Eu estava cansado, mais do que eu gostaria de admitir. O hospital era um lugar estranho para descanso, mas ainda assim, o som constante de monitores e a luz fria do ambiente me faziam sentir uma certa tranquilidade. Talvez porque eu sabia que minha filha estava segura, que ela não estava mais sofrendo com a febre alta que a arrastou até ali. Mas o que mais pesava sobre mim era a culpa. A culpa de não ter estado lá quando ela mais precisou.
Ainda assim, não consegui ficar mais tempo trancado naquele quarto. O ar parecia denso demais, e minha cabeça não parava de girar. Quando saí, encontrei Isabella na cafeteria do hospital, sozinha, com um café à sua frente e um olhar perdido na janela. Estava escuro lá fora, e a luz fraca do ambiente refletia em seu rosto cansado.
O ar condicionado do hospital zumbia como um inseto insistente. Giulia dormia, seu rosto iluminado pelo brilho pálido do monitor cardíaco, que desenhava linhas verdes e serenas em seu ritmo. Eu me perguntava se ela sonhava. Se, em algum lugar naquela cabeça pequena, ainda havia espaço para sonhos que não fossem febre e névoas de medicamentos.Isabella se esticou na poltrona ao lado da cama, os ossos do pescoço estalando baixo. Ela não reclamou. Nunca reclamava. Mas eu vi a sombra de cansaço nos cantos dos seus olhos.— Você devia ir pra casa — falei, baixinho.Ela virou o rosto para mim, lenta, como se eu tivesse interrompido um pensamento profundo.— E deixar você aqui sozinho, encarando a bomba de soro como se fosse uma ameaça terrorista? — Ela apontou para o equipamento, que eu, de fato, estava estudando com desconfiança.— Eu não estava encarando. Só… verificando.— Verificando. — Ela repetiu, e pela primeira vez naquela noite, um fio de humor escorreu pela voz dela. — — Desculpe
O corredor do hospital cheirava a desinfetante e café requentado. Eu estava encostada na parede, observando Miguel falar com o médico quando os avós de Giulia apareceram.Não precisei de apresentações.A mulher – Dona Marta – tinha os mesmos olhos claros que Elena nas fotos espalhadas pela casa. O homem, alto e de postura rígida, carregava um urso de pelúcia enorme, embrulhado num laço que já começava a desfiar com a chuva.Giulia, sentada na cama, gritou:— Vovó! Vovô!Miguel virou-se tão rápido que quase derrubou a cadeira.— Marta. Roberto. — Ele engoliu em seco. — Não precisavam ter vindo. A médica já deu alta.— Alta? — Dona Marta ignorou o comentário, passando direto por ele para abraçar Giulia. — Minha netinha, que susto você nos de
Eles insistiram em vir. Disseram que seria só por uma noite, para ajudar na transição, para “facilitar a recuperação da Giulia”. Como se eu fosse um estorvo. Como se a presença deles fosse cura.A casa parecia menor com eles dentro. Dona Marta já estava na cozinha antes mesmo de eu terminar de tirar os sapatos, abrindo armários como quem revira segredos antigos.— Onde estão os panos de prato? Esses aqui estão manchados.Isabella, que estava cortando cenoura em rodelas perfeitas, respondeu com calma:— Os limpos estão na gaveta de baixo. Esses são os que usamos pra secar as mãos.— Ah. — Marta pegou um deles com dois dedos, como se estivesse recolhendo uma camisa no chão de um quarto de adolescente. — Elena tinha panos de linho. Brancos. Bordados à mão.Não respondi. Só fui até a sala, onde o senhor Roberto andava devagar, como se estivesse examinando um museu. Parou na estante. Eu sabia onde os olhos dele iam parar.A moldura virada.Ele não perguntou. Não precisava. Eu vi quando ele
O cheiro de baunilha e manteiga se espalhava pela cozinha como um abraço. Gosto de pensar que é isso que Giulia sente ao acordar: aconchego em forma de panqueca. A massa descansava numa tigela de cerâmica azul, e eu já havia aquecido a frigideira — minha missão da manhã era simples: fazer panquecas em formato de coração e ouvir o som leve dos passinhos dela vindo pelo corredor.Cortei as frutas com cuidado, formando pequenas flores com fatias de morango e kiwi. Queria que ela sorrisse. Depois de tantos dias nublados, qualquer pequeno raio de luz no rosto da Giulia me fazia respirar melhor.Ouvi passos leves no corredor, um arrastar de chinelos. Sorri antes mesmo de olhar.— Tá com cheiro de coisa boa — ela murmurou, surgindo com os cabelos bagunçados e os olhos ainda inchados de sono.— Tem uma menina gulosa por aqui que pediu panqueca em forma de coração. E eu, como boa cozinheira, obedeço ordens especiais.Ela riu, abraçando o urso com a voz da mãe e subindo numa das banquetas. Abai
A casa ficou em silêncio depois que o carro dos meus sogros saiu do condominio. Não um silêncio qualquer — era o tipo de silêncio que pesa nos ombros, denso de palavras que não foram ditas e da tensão que ainda pairava nos cantos da sala.Giulia brincava no tapete da sala com seus lápis de cor, murmurando alguma musiquinha inventada. Um arco-íris estranho nascia no papel à sua frente. Um pedaço era azul. Outro, marrom. Um rosa no meio, porque ela tinha dito que "arco-íris da mamãe precisa ser bonito".Sentei no sofá, ainda tentando respirar fundo. Os últimos dias tinham sido uma prova de resistência emocional. Cada frase da Dona Marta vinha carregada de julgamento, como se eu estivesse sempre devendo algo à memória de
Voltar ao escritório era quase um alívio. Quase.O elevador abriu as portas no andar de costume, com o mesmo chiado discreto de sempre, e fui recebido pelo cheiro de café e limpeza. Aquela rotina meticulosa que Carmem mantinha como um relógio suíço era reconfortante. Como se ali, pelo menos, as coisas ainda tivessem lógica.— Miguel! — A voz dela veio antes mesmo que eu cruzasse a porta de vidro. — Graças a Deus. Estava preocupada.Ela largou a caneca sobre a mesa e veio até mim com os braços abertos. O abraço apertado e firme que ela me deu me fez lembrar da minha mãe. Da época em que o mundo ainda fazia algum sentido.&mdas
O corredor da entrada da casa estava mais escuro que o normal. A lâmpada da frente piscava, teimando em morrer, e me deu vontade de trocá-la ali mesmo, antes que Marta descobrisse e fizesse um relatório oral sobre minha suposta negligência. Mas hoje... ela não estava lá. Pela primeira vez em dias, a casa me esperava em paz.Respirei fundo antes de girar a chave.O cheiro veio primeiro, aquele perfume de comida feita na hora, misturado com algo mais doce. Canela? Quando empurrei a porta, ouvi a voz baixa da Giulia vindo da sala.— ...e o urso disse: “eu também te amo, mamãe”.Isa.Sorri antes mesmo de vê-las.Larguei a pasta no aparador e caminhei devagar, só para observar. Giulia estava no colo dela, com um livro aberto sobre os joelhos. As duas dividiam uma manta felpuda, e o cabelo castanho de Isabella caía sobre o rosto, iluminado por uma luz quente de abajur. Ela parecia tranquila. Familiar. Como se aquela cena sempre tivesse existido — e eu é que estivesse atrasado para entender.
Eu podia jurar que meus dedos ainda carregavam o calor do rosto dele.Tinha voltado para o quarto da Giulia com a desculpa de conferir se ela estava coberta, mas a verdade era que eu precisava respirar. O ar na cozinha tinha ficado denso. Quente. Inabitável.Não foi um beijo. Não foi.Mas meu corpo não sabia disso.Aquela aproximação, o jeito como os olhos do Miguel pararam nos meus, como se vissem além aquilo tinha me atravessado como uma corrente elétrica. Por um segundo, desejei que ele não tivesse recuado. Por outro agradeci que tivesse.Eu não podia confundir as coisas. Não agora.Giulia dormia com o urso apertado contra o peito, e os dedinhos entrelaçados nos próprios cabelos. A coberta tinha escorregado para o lado, e eu a puxei de volta com delicadeza, aproveitando para deixar um beijo leve na testa dela.— Sonha com coisas bonitas, meu amor — sussurrei.Fiquei ali por mais um tempo. Só ouvindo a respiração ritmada, tentando me convencer de que o coração ainda batendo forte er