Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.
Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.
O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.
— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.
— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distrair com o ritual. Mas ele não ia me deixar em paz. Nunca deixava.
— Então, ouvi dizer que você quer ir embora — ele disse, a voz carregada de sarcasmo.
Congelei. Como ele sabia? Olhei para a mãe, mas ela continuava olhando para a xícara, como se não estivesse ouvindo.— Não é da sua conta — respondi, tentando soar firme.
— Não é da minha conta? — Ele riu, um som seco e sem humor. — Enquanto você morar debaixo do meu teto, tudo aqui é da minha conta.Meu coração acelerou. Eu sabia onde isso ia dar. Sempre acabava no mesmo lugar: gritos, ameaças, lágrimas. Dessa vez, eu não ia deixar.
— Eu não vou discutir com você — disse, colocando a xícara na pia.
— Ah, não vai? — Ele se aproximou, e eu senti o cheiro de álcool misturado com raiva. — Você acha que é melhor que todo mundo, não é? Acha que pode sair por aí, deixar sua mãe pra trás como se ela fosse um fardo.— Não é isso! — gritei, sem conseguir me controlar. — Eu só quero uma chance de ter uma vida melhor!
— Uma vida melhor? — Ele riu de novo, mas dessa vez havia algo perigoso no tom. — Você não merece uma vida melhor. Você não merece nada.Foi quando ele deu um passo à frente, e eu instintivamente recuei. Minha mãe finalmente se levantou, colocando-se entre nós.
— Para, por favor — ela implorou, a voz trêmula. — Não façam isso.
— Cale a boca! — Ele gritou, empurrando-a para o lado. Ela caiu na cadeira, e algo dentro de mim estalou.— Não toque nela! — gritei, avançando em direção a ele. Mas ele era mais forte. Ele me segurou pelo braço, com uma força que fez eu ver estrelas.
— Você quer tanto ir embora? Então vá! — Ele me arrastou até a porta, e eu mal conseguia manter o equilíbrio. — Mas não volte. Você não é mais bem-vinda aqui.
A porta se abriu, e eu fui empurrada para fora. Caí no chão da varanda, minhas mãos arranhando o cimento áspero. Quando me virei, a porta já estava fechada, e eu podia ouvir a voz dele do outro lado, gritando algo que eu não conseguia entender.
Fiquei ali, parada, sentindo o frio da manhã penetrar minha pele. Minhas mãos tremiam, e eu não sabia se era de raiva, medo ou desespero. Mas uma coisa eu sabia: não podia ficar ali.
Peguei o celular no bolso, minhas mãos ainda trêmulas, e procurei o número que eu sabia de cor. Ela sempre esteve lá para mim. Minha prima Marina.
— Marina? — minha voz falhou quando ela atendeu.
— Isa? O que aconteceu? — Ela percebeu imediatamente que algo estava errado. — Eu... eu preciso de um lugar para ficar. Posso ir aí? — Claro que pode. Estou te esperando.Desliguei o telefone e olhei para a casa pela última vez. A casa que já foi meu lar, mas que agora era só um lugar cheio de lembranças ruins. Respirei fundo, enxugando as lágrimas, e comecei a caminhar. Eu não sabia o que o futuro me reservava, mas sabia que não podia olhar para trás.
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e
A casa da Marina sempre foi meu refúgio. Desde que me mudei para cá, depois daquela noite terrível em que fui expulsa de casa, ela tem sido minha âncora. Marina é mais que uma prima; é a irmã que nunca tive. E hoje, mais do que nunca, eu precisava dela.— Isa, você está bem? — Marina perguntou, colocando uma xícara de chá na minha frente. O cheiro de camomila era reconfortante, mas nem mesmo isso conseguia acalmar minha mente agitada.— Não sei — respondi, segurando a xícara com as duas mãos. — Acho que estou me sentindo... culpada.Marina sentou-se ao meu lado no sofá, seus olhos cheios de preocupação.— Culpada por quê? Você não fez nada de errado.— Eu deixei ela lá, Marina. Deixei minha mãe sozinha com ele. Como posso simplesmente ir embora e fingir que está tudo bem?— Isa, você não deixou ela. Você foi expulsa. E você fez tudo o que pôde para ajudá-la. Quantas vezes você tentou convencê-la a sair daquela situação? Quantas vezes você chamou a polícia, implorou, chorou?Eu olhei p
A casa da minha mãe parecia menor do que eu lembrava. O portão rangia ao ser aberto, como se reclamasse da minha presença depois de tanto tempo. O jardim, outrora cheio de flores, agora estava quase abandonado, com apenas algumas margaridas resistindo bravamente entre as ervas daninhas. Respirei fundo, sentindo o cheiro da terra molhada e do jasmim que ainda insistia em florescer no canto do muro. Era o mesmo cheiro da minha infância.— Isa! — A voz da minha mãe veio da porta, e eu olhei para cima. Ela estava lá, com um vestido simples e um sorriso que iluminava o rosto cansado.Meu coração apertou. Era a mesma mulher que me embalava nos braços quando eu era criança, que cantava para eu dormir e fazia bolos de chocolate nos domingos de manhã. Mas agora, suas mãos tremiam levemente, e seus olhos estavam cercados por marcas de preocupação.— Oi, mãe — eu disse, tentando disfarçar a emoção na voz. Caminhei até ela, e ela me abraçou com uma força que eu não esperava.— Entra, entra! Fiz b
O dia começou como todos os outros: com uma xícara de café amargo e uma pilha de relatórios que parecia nunca diminuir. A Benites Security não perdoava, e eu tampouco. Reuniões atrás de reuniões, clientes exigentes, funcionários que precisavam de orientação... às vezes, eu me perguntava se tudo aquilo valia a pena. Mas era minha responsabilidade, meu legado. E, no fim do dia, era tudo o que eu tinha.— Senhor Benites, os representantes da GlobalTech estão na sala de conferências — minha secretária anunciou, interrompendo meus pensamentos. Ela era a única pessoa na empresa que ainda me tratava com um olhar carinhoso, como se soubesse que, por trás da fachada de CEO rabugento, havia um homem cansado.— Obrigado — respondi, levantando-me da mesa. — Diga a eles que estarei lá em cinco minutos.Ela acenou com a cabeça, mas antes de sair, lançou-me um olhar preocupado.— Você já almoçou, senhor Benites?— Não há tempo — respondi secamente, ajustando o nó da gravata.As reuniões se arrastara
O som do avião tocando o solo me fez apertar ainda mais a bolsa contra o peito. Meus dedos tremiam levemente, e eu respirei fundo, tentando me convencer de que aquilo era real. Eu, Isabella, uma garota que nunca tinha saído da minha cidade, estava desembarcando na Espanha. O oceano Atlântico agora ficava para trás, e com ele, toda a segurança do que eu conhecia.O coração batia acelerado enquanto eu caminhava pelo corredor do aeroporto, seguindo o fluxo de passageiros. As luzes brilhantes e o burburinho de vozes em línguas estrangeiras me deixavam ainda mais nervosa. Apertei a bolsa com mais força, como se ela fosse meu único elo com o mundo que eu deixara para trás. Dentro dela, estavam minhas coisas mais preciosas: uma foto da minha família, um terço que minha avó me dera e um caderno onde eu anotava meus sonhos."Respira, Isa," eu me disse, baixinho. "Você conseguiu chegar até aqui. Agora é só seguir em frente."Mas o medo insistia em não me abandonar. E se eu não fosse boa o sufic
O carro parou em frente à casa, e eu desliguei o motor, mas não saí imediatamente. Por um momento, fiquei ali, sentado, tentando organizar os pensamentos que pareciam ter virado um turbilhão desde que aquela brasileira entrou no carro.Giulia já estava se mexendo no banco de trás, ansiosa para sair e mostrar tudo para Isabella. Eu olhei pelo retrovisor e vi a nova babá sorrindo para ela, com aqueles olhos escuros e brilhantes que pareciam capturar toda a luz do dia. Seus longos cabelos castanhos caíam em ondas suaves sobre os ombros, e sua boca rosada se curvava em um sorriso que, mesmo sendo dirigido à minha filha, fez algo dentro de mim se agitar.— Pai, vamos! — Giulia gritou, interrompendo meus pensamentos.— Já vou, princesa — respondi, saindo do carro e abrindo a porta para ela.Enquanto ajudava Giulia a sair da cadeirinha, meus olhos se voltaram para Isabella, que já estava de pé ao lado do carro, olhando para a casa com uma expressão de admiração. A mansão era imponente, com s
O despertador do meu celular berrou no meio da madrugada, e eu quase morri.— Ai, meu Deus do céu... — grunhi, atacando o botão de soneca como se fosse uma cobra.Na tela, a mensagem do Senhor Benites piscava com a delicadeza de um bilhete de sequestro:"Giulia acorda às 6h30. Uniforme no armário. Use o carro da garagem."Nem um "por favor", nem um "bom dia". Só ordens, como se eu fosse a Alexa de pelúcia dele.— Tá bom, chefe — cuspi no travesseiro antes de me arrastar para o banheiro.Se ao menos ele tivesse aparecido para a tal reunião da noite passada, em vez de evaporar assim que Giulia pegou no sono. Mas não. Miguel Benites, campeão mundial de fugir de conversas que não sejam sobre o clima.O quarto de Giulia parecia a cena de um crime. A mini diva estava enrolada no cobertor como um taquito de cabelos loiros, abraçada ao Sr. Bolhas — o urso que, segundo ela, "só mente para adultos".— Bom dia, princesa... — sacudi seu ombro.Ela abriu um olho, puxou o cobertor até o nariz e anu
O café na minha frente já estava frio. Não sei quando esqueci de bebê-lo. Minha atenção estava presa na janela atrás do acionista alemão, onde os reflexos do sol em Sevilha desenhavam padrões que lembravam os cabelos da Giulia correndo para a escola.—...e com esses números do terceiro trimestre, projetamos...A voz do homem se perdia em meio ao turbilhão na minha cabeça. Será que a Isabella lembrou da pasta de dentes com sabor de morango que Giulia gosta? Ela sempre faz birra com a de menta.—Miguel?Pisquei. Os quatro homens na sala estavam me encarando. O francês, Lefèvre, tinha aquela expressão de quem repetira a pergunta três vezes.— Peço desculpas. Poderia dizer novamente?Lefèvre suspirou, mas reiniciou a explicação sobre os mercados asiáticos. Tentei me concentrar nos gráficos, mas os números dançavam na tela, transformando-se em horários: 8h30 - aula de ballet, 12h - almoço sem glúten (Maria deixou anotado), 15h - pintura.Um toque no meu celular me fez pular. Uma foto da Gi