Deixar o lar em que fora criada nos últimos oito anos sangrava um pouco mais o coração de Sara. E o fato de a mansão possuir ótimos esconderijos para uma pré-adolescente que adorava fugir dos criados e do avô, e perder-se na internet stalkeando os meninos mais interessantes do colégio, não arranhava os verdadeiros motivos para a sua dor.
Sara estava sozinha no mundo. Literalmente. Filha única, de filho único, de filho único... uma família reduzida a somente um indivíduo. Qual era o problema dos Tisiros, com relação à quantidade de crianças?, ela se perguntava. Falta de grana? Impossível. Eles possuíam condições financeiras para bancar, tanto os estudos quanto as babás. Questões estéticas? Até poderia ser, mas o dinheiro daria um jeito nos peitos caídos e barrigas flácidas. Escassez de amor? Nem longe essa possibilidade estava em pauta. Todos eram muitos amorosos. Eu te amo, meu amor, minha vida... faziam parte do vocabulário cotidiano.
— Talvez seja a falta de tempo, Sara. Devido ao excesso de trabalho... — Vargas analisava as cartas na mão. Jogar tranca com a neta, era um de seus passatempos prediletos. — Sempre fomos muito rigorosos com as provisões para o futuro da família. Não queríamos que nada nos faltasse. E não digo como um esnobe, e sim como uma pessoa que viu os pais em situações precárias.
Sara conhecia a história do seu avô quando criança. Da fome, do lar desfeito pela falta de dinheiro, dos estudos falhos. Uma vida dura que ele jurou manter-se bem afastado, assim que conseguiu o seu primeiro emprego como auxiliar de faxina em um restaurante.
— Entendo essa parte, vô. Mas de que adianta ter tanto dinheiro, se ele não é aproveitado? — A neta conferiu os jogos descartados pelo avô. Enxergou possibilidades de buscar o “morto” antes que tudo ruísse.
— Você pode aproveitá-lo. — O empresário ajeitou os óculos na ponte do nariz. Mentalmente contou os pontos que havia conquistado com a canastra. Outra rodada fácil, ele concluiu. Sua neta era péssima no carteado.
— Sozinha não tem nem graça e nem muito sentido. — Sara buscou por uma saída. Vargas só tinha duas cartas nas mãos. Já tinha dilacerado o morto dele e corria em busca do bate. Encarou os olhos iguais aos seus, por detrás dos óculos. Eles estavam descansados, percebeu. A doença dera uma trégua.
— Talvez você esteja certa, mas, infelizmente, não podemos mudar o passado. Caberá a você, encher essa casa de crianças. Quero muitos bisnetos. — Na face, um semblante inocente antes de dar a derradeira notícia. — Bati!
O som de um toque na porta conseguiu afastar Sara das lembranças dolorosas. Sim, o avô tinha razão quanto ao fato de ela ter muitos filhos. Nada de solidão em seu caminho, ela determinou. Mas, encher a casa de bisnetos, essa parte ficara somente nos desejos. Vargas não conheceria os filhos da neta.
— Não sei o motivo de tanta pressa. Você poderia deixar para fazer essa mudança amanhã. — Tereza comentou ao adentrar no quarto. Em uma das mãos, trazia um copo cheio de limonada gelada. A bebida preferida de Sara.
A moça aceitou o mimo de bom grado. Sorveu dois longos goles e sentiu o doce misturado à acidez do limão, acalmar a garganta.
— E por que não ainda hoje? — Sara virou-se para enfrentar o armário abarrotado de roupas, pois não sabia como explicar sua ânsia em sair daquela casa.
Tereza compreendia, em partes, aquela pressa. Muitas lembranças, muitas saudades para lidar.
— Pegou tudo que precisa? — Resignada, a governanta ajeitou uma blusa verde que fora colocada por último na mala.
— O básico. Não tenho ideia de como é o apartamento, por isso levarei somente o essencial. Depois mando buscar o restante.
Arrumar os pertences, desde o momento em que chegara do escritório do advogado, levara de si uma boa dose do seu bem-estar. Relancear cada pedacinho da casa pesava em seu corpo. Os lustres bem polidos e perigosos para mãos descuidadas, muitos tapetes coloridos e desnecessários, na sua concepção. Mármores, pedras raras, porcelanatos que, em qualquer outra casa poderiam deixar um ambiente frio, mas que na mansão Tisiros não passavam de instrumentos para se escorregar com meias grossas. O quarto de adolescente, que abrigava pôsteres das bandas preferidas, perfumes cítricos, pelúcias – que aumentavam sua crise alérgica – a cama king size, enfeitada com a colcha de matelassê lilás... detalhes e mais detalhes que dificultavam a tarefa de organizar a mala e adiantara sua partida.
— Faço questão de te levar, pequena Sara. — Uma deliciosa contradição o carinho dito pela senhora. Afinal, de pequena a neta do senhor Vargas nunca teve nada. — Assim posso te ajudar na organização. Um tiquinho na limpeza. Quem sabe, passar uns dias como você? Claro, se não for atrapalhar.
Sara encarou os olhos ansiosos de Tereza. Enxergou a tristeza que a senhora de cabelos cinza, com toques brancos, tentava esconder. Tantos anos de cuidados, desfeitos porque ela não conseguia ficar ali sem que as lembranças a sufocassem. Por mais que a imagem daquela senhora a remetesse direto ao avô, ela concluiu que da mesma forma em que sentira uma necessidade gritante de escapar do lar desfeito, talvez a governanta também carecesse do mesmo intento.
— Eu adoraria. Mas será que o seu Jonas ficará bem, sozinho? — Sara sentou-se no baú ao pé da cama. Lá dentro, bem no fundo, sob camadas e mais camadas de relíquias da infância, uma carta, envolta no papel de presente delicado, descansava longe de suas vistas.
— Ah. Pelo amor de Deus! Aquele homem me deixa louca. São quase 50 anos aguentando suas reclamações. Tenho certeza que ambos adoraríamos uma pausa. — A governanta ajeitava o pouco que havia fora do lugar. Relanceou a bolsa de tecido amarela – um presente dado por ela à Sara, no ano anterior – sobre a cama e sentiu o aroma cítrico que vinha do banheiro.
Um comentário fingido, Sara refletiu. O amor entre aquele casal estava escrito nas paredes da casa. Casados desde sempre, com três filhos crescidos, dois netos pequenos e outro a caminho, eles construíram sua família trabalhando para os Tisiros há mais de vinte anos. Sempre presentes em cada aniversário de Sara, festas na escola e durante o desenvolvimento da menina triste para aquela mulher sábia, os Fonseca possuíam várias páginas do diário de bordo da vida de Sara.
— Ok. Bom, vou indo. — Sara fechou a mala. Depois alisou o vestido longo. Correu os olhos pelo espelho inteiriço, buscando pelo seu reflexo. Os cabelos soltos escorriam pelas costas. Passou os dedos pela franja crescida, afastando-a do seu rosto. Nada fora do lugar, concluiu. Somente o coração...
Tereza, que odiava despedidas e conhecia a forma como Sara esquivava-se dos sentimentos tristes, não se importou com nada, quando foi em direção à neta postiça e a abraçou com todo o amor que preenchia seus poros.
— Sentirei sua falta, pequena.
Sara retribuiu o abraço. O queixo sobre a cabeça da governanta. Apertou o corpo fofinho que cheirava lar e amor. Tenho que comprar absorvente. Permitiu que Tereza extravasasse sua dor, por alguns segundos. E, mesmo caminhando para o seu mundo imaginário, um pensamento lhe veio à mente.
— Como não vou mais morar aqui, o que acontecerá com vocês? — Um questionamento simples, mas que ela deveria ter feito antes de sugerir a troca do lar. E se eles perdessem seus empregos por causa dela? Como poderia ajudá-los? Desde quando ela se tornara tão egoísta?
— Não se preocupe... — Tereza afastou-se e limpou o rosto no avental negro. Os olhos vermelhos e inchados combinavam com o nó em seu estômago. Por que ela tinha que ir embora?, se perguntou. — Seu avô...
— Sim, ele já tomou providências para isso, certo? — Talvez estivesse aí sua despreocupação para com o futuro deles. Sara pegou a bolsa. Colocou sobre o ombro, procurando no quarto por algo indispensável.
— Já. O Castelo nos disse que ficaremos aqui, até o inventário ser concluído. O depois ainda é uma incógnita, porém, de toda forma, eu e Jonas já estamos aposentados. Quem sabe, não será a hora de cessar e cuidar dos nossos netos.
Ambas pararam uma em frente à outra. Na face de Tereza, a tristeza ameaçava novas lágrimas. Na de Sara, o imaginário escondia sua dor. Raspei as pernas hoje? Vou ao mercado antes ou depois de ir ao apartamento? O jardineiro precisa regar as plantas amanhã bem cedo, antes do sol forte. Coloquei o fio dental na nécessaire?
— Agora vá! — Tereza desprendeu-se daqueles olhos azuis. Passou por ela e levantou a alça da mala a puxando para fora do quarto. Ou as lágrimas regressariam. — Tenho uma casa para limpar.
Por sorte, ou por puro planejamento de Jonas, ele não estava presente quando Sara acomodou a bagagem no porta-malas. Assim como sua esposa, o senhor de barriga proeminente — à custa de muita torta de banana — odiava despedidas. Mas o que ele poderia fazer? Jonas viu a menina crescer, a fez sorrir para afugentar a melancolia pela perda dos pais, ensinou a dirigir... como poderia simplesmente bater em seu ombro e dizer: “Sim, pode ir. Me deixe aqui, não tem problema!” Tinha e muitos. Contudo, preferiu não demonstrar. Pelo menos para ninguém.
No entanto, Sara sabia o quanto sua partida machucava aquele casal. E o pensamento: com quantos quilômetros preciso trocar o óleo do carro?, serviu somente para fugir da imagem vista assim que passou pelo portão da propriedade. Jonas escondido por entre as árvores, limpando o rosto com o seu lenço de bolso.
Ao estacionar o carro simples em frente ao prédio, um longo suspiro escapou dos lábios de Sara. No porta-malas, algumas roupas, acessórios, notebook e o unicórnio antigo – presente dado pelo pai no seu aniversário de oito anos – compunham sua bagagem. Buscou o envelope dentro da bolsa e conferiu o número do local. Pelo vidro, avaliou a fachada. De tijolinhos à vista, três andares, janelas marrons, sem portaria, a não ser uma grande porta maciça de vidro, com trava e interfone, o prédio a fazia lembrar-se das casas antigas que conhecera em uma de suas visitas à Nova York. Procurou por uma entrada de garagem, mas não encontrou. Que lugar é esse, vô?. Em nada combinava com a extravagante mansão dos Tisiros. Será que tem elevador, Sara se perguntou. E, por mais que a simplicidade fizesse parte de suas características, a falta de um jardim aparente, onde pudesse se alimentar da energia da terra, a fez questionar sobre a decisão de abandonar seu antigo lar. Determ
Sara pagou o chaveiro, assim que o serviço ficou pronto. Mesmo que Igor tivesse devolvido a sua cópia da chave, a lembrança de sua afirmação a respeito de entradas furtivas a fez decidir por trocar o segredo da fechadura. Com a mala estacionada ao seu lado direito e as compras no lado contrário, aproveitou o primeiro momento sozinha para avaliar o ambiente. O apartamento esboçava uma premissa perfeita. Livre de ornamentos alheios, a neta de Vargas mentalizou as possíveis transformações que surgiriam com o tempo. Lógico que em todas as imagens, plantas, vasos e folhas... compunham o cenário. O sofá de três lugares encostado à parede branca, se escondia sob um lençol azul marinho manchado. No canto oposto, uma mesa de vidro com quatro cadeiras em tom cerejeira deixava um espaço aberto para tapetes, almofadas coloridas, quadros e puffs bem centralizados. As janelas envidraçadas permitiam o ar da noite adentrar pela fresta e davam uma visão privilegiada do bairr
Quando Sara estacionou o carro na frente do prédio, no final da tarde, seu corpo doía pelo trabalho árduo travado durante o dia. Arrependeu-se de não ter colocado um tênis e uma roupa mais confortável, principalmente quando avaliou o vestido sujo de terra. Como sempre, repor as energias deixava sua mente mais clara e centrada. Conversar com rosas e folhagens parecia uma loucura para os demais, mas para Sara, elas eram suas melhores amigas. Afinal, qual adolescente em sã consciência trocaria uma tarde no shopping com as meninas da escola por uma poda no jardim? Sara Vargas, com certeza. A nova herdeira não tinha problemas em fazer amizades. No entanto, a sua inutilidade em demonstrar seus sentimentos transmitiam aos outros uma indiferença errônea. Por essa razão, suas amizades se limitavam ao tratamento cordial e quase insignificante. Falar com plantas era muito mais fácil, elas não faziam perguntas. Retirou a compras do banco traseiro e olhou resigna
Os dias foram passando e Sara entrou numa rotina. As manhãs eram dedicadas à decoração do apartamento, as plantas ocupavam todas as tardes e, com um sorriso forçado, a faculdade ficava com o período noturno. Como prometido, Tereza apareceu para ajudar nos serviços domésticos e sua neta postiça não se fez de tímida ao aceitar a oferta. Cuidar de casa não fazia parte de suas habilidades. Mesmo porquê, em todos os seus vinte anos, nunca houve necessidade para tal. Seu quarto sempre estivera limpo e em ordem, assim como seus pertences. Independente da maneira como Tereza resmungava ao tirar as manchas de terra das roupas, dos sapatos e do carpete. Contudo, as mudanças que Sara tanto almejava pareciam crescer dentro do seu peito. Havia algo errado, e ela não conseguia encontrar a fonte dessa sensação. — Volto na próxima semana, pequena Sara. Cuidarei da casa e da roupa. Não se preocupe. — Tereza pendurou os vestidos no armário. — Não acho justo te ocupar dessa for
Sara abriu a porta de seu apartamento e as fragrâncias das flores invadiram suas narinas, disputando atenção com o aroma da pizza. Respirou fundo, buscando energia para lidar com o homem que acompanhava seus passos. Acendeu as luzes, colocou a caixa sobre a mesa e ligou o som. Uma música suave preencheu o ambiente. — Uau. Estou vendo que você esteve ocupada esses dias. Estava curioso para saber onde você colocaria todas aquelas flores, mas agora vejo que ficaram perfeitas. — Igor parou por alguns instantes para apreciar a sala bem decorada. Os móveis de outrora haviam ganhado colegas de espaço. Almofadas nudes enfeitavam o sofá vermelho. Mesa lateral propícia para o aparelho de telefone, algumas revistas de jardinagem e um pequenino vaso com bromélias vermelhas. — Você fez tudo sozinha? — Obrigada. Mais ou menos. Tive um pouco de ajuda... — Ela imaginou como soaria se contasse que tinha uma governanta à disposição e preferiu omitir esse fato. — Fique à
A explosão que se seguiu com aquele encontro de lábios, poderia ser descrita com palavras românticas. No entanto, os sentimentos que os acometiam não chegavam nem perto da sensibilidade dos grandes poetas. Serpenteados pelo aroma das flores, a música ambiente e a luz da lua que adentrava pela janela, Igor e Sara demonstraram um entorpecimento de luxúria e desespero. Seus corpos rugiam para serem saciados. O romance e as palavras carinhosas viriam com o passar das horas, provavelmente. Contudo, o que arrebatava a ambos em cima do sofá vermelho era pura questão de necessidade. Fome, talvez. Uma ganância que eles não estavam prontos para analisarem, muito menos pesquisar suas raízes. Sara descobriu sardas em outras partes do corpo de Igor, da mesma forma que ele notou o quanto suas alturas propiciavam que posições complexas fossem testadas. Os novos amantes se conheceram mais do que intimamente. Seus corações se encontraram, mesmo que os donos estivem cegos para tal união. Entr
O suposto relacionamento embarcou numa constante. Se antes as noites de Sara tinham somente a faculdade como programação, com a chegada de Igor o período noturno fora alterado de forma deliciosamente substancial. Jantares quase todos os dias, refeições preparadas, servidas por ele e tendo Sara como sobremesa. Sempre nessa sequência e no apartamento dela, uma vez que o de Igor ainda estava impossibilitado. Lógico que ela o questionou em outros momentos sobre a reforma e conquistou respostas aceitáveis e compreensíveis: “já estudei tudo o que podia, e amanhã coloco a mão na massa”; “ah, ainda não acabei, vai demorar um pouco”; “está sujo, tenho que chamar uma faxineira”. Sem perceber, a neta de Vargas passava pouco tempo em seu mundo imaginário. As evasões se limitavam a visitas de Tereza ou às conversas esporádicas com Castelo. De uma maneira prática de ser, o empresário trouxe um alívio pertinente ao complexo desempenho da universitária durante as aulas. A pr
A conversa que tivera com Igor rondava a mente de Sara como uma cobra traiçoeira. Deixar a cargo de outra pessoa uma responsabilidade pré-determinada, para se dedicar às suas amigas parecia um sonho de consumo. Ela pensou em Vargas. Vasculhou suas lembranças buscando algum indício de uma possível aceitação de que não haveria problemas em ficar em segundo plano na empresa. Porém, não encontrara nenhum sinal contraditório. Abandonar por completo, Sara nunca teria coragem, isso era um fato comprovado. Como uma gravação em sua pele. Entretanto, pela primeira vez desde o falecimento dele, afastar-se dos documentos e decisões finais não lhe trazia a sensação de que o estivesse traindo. Contudo, ainda existia um fator crucial que a impedia de levar essa proposta para o Castelo. Quem seria confiável o suficiente para assumir seu lugar? Porque não se tratava somente de papéis e ordens, mas de amor e entrega. Sentimentos explorados por Vargas. Óbvio que o rosto de Igor