Olhei para o reflexo no espelho pela terceira vez, alisando inutilmente o tecido do vestido florido. Simples demais? Talvez. O decote era discreto, as mangas levemente bufantes davam um toque romântico, e a saia rodava suavemente ao redor dos joelhos. Mas será que combinava com o luxo daquela escola?
Já era tarde para mudar de roupa.
O ronco do motor de um carro ecoou pela rua, e meu estômago deu um salto involuntário. Afastei a cortina apenas o suficiente para ver o veículo preto parar diante da casa. Ele veio.
Miguel desceu do carro com a mesma postura impecável de sempre, o terno escuro ajustado com precisão ao corpo, a expressão séria escondendo qualquer traço do homem que um dia eu conheci de verdade.
A noite já caía quando saímos da feira de artes. Giulia falava sem parar no banco de trás, animada com as pinturas, os amigos e a sobremesa colorida que ganhou de um dos professores. O entusiasmo dela era contagiante, um contraste gritante com a calma habitual do meu carro.— Foi o melhor dia da escola! — ela declarou, balançando as perninhas para frente e para trás. — O papai viu tudo, Isa! Até os desenhos que eu fiz dele!Isabella, sentada ao meu lado, virou-se para sorrir.— Você desenha muito bem, Giulia. Acho que deveria pintar mais.— Eu vou! — Giulia concordou. — Mas agora eu tô com fome. Muita fome.
A manhã estava silenciosa quando saí do quarto, os primeiros raios de sol filtrando-se pelas janelas do corredor. Caminhei até o quarto de Giulia, pronta para acordá-la para a escola, mas assim que abri a porta, percebi que algo estava errado.Ela estava encolhida sob as cobertas, os pequenos braços abraçando o próprio corpo. Seus cachinhos escuros estavam grudados na testa, úmidos de suor. Franzi o cenho, me aproximando.— Gi? — chamei suavemente, sentando-me ao lado dela e pousando a mão em sua testa. Estava quente demais.Ela gemeu baixinho, abrindo os olhinhos pesados de sono e desconforto.— Minha barriguinha dói, Isa…Meu peito apertou. Passei a mão em seu rosto corado e me levantei imediatamente.— Espera um pouquinho, amor, eu já volto, tá?Saí do quarto rapidamente, chamando por Maria, a governanta.— Maria, Giulia está com febre e reclamando de dor na barriga. Pode ligar para o Miguel? Preciso avisá-lo que vamos levá-la ao hospital.Maria assentiu de imediato e pegou o telef
Meu coração martelava dentro do peito enquanto eu cruzava os corredores do hospital, o eco das solas dos meus sapatos soando alto demais contra o chão brilhante. Minha mente fervia com a lembrança da voz de Isabella ao telefone, dura e cortante, carregada de uma fúria que eu sabia ser justificada.Eu não atendi.Não porque não me importava, mas porque estava preso em uma maldita reunião com investidores que não aceitariam interrupções. O celular no silencioso, longe do meu alcance, enquanto minha filha estava aqui. Doente. Precisando de mim.Carmen foi quem me encontrou primeiro na saída da empresa, segurando o telefone de Maria com uma expressão carregada de desaprovação.— O senhor precisa ir ao hospital. Agora. — Ela não deu espaço para discussão, e eu nem tentei. Apenas saí dali o mais rápido possível.Agora, parado na porta do quarto onde Giulia estava internada, hesitei por um segundo. A visão à minha frente me atingiu de uma forma que não esperava.Giulia estava aninhada contra
O sol já se punha sobre São Paulo quando finalmente saí da faculdade. Meus pés doíam depois de horas em pé, limpando quartos de hotel antes das aulas, e minha mochila parecia pesar o dobro do normal com os livros que eu mal tinha tempo de abrir. O cansaço era tanto que até respirar parecia exigir um esforço extra.Com um suspiro, caminhei até o ponto de ônibus, onde já se formava uma pequena multidão de pessoas igualmente exaustas. O trânsito caótico da cidade não perdoava ninguém, e o ônibus que eu precisava pegar sempre demorava mais do que deveria. Enquanto esperava, encostei minha mochila no chão e fechei os olhos por um instante, tentando me convencer de que ainda tinha energia para o trajeto de quase uma hora até casa.Quando o ônibus finalmente chegou, quase não consegui subir os degraus.Meu corpo pedia descanso, mas minha mente sabia que o dia ainda não tinha acabado. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e deixei minha mochila no c
O despertador tocou às 5h30, mas eu já estava acordado. Meu corpo parece ter um relógio interno que não me permite descansar por muito tempo. Enquanto me vestia, mentalizava a agenda do dia: reuniões, contratos, clientes. Tudo precisava ser perfeito. Tomei meu café preto, comi duas torradas sem muita vontade e dei uma olhada rápida nas notícias do mercado. Giulia ainda dormia, e deixei um bilhete para a governanta, como sempre faço, com instruções sobre o que ela deve comer e vestir. Não posso falhar com ela. Nunca.No carro, revi relatórios no tablet. A Benites Seguridad é meu legado, minha responsabilidade. Herdar o império do pai não foi fácil. Lembro das noites em claro estudando administração e finanças, das reuniões onde era tratado como um "menino mimado" até provar meu valor. Abdiquei de tudo: festas, amigos, até um noivado que não sobreviveu à minha dedicação obsessiva ao trabalho. Tudo para ser digno do nome Benites.Cheguei ao escritório e fui direto para a primeira reunião
O dia foi longo. Mais longo do que o normal, se é que isso é possível. Meus pés doíam como se tivessem sido esmagados por uma prensa, e minhas costas pareciam carregar o peso de todos os lençóis que troquei hoje. Trabalhar como camareira em um hotel cinco estrelas pode parecer glamouroso para alguns, mas a realidade é bem diferente. Quartos imensos, banheiros gigantes e clientes exigentes que nunca estão satisfeitos. Hoje, felizmente, não tenho aula na faculdade. Meu único plano é chegar em casa, tomar um banho quente e tentar estudar um pouco antes que o cansaço me derrube.Entrei no ônibus quase arrastando os pés. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e encostei minha cabeça no vidro frio. O barulho do motor e o balanço do veículo quase me fazem adormecer, mas resisto. Preciso checar meu e-mail. Talvez a professora Ana tenha respondido sobre o programa de au pair. Ela me ajudou a me inscrever há semanas, e desde então vivo checando a caixa
Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distr
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e