O dia foi longo. Mais longo do que o normal, se é que isso é possível. Meus pés doíam como se tivessem sido esmagados por uma prensa, e minhas costas pareciam carregar o peso de todos os lençóis que troquei hoje. Trabalhar como camareira em um hotel cinco estrelas pode parecer glamouroso para alguns, mas a realidade é bem diferente. Quartos imensos, banheiros gigantes e clientes exigentes que nunca estão satisfeitos. Hoje, felizmente, não tenho aula na faculdade. Meu único plano é chegar em casa, tomar um banho quente e tentar estudar um pouco antes que o cansaço me derrube.
Entrei no ônibus quase arrastando os pés. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e encostei minha cabeça no vidro frio. O barulho do motor e o balanço do veículo quase me fazem adormecer, mas resisto. Preciso checar meu e-mail. Talvez a professora Ana tenha respondido sobre o programa de au pair. Ela me ajudou a me inscrever há semanas, e desde então vivo checando a caixa de entrada como uma louca.
Abri o aplicativo do celular, segurando a respiração enquanto esperava os e-mails carregarem. E então, lá estava. Um e-mail da agência do programa. Meu coração disparou, e minhas mãos tremeram enquanto abria a mensagem.
"Prezada Isabella,
É com grande satisfação que informamos que você foi pré-selecionada para o programa de au pair na Espanha..."Não consegui ler o resto. Meus olhos encheram de lágrimas, e eu tive que cobrir a boca para não gritar de alegria ali, no meio do ônibus. Era a minha chance. Minha única chance de sair dali, de dar uma vida melhor para minha mãe e, quem sabe, encontrar um pouco de paz para mim mesma. Passei o resto do caminho rezando, agradecendo a Deus, ao universo, a qualquer coisa que pudesse estar me ouvindo. Finalmente, algo estava dando certo.
Quando o ônibus parou no meu ponto, desci rapidamente, quase tropeçando na calçada. Caminhei até em casa com um misto de euforia e medo. Como eu ia contar para a mãe? Ela ia entender? Ia me apoiar? Essas perguntas ecoavam na minha mente enquanto abria a porta de casa.
O cheiro de álcool atingiu meu nariz assim que entrei. Era forte, quase insuportável. Minha mãe estava na cozinha, de costas para mim, mexendo algo no fogão. Ela não se virou quando eu entrei, e eu já sabia o que tinha acontecido. Meu coração, que há pouco estava leve, agora pesava como uma pedra.
— Mãe... — chamei, tentando manter a voz firme.
— Isa, você chegou — ela respondeu, sem se virar. A voz dela estava cansada, distante.Dei um passo em direção a ela, sentindo o cheiro de cachaça ainda mais forte.
— O que aconteceu? Ele fez algo de novo? — Não foi nada, filha. Só um mal-entendido.Um mal-entendido. Quantas vezes eu já ouvi essa frase? Quantas vezes eu chorei, implorei, chamei a polícia, e ela sempre voltava para ele, sempre dizia que era um mal-entendido. Dessa vez, eu não consegui segurar.
— Mãe, por favor. Você precisa sair dessa. Ele não vai mudar. Eu não aguento mais ver você assim.
— Isa, não comece. Eu estou bem. Ele não fez nada.Eu queria gritar, sacudi-la, fazer ela ver que não estava bem. Mas sabia que não adiantava. Ela estava presa numa teia que eu não conseguia romper. Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Mãe, recebi uma resposta do programa de au pair. Fui pré-selecionada.
Ela finalmente se virou, os olhos vermelhos e inchados, mas com um brilho de esperança. — Sério, filha? Isso é maravilhoso! — Ela limpou as mãos no avental e veio me abraçar.Senti o cheiro de álcool misturado com o perfume que ela sempre usava, aquele cheiro que me lembrava infância, segurança, amor. E, por um momento, me senti culpada por querer ir embora.
— Mãe, eu não vou. Não posso te deixar aqui sozinha.
Ela afastou-se de mim, segurando meus ombros com firmeza. — Não fale besteira, Isa. Você vai sim. Eu não vou deixar que os meus erros atrapalhem os seus sonhos. — Mas, mãe... — Não tem "mas". Você vai, e vai ser feliz. Eu vou ficar bem.Ela voltou para o fogão, como se a conversa tivesse terminado. Eu fiquei ali, parada, sentindo meu coração se partir em mil pedaços. Como eu podia ir embora sabendo que ela ficaria aqui, presa nesse ciclo de dor? Mas, ao mesmo tempo, como eu podia desperdiçar essa chance?
— Mãe... — tentei de novo, mas ela não respondeu.
Voltei para o meu quarto, fechando a porta com cuidado. Sentei na cama, olhando para o e-mail no celular. A resposta estava ali, clara como o dia. Eu tinha uma chance. Mas o preço parecia alto demais.
Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distr
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e
A casa da Marina sempre foi meu refúgio. Desde que me mudei para cá, depois daquela noite terrível em que fui expulsa de casa, ela tem sido minha âncora. Marina é mais que uma prima; é a irmã que nunca tive. E hoje, mais do que nunca, eu precisava dela.— Isa, você está bem? — Marina perguntou, colocando uma xícara de chá na minha frente. O cheiro de camomila era reconfortante, mas nem mesmo isso conseguia acalmar minha mente agitada.— Não sei — respondi, segurando a xícara com as duas mãos. — Acho que estou me sentindo... culpada.Marina sentou-se ao meu lado no sofá, seus olhos cheios de preocupação.— Culpada por quê? Você não fez nada de errado.— Eu deixei ela lá, Marina. Deixei minha mãe sozinha com ele. Como posso simplesmente ir embora e fingir que está tudo bem?— Isa, você não deixou ela. Você foi expulsa. E você fez tudo o que pôde para ajudá-la. Quantas vezes você tentou convencê-la a sair daquela situação? Quantas vezes você chamou a polícia, implorou, chorou?Eu olhei p
A casa da minha mãe parecia menor do que eu lembrava. O portão rangia ao ser aberto, como se reclamasse da minha presença depois de tanto tempo. O jardim, outrora cheio de flores, agora estava quase abandonado, com apenas algumas margaridas resistindo bravamente entre as ervas daninhas. Respirei fundo, sentindo o cheiro da terra molhada e do jasmim que ainda insistia em florescer no canto do muro. Era o mesmo cheiro da minha infância.— Isa! — A voz da minha mãe veio da porta, e eu olhei para cima. Ela estava lá, com um vestido simples e um sorriso que iluminava o rosto cansado.Meu coração apertou. Era a mesma mulher que me embalava nos braços quando eu era criança, que cantava para eu dormir e fazia bolos de chocolate nos domingos de manhã. Mas agora, suas mãos tremiam levemente, e seus olhos estavam cercados por marcas de preocupação.— Oi, mãe — eu disse, tentando disfarçar a emoção na voz. Caminhei até ela, e ela me abraçou com uma força que eu não esperava.— Entra, entra! Fiz b
O dia começou como todos os outros: com uma xícara de café amargo e uma pilha de relatórios que parecia nunca diminuir. A Benites Security não perdoava, e eu tampouco. Reuniões atrás de reuniões, clientes exigentes, funcionários que precisavam de orientação... às vezes, eu me perguntava se tudo aquilo valia a pena. Mas era minha responsabilidade, meu legado. E, no fim do dia, era tudo o que eu tinha.— Senhor Benites, os representantes da GlobalTech estão na sala de conferências — minha secretária anunciou, interrompendo meus pensamentos. Ela era a única pessoa na empresa que ainda me tratava com um olhar carinhoso, como se soubesse que, por trás da fachada de CEO rabugento, havia um homem cansado.— Obrigado — respondi, levantando-me da mesa. — Diga a eles que estarei lá em cinco minutos.Ela acenou com a cabeça, mas antes de sair, lançou-me um olhar preocupado.— Você já almoçou, senhor Benites?— Não há tempo — respondi secamente, ajustando o nó da gravata.As reuniões se arrastara
O som do avião tocando o solo me fez apertar ainda mais a bolsa contra o peito. Meus dedos tremiam levemente, e eu respirei fundo, tentando me convencer de que aquilo era real. Eu, Isabella, uma garota que nunca tinha saído da minha cidade, estava desembarcando na Espanha. O oceano Atlântico agora ficava para trás, e com ele, toda a segurança do que eu conhecia.O coração batia acelerado enquanto eu caminhava pelo corredor do aeroporto, seguindo o fluxo de passageiros. As luzes brilhantes e o burburinho de vozes em línguas estrangeiras me deixavam ainda mais nervosa. Apertei a bolsa com mais força, como se ela fosse meu único elo com o mundo que eu deixara para trás. Dentro dela, estavam minhas coisas mais preciosas: uma foto da minha família, um terço que minha avó me dera e um caderno onde eu anotava meus sonhos."Respira, Isa," eu me disse, baixinho. "Você conseguiu chegar até aqui. Agora é só seguir em frente."Mas o medo insistia em não me abandonar. E se eu não fosse boa o sufic
O carro parou em frente à casa, e eu desliguei o motor, mas não saí imediatamente. Por um momento, fiquei ali, sentado, tentando organizar os pensamentos que pareciam ter virado um turbilhão desde que aquela brasileira entrou no carro.Giulia já estava se mexendo no banco de trás, ansiosa para sair e mostrar tudo para Isabella. Eu olhei pelo retrovisor e vi a nova babá sorrindo para ela, com aqueles olhos escuros e brilhantes que pareciam capturar toda a luz do dia. Seus longos cabelos castanhos caíam em ondas suaves sobre os ombros, e sua boca rosada se curvava em um sorriso que, mesmo sendo dirigido à minha filha, fez algo dentro de mim se agitar.— Pai, vamos! — Giulia gritou, interrompendo meus pensamentos.— Já vou, princesa — respondi, saindo do carro e abrindo a porta para ela.Enquanto ajudava Giulia a sair da cadeirinha, meus olhos se voltaram para Isabella, que já estava de pé ao lado do carro, olhando para a casa com uma expressão de admiração. A mansão era imponente, com s
O despertador do meu celular berrou no meio da madrugada, e eu quase morri.— Ai, meu Deus do céu... — grunhi, atacando o botão de soneca como se fosse uma cobra.Na tela, a mensagem do Senhor Benites piscava com a delicadeza de um bilhete de sequestro:"Giulia acorda às 6h30. Uniforme no armário. Use o carro da garagem."Nem um "por favor", nem um "bom dia". Só ordens, como se eu fosse a Alexa de pelúcia dele.— Tá bom, chefe — cuspi no travesseiro antes de me arrastar para o banheiro.Se ao menos ele tivesse aparecido para a tal reunião da noite passada, em vez de evaporar assim que Giulia pegou no sono. Mas não. Miguel Benites, campeão mundial de fugir de conversas que não sejam sobre o clima.O quarto de Giulia parecia a cena de um crime. A mini diva estava enrolada no cobertor como um taquito de cabelos loiros, abraçada ao Sr. Bolhas — o urso que, segundo ela, "só mente para adultos".— Bom dia, princesa... — sacudi seu ombro.Ela abriu um olho, puxou o cobertor até o nariz e anu