Sara passou o dorso da mão pelo rosto banhado em lágrimas. Percebeu a mancha negra deixada pelo rímel. À prova d’água uma ova! O pensamento desconexo com a ocasião fazia parte do seu mecanismo defesa. Quando menina, principalmente nos momentos onde broncas lhe eram dirigidas, a técnica a carregava para tantos mundos imaginários que, às vezes, sua mãe necessitava de algo mais forte do que um leve som de pigarro, para chamá-la de volta à realidade. Exatamente como o advogado à frente fazia.
— Menina Sara, está prestando atenção? — A intimidade condizia com os anos prestados à família Tisiros. Duas gerações desfeitas num piscar de olhos. Na verdade, em vários piscares, sendo mais honesto. Ele encarou a menina, agora mulher, sentada no outro lado da sua mesa. Ombros caídos, face voltada para o colo, cabelos lisos que escondiam seus verdadeiros sentimentos... Ela vai me dar trabalho, o senhor de aparência solene e bigodes com as pontas voltadas para cima, ponderou.
— Sim. Sim. Pode continuar...
A inconsolável mulher de vinte anos deixou de lado o diálogo mental que travava com a vendedora da loja de cosméticos, para fixar sua atenção no roliço amigo da família. Ele precisa se cuidar mais, seu colesterol deve estar alto. A bronca pelo desvio veio de si mesma quase no mesmo instante. Empertigou o corpo e forçou a mente pelo caminho solicitado.
— Resumindo, você herdou tudo. Desde a remota cabana de férias na ilha particular da família, até a presidência da rede de restaurantes. — Doutor Castelo baixou os documentos para visualizar a mais nova herdeira de uma fortuna com vários dígitos depois da vírgula.
Sara respirou fundo. Tanto tempo presa naquela sala, ouvindo os últimos desejos do seu avô, para descobrir o que ela já tinha conhecimento. Não havia mais parentes vivos, ou tecnicamente próximos e dignos da confiança do senhor Vargas.
Progênita de pais falecidos, Sara fora criada pelo avô contraditório: rigoroso com as regras, mas coração mole diante do olhar entristecido da neta. Filha única, assim como seu pai, Lauro, ela não possuía tios, primos, amigos íntimos ou até mesmo algum parente de segundo grau. Claro que da parte de sua mãe, Bárbara, a conversa era outra. Ali, Sara, tinha uma gama de pessoas mesquinhas e interesseiras. Porém, o senhor Vargas tratou, desde o casamento de Lauro, quando todos acreditavam se tratar de um ingênuo trabalhador assalariado, afastar os maus agouros. Uma história bonita. Recheada de acontecimentos típicos de filmes românticos: mulher se apaixona pelo garçom; a família rejeita o intento; eles fogem e se casam; ela é deserdada; para depois descobrir que o moço de avental branco sempre encardido fazia pesquisas de campo para o pai no restaurante da família.
— Ainda não terminei a faculdade. E tenho quase certeza de que não estou apta a assumir a presidência.
Sara falou com a sua voz mais centrada. Apropriar-se daquele papel, estava traçado por ela. Não tão cedo, claro. Muito menos por vontade própria. Contudo, seu senso de responsabilidade e gratidão pelo carinho recebido do avô a guiaram na escolha da carreira. Administração. Quando na verdade, Botânica era sua paixão. Plantas, terra, fertilização, flores... qualquer item, desde que suas unhas estivessem manchadas de terra, e as palmas das mãos marcadas pelos espinhos.
— Não se preocupe, menina. Seu avô pensou em tudo. O conselho continuará tomando as decisões, até você assumir. Ele me passou uma procuração, dando-me poderes para intervir caso haja algum problema mais grave. Além, é claro, de que você também pode exercer o seu direito, no momento que achar mais oportuno. — Sara relaxou no encosto da cadeira. Doutor Castelo levou os dedos aos olhos, apertando-os. Sua enxaqueca estava pronta para assumir o posto.
— Então... — Sara levantou-se. Tudo resolvido, era hora de regressar para a segurança do seu quarto e chorar a perda do seu melhor amigo, concluiu. Preciso encher o tanque de combustível do carro, não posso esquecer. — Como essa parte já está acertada, tenho um pedido a fazer.
As lágrimas haviam cessado, mas seu coração estava apertado de saudades. As imagens dos últimos dias do avô se misturavam às lembranças vividas ao lado dele. Brincadeiras, broncas, abraços afetuosos e risadas no final da noite. Amor e atenção incondicional, mesmo que o senhor Vargas tivesse que ficar até altas horas, escutando as reclamações da neta e esquivando-se dos conselhos sobre meninos.
— Não posso mais ficar naquela casa... — O advogado meneou a cabeça. Uma requisição já imaginada. Mandou uma mensagem para esposa, avisando que chegaria mais cedo. Iria de táxi, pois uma de suas vistas costumava ficar fora de foco, quando a dor era intensa.
— Tudo bem, Sara. Ele também previra essa sua vontade. — Castelo tirou um envelope da gaveta e entregou a ela. Notou as unhas marrons. Outra vez ajudando o jardineiro, ele concluiu.
— Nem mesmo depois de... — Sara clareou a garganta, pegou o documento e emitiu um sorriso amarelo. — Ele perde a oportunidade de mostrar a sua astúcia.
Castelo imitou o gesto. Senhor Vargas era esperto demais para o próprio bem, ele pensou.
— Nesse envelope tem o endereço de um apartamento que faz parte da herança. Seu avô mandou arrumá-lo no início do ano. Talvez precise de uma boa faxina e de mais alguns móveis. Fica próximo da sua faculdade, fácil acesso, boa vizinhança. Diferente de onde você mora, nesse local, as despesas ficarão por sua conta. Mas acredito que não haverá problema, pois, o seu avô também providenciou para que o seu salário fosse alterado para suprir todas as suas necessidades.
Sara não se envergonhava de ganhar salário, vulgo mesada. Ela era uma ótima neta, fazia trabalhos voluntários, ajudava o avô nos trâmites burocráticos, quando ele trazia serviço para casa, trabalhava como pesquisadora de campo nos restaurantes e, para deixar Vargas orgulhoso, não esbanjava dinheiro e não possuía qualquer veia esnobe em seu corpo.
— Obrigada. — guardou o documento dentro da bolsa de tecido amarela.
— Quando pretende se mudar?
— Talvez amanhã. Assim terei tempo para organizar os meus pertences. — O mais rápido possível, seria a resposta certa. No entanto, achou melhor omitir o seu desespero. Esqueci de lavar os cabelos hoje.
Ocultando os verdadeiros sentimentos, Sara levantou-se e estendeu a mão na direção do advogado. Seu vestido longo de verão estampado farfalhou com o movimento de suas pernas compridas.
Castelo rejeitou o cumprimento formal. Deu a volta na mesa e abriu os braços para acolher a menina que ele viu crescer. Cinco centímetros mais alta do que ele, Sara apoiou o queixo no ombro protegido pelo terno e suspirou pesadamente. Nada de choro. Chega por agora. Ela afugentou as lágrimas.
— Sei que está no testamento, mas, independentemente das questões jurídicas, quero que você me ligue se precisar de algo, Sara. Qualquer assunto. Entendeu? — Ele se desvencilhou para fitar os olhos azuis embaçados pela tristeza. Enxergou a dor em cada canto do rosto ovalado. O viço havia deslizado do seu sorriso se perdendo pelas circunstâncias da vida. Seus pais, sua avó, seu avô... quantas perdas mais uma menina de apenas vinte anos poderia suportar sem tornar-se uma pessoa amargurada, ele se perguntou.
— Pode deixar. — Sara deu um beijo na bochecha fria do advogado. Sorriu sem vontade e dirigiu-se para saída. Hora de fazer as malas e seguir para o novo apartamento. Ele está com mau hálito, foi seu pensamento quando saiu do escritório.
Deixar o lar em que fora criada nos últimos oito anos sangrava um pouco mais o coração de Sara. E o fato de a mansão possuir ótimos esconderijos para uma pré-adolescente que adorava fugir dos criados e do avô, e perder-se na internet stalkeando os meninos mais interessantes do colégio, não arranhava os verdadeiros motivos para a sua dor. Sara estava sozinha no mundo. Literalmente. Filha única, de filho único, de filho único... uma família reduzida a somente um indivíduo. Qual era o problema dos Tisiros, com relação à quantidade de crianças?, ela se perguntava. Falta de grana? Impossível. Eles possuíam condições financeiras para bancar, tanto os estudos quanto as babás. Questões estéticas? Até poderia ser, mas o dinheiro daria um jeito nos peitos caídos e barrigas flácidas. Escassez de amor? Nem longe essa possibilidade estava em pauta. Todos eram muitos amorosos. Eu te amo, meu amor, minha vida... faziam parte do vocabulário cotidiano. — Talvez seja a
Ao estacionar o carro simples em frente ao prédio, um longo suspiro escapou dos lábios de Sara. No porta-malas, algumas roupas, acessórios, notebook e o unicórnio antigo – presente dado pelo pai no seu aniversário de oito anos – compunham sua bagagem. Buscou o envelope dentro da bolsa e conferiu o número do local. Pelo vidro, avaliou a fachada. De tijolinhos à vista, três andares, janelas marrons, sem portaria, a não ser uma grande porta maciça de vidro, com trava e interfone, o prédio a fazia lembrar-se das casas antigas que conhecera em uma de suas visitas à Nova York. Procurou por uma entrada de garagem, mas não encontrou. Que lugar é esse, vô?. Em nada combinava com a extravagante mansão dos Tisiros. Será que tem elevador, Sara se perguntou. E, por mais que a simplicidade fizesse parte de suas características, a falta de um jardim aparente, onde pudesse se alimentar da energia da terra, a fez questionar sobre a decisão de abandonar seu antigo lar. Determ
Sara pagou o chaveiro, assim que o serviço ficou pronto. Mesmo que Igor tivesse devolvido a sua cópia da chave, a lembrança de sua afirmação a respeito de entradas furtivas a fez decidir por trocar o segredo da fechadura. Com a mala estacionada ao seu lado direito e as compras no lado contrário, aproveitou o primeiro momento sozinha para avaliar o ambiente. O apartamento esboçava uma premissa perfeita. Livre de ornamentos alheios, a neta de Vargas mentalizou as possíveis transformações que surgiriam com o tempo. Lógico que em todas as imagens, plantas, vasos e folhas... compunham o cenário. O sofá de três lugares encostado à parede branca, se escondia sob um lençol azul marinho manchado. No canto oposto, uma mesa de vidro com quatro cadeiras em tom cerejeira deixava um espaço aberto para tapetes, almofadas coloridas, quadros e puffs bem centralizados. As janelas envidraçadas permitiam o ar da noite adentrar pela fresta e davam uma visão privilegiada do bairr
Quando Sara estacionou o carro na frente do prédio, no final da tarde, seu corpo doía pelo trabalho árduo travado durante o dia. Arrependeu-se de não ter colocado um tênis e uma roupa mais confortável, principalmente quando avaliou o vestido sujo de terra. Como sempre, repor as energias deixava sua mente mais clara e centrada. Conversar com rosas e folhagens parecia uma loucura para os demais, mas para Sara, elas eram suas melhores amigas. Afinal, qual adolescente em sã consciência trocaria uma tarde no shopping com as meninas da escola por uma poda no jardim? Sara Vargas, com certeza. A nova herdeira não tinha problemas em fazer amizades. No entanto, a sua inutilidade em demonstrar seus sentimentos transmitiam aos outros uma indiferença errônea. Por essa razão, suas amizades se limitavam ao tratamento cordial e quase insignificante. Falar com plantas era muito mais fácil, elas não faziam perguntas. Retirou a compras do banco traseiro e olhou resigna
Os dias foram passando e Sara entrou numa rotina. As manhãs eram dedicadas à decoração do apartamento, as plantas ocupavam todas as tardes e, com um sorriso forçado, a faculdade ficava com o período noturno. Como prometido, Tereza apareceu para ajudar nos serviços domésticos e sua neta postiça não se fez de tímida ao aceitar a oferta. Cuidar de casa não fazia parte de suas habilidades. Mesmo porquê, em todos os seus vinte anos, nunca houve necessidade para tal. Seu quarto sempre estivera limpo e em ordem, assim como seus pertences. Independente da maneira como Tereza resmungava ao tirar as manchas de terra das roupas, dos sapatos e do carpete. Contudo, as mudanças que Sara tanto almejava pareciam crescer dentro do seu peito. Havia algo errado, e ela não conseguia encontrar a fonte dessa sensação. — Volto na próxima semana, pequena Sara. Cuidarei da casa e da roupa. Não se preocupe. — Tereza pendurou os vestidos no armário. — Não acho justo te ocupar dessa for
Sara abriu a porta de seu apartamento e as fragrâncias das flores invadiram suas narinas, disputando atenção com o aroma da pizza. Respirou fundo, buscando energia para lidar com o homem que acompanhava seus passos. Acendeu as luzes, colocou a caixa sobre a mesa e ligou o som. Uma música suave preencheu o ambiente. — Uau. Estou vendo que você esteve ocupada esses dias. Estava curioso para saber onde você colocaria todas aquelas flores, mas agora vejo que ficaram perfeitas. — Igor parou por alguns instantes para apreciar a sala bem decorada. Os móveis de outrora haviam ganhado colegas de espaço. Almofadas nudes enfeitavam o sofá vermelho. Mesa lateral propícia para o aparelho de telefone, algumas revistas de jardinagem e um pequenino vaso com bromélias vermelhas. — Você fez tudo sozinha? — Obrigada. Mais ou menos. Tive um pouco de ajuda... — Ela imaginou como soaria se contasse que tinha uma governanta à disposição e preferiu omitir esse fato. — Fique à
A explosão que se seguiu com aquele encontro de lábios, poderia ser descrita com palavras românticas. No entanto, os sentimentos que os acometiam não chegavam nem perto da sensibilidade dos grandes poetas. Serpenteados pelo aroma das flores, a música ambiente e a luz da lua que adentrava pela janela, Igor e Sara demonstraram um entorpecimento de luxúria e desespero. Seus corpos rugiam para serem saciados. O romance e as palavras carinhosas viriam com o passar das horas, provavelmente. Contudo, o que arrebatava a ambos em cima do sofá vermelho era pura questão de necessidade. Fome, talvez. Uma ganância que eles não estavam prontos para analisarem, muito menos pesquisar suas raízes. Sara descobriu sardas em outras partes do corpo de Igor, da mesma forma que ele notou o quanto suas alturas propiciavam que posições complexas fossem testadas. Os novos amantes se conheceram mais do que intimamente. Seus corações se encontraram, mesmo que os donos estivem cegos para tal união. Entr
O suposto relacionamento embarcou numa constante. Se antes as noites de Sara tinham somente a faculdade como programação, com a chegada de Igor o período noturno fora alterado de forma deliciosamente substancial. Jantares quase todos os dias, refeições preparadas, servidas por ele e tendo Sara como sobremesa. Sempre nessa sequência e no apartamento dela, uma vez que o de Igor ainda estava impossibilitado. Lógico que ela o questionou em outros momentos sobre a reforma e conquistou respostas aceitáveis e compreensíveis: “já estudei tudo o que podia, e amanhã coloco a mão na massa”; “ah, ainda não acabei, vai demorar um pouco”; “está sujo, tenho que chamar uma faxineira”. Sem perceber, a neta de Vargas passava pouco tempo em seu mundo imaginário. As evasões se limitavam a visitas de Tereza ou às conversas esporádicas com Castelo. De uma maneira prática de ser, o empresário trouxe um alívio pertinente ao complexo desempenho da universitária durante as aulas. A pr