O dia começou como todos os outros: com uma xícara de café amargo e uma pilha de relatórios que parecia nunca diminuir. A Benites Security não perdoava, e eu tampouco. Reuniões atrás de reuniões, clientes exigentes, funcionários que precisavam de orientação... às vezes, eu me perguntava se tudo aquilo valia a pena. Mas era minha responsabilidade, meu legado. E, no fim do dia, era tudo o que eu tinha.— Senhor Benites, os representantes da GlobalTech estão na sala de conferências — minha secretária anunciou, interrompendo meus pensamentos. Ela era a única pessoa na empresa que ainda me tratava com um olhar carinhoso, como se soubesse que, por trás da fachada de CEO rabugento, havia um homem cansado.— Obrigado — respondi, levantando-me da mesa. — Diga a eles que estarei lá em cinco minutos.Ela acenou com a cabeça, mas antes de sair, lançou-me um olhar preocupado.— Você já almoçou, senhor Benites?— Não há tempo — respondi secamente, ajustando o nó da gravata.As reuniões se arrastara
O som do avião tocando o solo me fez apertar ainda mais a bolsa contra o peito. Meus dedos tremiam levemente, e eu respirei fundo, tentando me convencer de que aquilo era real. Eu, Isabella, uma garota que nunca tinha saído da minha cidade, estava desembarcando na Espanha. O oceano Atlântico agora ficava para trás, e com ele, toda a segurança do que eu conhecia.O coração batia acelerado enquanto eu caminhava pelo corredor do aeroporto, seguindo o fluxo de passageiros. As luzes brilhantes e o burburinho de vozes em línguas estrangeiras me deixavam ainda mais nervosa. Apertei a bolsa com mais força, como se ela fosse meu único elo com o mundo que eu deixara para trás. Dentro dela, estavam minhas coisas mais preciosas: uma foto da minha família, um terço que minha avó me dera e um caderno onde eu anotava meus sonhos."Respira, Isa," eu me disse, baixinho. "Você conseguiu chegar até aqui. Agora é só seguir em frente."Mas o medo insistia em não me abandonar. E se eu não fosse boa o sufic
O carro parou em frente à casa, e eu desliguei o motor, mas não saí imediatamente. Por um momento, fiquei ali, sentado, tentando organizar os pensamentos que pareciam ter virado um turbilhão desde que aquela brasileira entrou no carro.Giulia já estava se mexendo no banco de trás, ansiosa para sair e mostrar tudo para Isabella. Eu olhei pelo retrovisor e vi a nova babá sorrindo para ela, com aqueles olhos escuros e brilhantes que pareciam capturar toda a luz do dia. Seus longos cabelos castanhos caíam em ondas suaves sobre os ombros, e sua boca rosada se curvava em um sorriso que, mesmo sendo dirigido à minha filha, fez algo dentro de mim se agitar.— Pai, vamos! — Giulia gritou, interrompendo meus pensamentos.— Já vou, princesa — respondi, saindo do carro e abrindo a porta para ela.Enquanto ajudava Giulia a sair da cadeirinha, meus olhos se voltaram para Isabella, que já estava de pé ao lado do carro, olhando para a casa com uma expressão de admiração. A mansão era imponente, com s
O despertador do meu celular berrou no meio da madrugada, e eu quase morri.— Ai, meu Deus do céu... — grunhi, atacando o botão de soneca como se fosse uma cobra.Na tela, a mensagem do Senhor Benites piscava com a delicadeza de um bilhete de sequestro:"Giulia acorda às 6h30. Uniforme no armário. Use o carro da garagem."Nem um "por favor", nem um "bom dia". Só ordens, como se eu fosse a Alexa de pelúcia dele.— Tá bom, chefe — cuspi no travesseiro antes de me arrastar para o banheiro.Se ao menos ele tivesse aparecido para a tal reunião da noite passada, em vez de evaporar assim que Giulia pegou no sono. Mas não. Miguel Benites, campeão mundial de fugir de conversas que não sejam sobre o clima.O quarto de Giulia parecia a cena de um crime. A mini diva estava enrolada no cobertor como um taquito de cabelos loiros, abraçada ao Sr. Bolhas — o urso que, segundo ela, "só mente para adultos".— Bom dia, princesa... — sacudi seu ombro.Ela abriu um olho, puxou o cobertor até o nariz e anu
O café na minha frente já estava frio. Não sei quando esqueci de bebê-lo. Minha atenção estava presa na janela atrás do acionista alemão, onde os reflexos do sol em Sevilha desenhavam padrões que lembravam os cabelos da Giulia correndo para a escola.—...e com esses números do terceiro trimestre, projetamos...A voz do homem se perdia em meio ao turbilhão na minha cabeça. Será que a Isabella lembrou da pasta de dentes com sabor de morango que Giulia gosta? Ela sempre faz birra com a de menta.—Miguel?Pisquei. Os quatro homens na sala estavam me encarando. O francês, Lefèvre, tinha aquela expressão de quem repetira a pergunta três vezes.— Peço desculpas. Poderia dizer novamente?Lefèvre suspirou, mas reiniciou a explicação sobre os mercados asiáticos. Tentei me concentrar nos gráficos, mas os números dançavam na tela, transformando-se em horários: 8h30 - aula de ballet, 12h - almoço sem glúten (Maria deixou anotado), 15h - pintura.Um toque no meu celular me fez pular. Uma foto da Gi
O cheiro da pizza invadia o carro enquanto eu dirigia para casa. Meus dedos tamborilavam contra o volante, a mente inquieta. Eu estava ansioso para ver Giulia. Isso era natural. Certo?Mas não era só isso.Desde que Isabella chegou, as noites em casa tinham se tornado diferentes. Mais leves. Menos silenciosas. Giulia sorria mais, falava sem parar sobre as brincadeiras e pequenas rotinas que criaram em poucos dias. E eu… bem, eu estava tentando não pensar demais nisso.Quando estacionei na garagem, esperei um segundo antes de sair do carro. O que eu estava fazendo? Era só um jantar. Giulia ficaria feliz com a pizza e dormiria cedo. Isabella terminaria seu turno e iria para o quarto de hóspedes.Rotina. Como sempre.Abri a porta, e o som de risadas ecoou pela sala.— Papai!Giulia veio correndo, os cabelos soltos, ainda com o collant do ballet por baixo de um casaco felpudo. Seus braços se fecharam ao redor das minhas pernas antes de erguer o rosto para mim.— Você trouxe?Sorri e ergui
O sol da manhã aquecia o parque, e a risada de Giulia se misturava ao canto dos pássaros enquanto ela corria em direção ao balanço. O vento bagunçava seus cachos escuros, e a energia transbordava de cada movimento dela.— Me empurra bem alto, Isa! Igual a um foguete!Sorri, segurando as correntes do balanço enquanto ela se ajeitava no assento.— Pronta para decolar?— Sim!Empurrei com delicadeza no começo, sentindo os pezinhos dela se balançarem no ar, mas logo aumentei a força. Giulia abriu os braços, rindo alto.— Mais alto!— Assim você vai acabar alcançando a lua!Ela jogou a cabeça para trás, gargalhando.— Mamãe também me empurrava bem alto.Meus dedos apertaram instintivamente a corrente do balanço, mas mantive minha expressão leve.— É mesmo?— Aham. Ela dizia que eu era a melhor astronauta do mundo!Meu coração apertou, mas continuei empurrando-a no mesmo ritmo. A naturalidade com que Giulia falava da mãe mostrava o quanto ela ainda estava presente em sua vida, mesmo sem est
O dia já havia começado mal.A notícia do prejuízo com a Larson & Sons chegou antes mesmo do meu segundo café. Meio milhão de euros evaporados por um erro de cálculo no sistema de segurança de um dos nossos estagiários. Já tivemos perdas grandes, mas nada tão grave. Agora, a sala de reuniões do décimo andar estava carregada de tensão, repleta de acionistas cujas expressões variavam entre decepção e fúria aberta.— Isso é inaceitável, Benites.O copo de água à minha frente parecia infinitamente mais interessante do que o rosto vermelho do diretor financeiro. Ele estava certo. Era minha culpa. Mas minha mente, nos últimos dias, estava em qualquer lugar, menos aqui.— Vamos resolver. — Minha voz saiu mais fria do que eu pretendia. — Revisamos os protocolos e compensamos a Larson.— Compensar? Eles já estão falando em rescindir o contrato!Meu celular vibrou no bolso. Uma mensagem de Maria: "Giulia quer saber se você vai ver o quadro dela na feira de artes. Disse que é uma surpresa."Feir