O dia já havia começado mal.A notícia do prejuízo com a Larson & Sons chegou antes mesmo do meu segundo café. Meio milhão de euros evaporados por um erro de cálculo no sistema de segurança de um dos nossos estagiários. Já tivemos perdas grandes, mas nada tão grave. Agora, a sala de reuniões do décimo andar estava carregada de tensão, repleta de acionistas cujas expressões variavam entre decepção e fúria aberta.— Isso é inaceitável, Benites.O copo de água à minha frente parecia infinitamente mais interessante do que o rosto vermelho do diretor financeiro. Ele estava certo. Era minha culpa. Mas minha mente, nos últimos dias, estava em qualquer lugar, menos aqui.— Vamos resolver. — Minha voz saiu mais fria do que eu pretendia. — Revisamos os protocolos e compensamos a Larson.— Compensar? Eles já estão falando em rescindir o contrato!Meu celular vibrou no bolso. Uma mensagem de Maria: "Giulia quer saber se você vai ver o quadro dela na feira de artes. Disse que é uma surpresa."Feir
Olhei para o reflexo no espelho pela terceira vez, alisando inutilmente o tecido do vestido florido. Simples demais? Talvez. O decote era discreto, as mangas levemente bufantes davam um toque romântico, e a saia rodava suavemente ao redor dos joelhos. Mas será que combinava com o luxo daquela escola?Já era tarde para mudar de roupa.O ronco do motor de um carro ecoou pela rua, e meu estômago deu um salto involuntário. Afastei a cortina apenas o suficiente para ver o veículo preto parar diante da casa. Ele veio.Miguel desceu do carro com a mesma postura impecável de sempre, o terno escuro ajustado com precisão ao corpo, a expressão séria escondendo qualquer traço do homem que um dia eu conheci de verdade.
A noite já caía quando saímos da feira de artes. Giulia falava sem parar no banco de trás, animada com as pinturas, os amigos e a sobremesa colorida que ganhou de um dos professores. O entusiasmo dela era contagiante, um contraste gritante com a calma habitual do meu carro.— Foi o melhor dia da escola! — ela declarou, balançando as perninhas para frente e para trás. — O papai viu tudo, Isa! Até os desenhos que eu fiz dele!Isabella, sentada ao meu lado, virou-se para sorrir.— Você desenha muito bem, Giulia. Acho que deveria pintar mais.— Eu vou! — Giulia concordou. — Mas agora eu tô com fome. Muita fome.
A manhã estava silenciosa quando saí do quarto, os primeiros raios de sol filtrando-se pelas janelas do corredor. Caminhei até o quarto de Giulia, pronta para acordá-la para a escola, mas assim que abri a porta, percebi que algo estava errado.Ela estava encolhida sob as cobertas, os pequenos braços abraçando o próprio corpo. Seus cachinhos escuros estavam grudados na testa, úmidos de suor. Franzi o cenho, me aproximando.— Gi? — chamei suavemente, sentando-me ao lado dela e pousando a mão em sua testa. Estava quente demais.Ela gemeu baixinho, abrindo os olhinhos pesados de sono e desconforto.— Minha barriguinha dói, Isa…Meu peito apertou. Passei a mão em seu rosto corado e me levantei imediatamente.— Espera um pouquinho, amor, eu já volto, tá?Saí do quarto rapidamente, chamando por Maria, a governanta.— Maria, Giulia está com febre e reclamando de dor na barriga. Pode ligar para o Miguel? Preciso avisá-lo que vamos levá-la ao hospital.Maria assentiu de imediato e pegou o telef
Meu coração martelava dentro do peito enquanto eu cruzava os corredores do hospital, o eco das solas dos meus sapatos soando alto demais contra o chão brilhante. Minha mente fervia com a lembrança da voz de Isabella ao telefone, dura e cortante, carregada de uma fúria que eu sabia ser justificada.Eu não atendi.Não porque não me importava, mas porque estava preso em uma maldita reunião com investidores que não aceitariam interrupções. O celular no silencioso, longe do meu alcance, enquanto minha filha estava aqui. Doente. Precisando de mim.Carmen foi quem me encontrou primeiro na saída da empresa, segurando o telefone de Maria com uma expressão carregada de desaprovação.— O senhor precisa ir ao hospital. Agora. — Ela não deu espaço para discussão, e eu nem tentei. Apenas saí dali o mais rápido possível.Agora, parado na porta do quarto onde Giulia estava internada, hesitei por um segundo. A visão à minha frente me atingiu de uma forma que não esperava.Giulia estava aninhada contra
Eu estava cansado, mais do que eu gostaria de admitir. O hospital era um lugar estranho para descanso, mas ainda assim, o som constante de monitores e a luz fria do ambiente me faziam sentir uma certa tranquilidade. Talvez porque eu sabia que minha filha estava segura, que ela não estava mais sofrendo com a febre alta que a arrastou até ali. Mas o que mais pesava sobre mim era a culpa. A culpa de não ter estado lá quando ela mais precisou.Ainda assim, não consegui ficar mais tempo trancado naquele quarto. O ar parecia denso demais, e minha cabeça não parava de girar. Quando saí, encontrei Isabella na cafeteria do hospital, sozinha, com um café à sua frente e um olhar perdido na janela. Estava escuro lá fora, e a luz fraca do ambiente refletia em seu rosto cansado.
O ar condicionado do hospital zumbia como um inseto insistente. Giulia dormia, seu rosto iluminado pelo brilho pálido do monitor cardíaco, que desenhava linhas verdes e serenas em seu ritmo. Eu me perguntava se ela sonhava. Se, em algum lugar naquela cabeça pequena, ainda havia espaço para sonhos que não fossem febre e névoas de medicamentos.Isabella se esticou na poltrona ao lado da cama, os ossos do pescoço estalando baixo. Ela não reclamou. Nunca reclamava. Mas eu vi a sombra de cansaço nos cantos dos seus olhos.— Você devia ir pra casa — falei, baixinho.Ela virou o rosto para mim, lenta, como se eu tivesse interrompido um pensamento profundo.— E deixar você aqui sozinho, encarando a bomba de soro como se fosse uma ameaça terrorista? — Ela apontou para o equipamento, que eu, de fato, estava estudando com desconfiança.— Eu não estava encarando. Só… verificando.— Verificando. — Ela repetiu, e pela primeira vez naquela noite, um fio de humor escorreu pela voz dela. — — Desculpe
O corredor do hospital cheirava a desinfetante e café requentado. Eu estava encostada na parede, observando Miguel falar com o médico quando os avós de Giulia apareceram.Não precisei de apresentações.A mulher – Dona Marta – tinha os mesmos olhos claros que Elena nas fotos espalhadas pela casa. O homem, alto e de postura rígida, carregava um urso de pelúcia enorme, embrulhado num laço que já começava a desfiar com a chuva.Giulia, sentada na cama, gritou:— Vovó! Vovô!Miguel virou-se tão rápido que quase derrubou a cadeira.— Marta. Roberto. — Ele engoliu em seco. — Não precisavam ter vindo. A médica já deu alta.— Alta? — Dona Marta ignorou o comentário, passando direto por ele para abraçar Giulia. — Minha netinha, que susto você nos de