa começar a tocar essa merda assim tão cedo?

— Mais um minuto desse tormento, e vou enlouquecer. — Sara iniciou um monólogo enquanto dispensava o pijama com estampas de cactos sorridentes. O som continuava, no mesmo ritmo, música e sequência. Para um pouquinho, recomeça, para outro pouquinho, recomeça... até as falhas combinavam.

Fechou as janelas, expulsando o barulho e o calor, mas não daria para ficar assim o resto do dia, afinal o verão havia chegado com toda sua glória. Questionou-se o motivo de Igor estar no apartamento tão cedo, uma vez que reclamara do cheiro. Será que tudo não passava de uma mentira? Sara ruminava suas dúvidas com a mesma sagacidade que vestia uma peça retirada a esmo do armário. Ela tinha inúmeros compromissos para aquele dia, e deixar a mente pesada com questões mal solucionadas, afetariam sua disposição. Com esse pensamento em mente, e esquivando-se da necessidade gritante em vê-lo novamente, nem que fosse para expressar a falta de tato para viver em sociedade, ela pegou a palheta que achara no sofá e saiu determinada a tomar satisfações.

Se a neta de Vargas fosse adapta a sapatos de saltos, com certeza suas passadas sólidas seriam ouvidas a distância. Um lance de escada não amenizou sua necessidade mascarada pela ânsia de justiça pelos outros moradores que desejam dormir até mais tarde.

A campainha tocou duas vezes, antes de ser ouvida pelo ocupante do apartamento número trinta. No chão, o tapete de entrada exibia uma frase com margens para interpretações: só entra se souber tocar!

Quando Igor atendeu a porta, encontrou Sara com a cabeça abaixada.  Cabelos comprimidos, caídos na frente de seu rosto. Ele se permitiu um segundo de voyeurismo antes de continuar.

— Violão.

Como no primeiro encontro, a voz dele acariciou a pele de Sara. Ela ergueu os olhos devagar. Na verdade, bebeu sedenta por um gole d´água, cada centímetro do corpo de Igor, desde os pés descalços, passando pela calça social preta até chegar à camisa branca bem cortada.

— Hum. — Compreendeu que as sinapses costumavam falhar na presença dele. Jogou os cabelos para trás, talvez ajudasse no funcionamento de sua locução.

— Só entra se souber tocar violão — ele insistiu.

Ela está ainda mais linda do que ontem. Outro vestido longo escondia as pernas torneadas e não deixava muito para exibição, mas Igor adorava sua mente criativa. Os braços e ombros expostos pelas alças finas ditavam duas possibilidades: sem ou com sutiã tomara que caia. Infelizmente o tom colorido: azul, vermelho e preto impunha limites para as dúvidas do aprendiz de músico.

Sara notou o seu escrutínio desconexo, assim que fitou os olhos astutos de Igor. Ele sorria. Um lindo e silencioso sorriso preenchia todo o rosto bem barbeado. Os cabelos estavam penteados e ao mesmo tempo fora de ordem, elevando sua aparência para o morador mais sexy do prédio. A gravata vermelha ao redor do pescoço e os dedos longos segurando a porta entreaberta.

— Então por que não está escrito isso? — Ela forçou a mente a trabalhar.

— Porque deixo a cargo da minha inspiração e vontade. Já toquei bateria, saxofone e flauta. E a frase solta no tapete combina com o instrumento da vez.

Sara imaginou como seria ouvir todas as manhãs o barulho de uma bateria, e resolveu que violão era uma opção bem melhor. Talvez o ideal seria não reclamar do som fora de sintonia. Quem sabe qual instrumento estava na lista de “como perturbar os vizinhos”?, ela se perguntou.

A proposta inicial havia se dissolvido pelo ar, assim como o perfume almiscarado que Igor exalava. Ela desejou um convite para um café de boas-vindas. Talvez fosse uma ideia louca e irresponsável, mas que mal poderia haver?

— Estamos em outro jogo de encarar ou você precisa de algo, Sara? Já vou logo avisando que se for uma xícara de açúcar, ficarei te devendo. — Ela esboçou um sorriso amarelo e tentou, sem sucesso, olhar sobre o ombro de Igor. Aceitou o fato de que ele era mais alto do que ela, sem levar em conta do quanto esse enorme detalhe agregava às demais características pecaminosas daquele homem.

— Ah. Não. Desculpe —pigarreou e ergueu umas das mãos. — Só vim lhe trazer essa palheta que achei.

— A minha preferida. Obrigado. — Igor achou melhor não mencionar que ele possuía pelo menos, mais uma dúzia como aquela. Pegou a pequena lâmina branca e guardou no bolso da calça.

 O corpo dele formava uma barreira, Sara percebeu. E, pela maneira como Igor mantinha-se inerte, salvo os olhos e a expressão relaxada, o café não aconteceria. Talvez ele também tivesse problemas com sinapses, a universitária acreditou.

— Bom. Vou indo. Não quero te atrasar para o trabalho. — Ela balançou uma das mãos. Igor notou as unhas curtas e livres de esmaltes.

— Não se preocupe, ainda tenho tempo. Costumo levantar bem cedo para praticar, assim não perco a hora. Espero que eu não tenha te acordado com o barulho do violão?! — A ingenuidade reinava em cada uma de suas palavras. — Tive que abrir bem as janelas, pois o cheiro ainda não saiu por completo.

— Não. Claro que não. Também costumo despertar bem cedo. — Sara retirou um fio imaginário da frente do vestido. Mentir não era muito o seu forte. — Você não ia dormir no hotel? — Uma pergunta simples e sem qualquer pretensão. Entretanto, ela olhou para os pés na sandália. Gosto mais quando uso o esmalte vermelho.

— Eu dormi. Mas precisava estar em casa cedo para tomar algumas decisões.

Sara queria perguntar sobre as decisões, saber um pouco mais a respeito dos instrumentos, até mesmo descobrir qual a profissão de Igor. Contudo, não havia brechas e talvez nem motivos para tamanha inquisição. Ela parecia aflita por uma conversa casual e não encontrou a mesma motivação nele. A universitária se deu conta da maneira carente, beirando a infantilidade que demonstrava e se puniu mentalmente. Como poderia administrar uma cadeia de restaurantes se não conseguia se portar com clareza na frente de um homem atraente? Muito menos dizer a verdade sobre a sua visita surpresa.

Por essa razão, e até mesmo envergonhada pela atitude, despediu-se sem grandes demonstrações de sorriso ou afeto. Um simples: “nos vemos por aí” e saiu em direção ao orquidário. Era hora de recuperar as energias e dignidade.

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