Voltar ao escritório era quase um alívio. Quase.
O elevador abriu as portas no andar de costume, com o mesmo chiado discreto de sempre, e fui recebido pelo cheiro de café e limpeza. Aquela rotina meticulosa que Carmem mantinha como um relógio suíço era reconfortante. Como se ali, pelo menos, as coisas ainda tivessem lógica.
— Miguel! — A voz dela veio antes mesmo que eu cruzasse a porta de vidro. — Graças a Deus. Estava preocupada.
Ela largou a caneca sobre a mesa e veio até mim com os braços abertos. O abraço apertado e firme que ela me deu me fez lembrar da minha mãe. Da época em que o mundo ainda fazia algum sentido.
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O corredor da entrada da casa estava mais escuro que o normal. A lâmpada da frente piscava, teimando em morrer, e me deu vontade de trocá-la ali mesmo, antes que Marta descobrisse e fizesse um relatório oral sobre minha suposta negligência. Mas hoje... ela não estava lá. Pela primeira vez em dias, a casa me esperava em paz.Respirei fundo antes de girar a chave.O cheiro veio primeiro, aquele perfume de comida feita na hora, misturado com algo mais doce. Canela? Quando empurrei a porta, ouvi a voz baixa da Giulia vindo da sala.— ...e o urso disse: “eu também te amo, mamãe”.Isa.Sorri antes mesmo de vê-las.Larguei a pasta no aparador e caminhei devagar, só para observar. Giulia estava no colo dela, com um livro aberto sobre os joelhos. As duas dividiam uma manta felpuda, e o cabelo castanho de Isabella caía sobre o rosto, iluminado por uma luz quente de abajur. Ela parecia tranquila. Familiar. Como se aquela cena sempre tivesse existido — e eu é que estivesse atrasado para entender.
Eu podia jurar que meus dedos ainda carregavam o calor do rosto dele.Tinha voltado para o quarto da Giulia com a desculpa de conferir se ela estava coberta, mas a verdade era que eu precisava respirar. O ar na cozinha tinha ficado denso. Quente. Inabitável.Não foi um beijo. Não foi.Mas meu corpo não sabia disso.Aquela aproximação, o jeito como os olhos do Miguel pararam nos meus, como se vissem além aquilo tinha me atravessado como uma corrente elétrica. Por um segundo, desejei que ele não tivesse recuado. Por outro agradeci que tivesse.Eu não podia confundir as coisas. Não agora.Giulia dormia com o urso apertado contra o peito, e os dedinhos entrelaçados nos próprios cabelos. A coberta tinha escorregado para o lado, e eu a puxei de volta com delicadeza, aproveitando para deixar um beijo leve na testa dela.— Sonha com coisas bonitas, meu amor — sussurrei.Fiquei ali por mais um tempo. Só ouvindo a respiração ritmada, tentando me convencer de que o coração ainda batendo forte er
Nada me causava mais pânico que aniversários infantis.E não era pelo bolo açucarado demais ou pela gritaria incessante. Era pela certeza absoluta de que eu seria o único homem sozinho. O único pai viúvo, deslocado, sentado em uma mesa coberta de confetes, cercado por casais que falariam da escola bilíngue e dos métodos revolucionários de educação positiva.Eu odiava aniversários infantis.— Todos os papais vão — disse Giulia, me olhando com aqueles olhos gigantes que sempre vencem.— Mas, filha, você vai estar com seus amiguinhos. Nem vai sentir minha falta.Ela cruzou os braços. Estávamos no café da manhã e a colher de cereal dela já nadava há minutos no leite.— Eu quero que você vá. Quero mostrar meu vestido novo. E a Júlia vai com os dois pais. E o Caio também. Só o Enzo que vai com a babá, e ele tem dois anos!O argumento era irrefutável. Até a última frase.Suspirei, ajeitando a camisa social enquanto olhava para o relógio.— Está bem. Eu vou. Mas... a Isa pode tirar o dia de f
A casa estava mergulhada em silêncio.Giulia dormia profundamente há pelo menos meia hora. Depois de um dia inteiro correndo atrás de piratas e comendo balas coloridas, ela apagara assim que encostou a cabeça no travesseiro.Eu desci para pegar um copo d’água e encontrei Miguel na cozinha, encostado na bancada, com uma xícara de chá nas mãos. Ele vestia uma camiseta cinza simples e uma calça de moletom escura. Descontraído. Um pouco desarrumado. E perigosamente encantador.— Chá? — ofereceu, ao me ver entrar. — Ainda tem um pouco da mistura que você trouxe do mercado.— O de camomila com limão? — sorri. — Meu favorito.Ele preparou uma caneca e me entregou. Nossos dedos se tocaram por um segundo e, como sempre, a faísca discreta apareceu. Mas, como sempre também, fingimos que não sentimos.Sentei na cadeira da cozinha enquanto ele voltava para a bancada, girando lentamente a própria caneca nas mãos.— Ela está tão feliz, Isa. — A voz dele era baixa. — Acho que... faz tempo que não via
A sala de reuniões ainda cheirava a café morno e frustração. A apresentação tinha corrido bem, mas eu mal consegui prestar atenção. Sorrisos ensaiados, comentários técnicos, promessas para o próximo trimestre... nada parecia importar.Saí de lá com o nó apertado no estômago.Voltei para minha sala, me joguei na cadeira de couro e encarei o teto por alguns segundos, como se ali fosse encontrar uma resposta que meu coração se recusava a formular.Carmem entrou sem bater — como sempre fazia — equilibrando uma bandeja com duas xícaras de café e a agenda do dia impressa.— Bom dia outra vez, chefe — disse com aquele sorriso maternal de quem me conhece há mais de vinte anos. — Reunião encerrada e sem grandes dramas. Estou quase chocada.— Quase — repeti, tentando sorrir, mas não saiu.Ela largou a agenda na mesa, puxou a caneta do coque impecável e começou a repassar os compromissos do dia.— Às treze, almoço com o doutor Álvaro na Cantina do Centro. Às quinze e trinta, conferência com a eq
Acordei antes do despertador tocar.Não era exatamente um feito raro — o sono tem me escapado com frequência nos últimos meses. Mas naquela manhã, havia algo diferente no ar. Talvez fosse o cheiro de café vindo da cozinha, ou o som abafado da voz suave de Isabella cantando baixinho uma música infantil. Ou talvez fosse só essa inquietação que tenho sentido desde que ela chegou — uma presença silenciosa que, aos poucos, tem se infiltrado nos espaços onde antes só existia ausência.Desci as escadas devagar, ainda sem gravata, os botões da camisa meio tortos. A cozinha estava banhada pela luz morna do sol da manhã. Isabella estava de costas, os cabelos presos em um coque improvisado, o avental florido um pouco torto no corpo esguio. Giulia estava sentada à mesa, balançando as perninhas, desenhando algo com lápis de cor.— Bom dia — murmurei, e as duas viraram ao mesmo tempo.Giulia abriu um sorriso largo. Isabella sorriu também, mas de um jeito mais contido, respeitoso. Ainda assim, seus
O silêncio da casa no meio da tarde era uma bênção rara. Giulia tinha acabado de sair com o pai — um passeio rápido até a livraria para comprar um livro novo para o projeto de leitura da escola. Eu tinha ficado para trás por escolha própria. Queria lavar o cabelo com calma, organizar as coisas da semana e, principalmente, ligar para o Brasil.Fazia alguns dias que minha mãe não mandava nenhuma mensagem, o que, no nosso caso, sempre era um mau sinal. Ou ela estava sobrecarregada com os turnos no hospital, ou... algo tinha acontecido com meu pai.Sentei no sofá da varanda com o celular nas mãos, as pernas cruzadas, o coração já em descompasso. Liguei. Ela atendeu no terceiro toque.— Isa, filha!A voz dela tinha aquele calor familiar, mas algo no tom me pareceu hesitante. Mãe sempre sente.— Oi, mãe. Tá tudo bem por aí?Ela suspirou do outro lado da linha. E foi nesse suspiro que eu soube que alguma coisa tinha mudado.— Eu ia te ligar hoje. Não queria te preocupar antes...— Aconteceu
Fiquei observando Giulia dormir por longos minutos depois de colocá-la na cama. Ela ainda segurava o livrinho novo contra o peito, os cílios longos descansando nas bochechas coradas. Parecia tão em paz que doía saber o quanto essa paz tinha custado caro. Principalmente para ela.Fechei a porta do quarto devagar e desci, sabendo que Isabella ainda estava acordada. O cheiro de chá vinha da cozinha, misturado ao som abafado de louça sendo organizada. O som do cotidiano que, de alguma forma, agora me acalmava.Ela me olhou ao me ver entrar. O cabelo preso em um coque improvisado, uma blusa velha que usava em casa e os olhos — sempre os olhos — atentos, gentis.— Chá? — perguntou, erguendo a chaleira.
Último capítulo