O silêncio da casa no meio da tarde era uma bênção rara. Giulia tinha acabado de sair com o pai — um passeio rápido até a livraria para comprar um livro novo para o projeto de leitura da escola. Eu tinha ficado para trás por escolha própria. Queria lavar o cabelo com calma, organizar as coisas da semana e, principalmente, ligar para o Brasil.Fazia alguns dias que minha mãe não mandava nenhuma mensagem, o que, no nosso caso, sempre era um mau sinal. Ou ela estava sobrecarregada com os turnos no hospital, ou... algo tinha acontecido com meu pai.Sentei no sofá da varanda com o celular nas mãos, as pernas cruzadas, o coração já em descompasso. Liguei. Ela atendeu no terceiro toque.— Isa, filha!A voz dela tinha aquele calor familiar, mas algo no tom me pareceu hesitante. Mãe sempre sente.— Oi, mãe. Tá tudo bem por aí?Ela suspirou do outro lado da linha. E foi nesse suspiro que eu soube que alguma coisa tinha mudado.— Eu ia te ligar hoje. Não queria te preocupar antes...— Aconteceu
Fiquei observando Giulia dormir por longos minutos depois de colocá-la na cama. Ela ainda segurava o livrinho novo contra o peito, os cílios longos descansando nas bochechas coradas. Parecia tão em paz que doía saber o quanto essa paz tinha custado caro. Principalmente para ela.Fechei a porta do quarto devagar e desci, sabendo que Isabella ainda estava acordada. O cheiro de chá vinha da cozinha, misturado ao som abafado de louça sendo organizada. O som do cotidiano que, de alguma forma, agora me acalmava.Ela me olhou ao me ver entrar. O cabelo preso em um coque improvisado, uma blusa velha que usava em casa e os olhos — sempre os olhos — atentos, gentis.— Chá? — perguntou, erguendo a chaleira.
A tarde caiu devagar naquele domingo preguiçoso. Giulia dormia há mais de uma hora, depois de correr pelo jardim com a energia de uma criança que ainda não percebe que o mundo pode ser cruel.Eu estava no escritório, revisando alguns documentos que Carmem havia deixado em minha pasta. Ainda era cedo pra retomar compromissos de verdade, mas algo em mim queria me manter ocupado. Ou talvez... apenas distraído.Ouvi passos leves no corredor, e logo depois, Isabella surgiu na porta.— Espero não estar interrompendo — disse, com a voz suave, apoiando-se no batente da porta com um copo d’água na mão. — Você me disse que eu poderia pegar os... livros caso quisesse ler.
O sol já se punha sobre São Paulo quando finalmente saí da faculdade. Meus pés doíam depois de horas em pé, limpando quartos de hotel antes das aulas, e minha mochila parecia pesar o dobro do normal com os livros que eu mal tinha tempo de abrir. O cansaço era tanto que até respirar parecia exigir um esforço extra.Com um suspiro, caminhei até o ponto de ônibus, onde já se formava uma pequena multidão de pessoas igualmente exaustas. O trânsito caótico da cidade não perdoava ninguém, e o ônibus que eu precisava pegar sempre demorava mais do que deveria. Enquanto esperava, encostei minha mochila no chão e fechei os olhos por um instante, tentando me convencer de que ainda tinha energia para o trajeto de quase uma hora até casa.Quando o ônibus finalmente chegou, quase não consegui subir os degraus.Meu corpo pedia descanso, mas minha mente sabia que o dia ainda não tinha acabado. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e deixei minha mochila no c
O despertador tocou às 5h30, mas eu já estava acordado. Meu corpo parece ter um relógio interno que não me permite descansar por muito tempo. Enquanto me vestia, mentalizava a agenda do dia: reuniões, contratos, clientes. Tudo precisava ser perfeito. Tomei meu café preto, comi duas torradas sem muita vontade e dei uma olhada rápida nas notícias do mercado. Giulia ainda dormia, e deixei um bilhete para a governanta, como sempre faço, com instruções sobre o que ela deve comer e vestir. Não posso falhar com ela. Nunca.No carro, revi relatórios no tablet. A Benites Seguridad é meu legado, minha responsabilidade. Herdar o império do pai não foi fácil. Lembro das noites em claro estudando administração e finanças, das reuniões onde era tratado como um "menino mimado" até provar meu valor. Abdiquei de tudo: festas, amigos, até um noivado que não sobreviveu à minha dedicação obsessiva ao trabalho. Tudo para ser digno do nome Benites.Cheguei ao escritório e fui direto para a primeira reunião
O dia foi longo. Mais longo do que o normal, se é que isso é possível. Meus pés doíam como se tivessem sido esmagados por uma prensa, e minhas costas pareciam carregar o peso de todos os lençóis que troquei hoje. Trabalhar como camareira em um hotel cinco estrelas pode parecer glamouroso para alguns, mas a realidade é bem diferente. Quartos imensos, banheiros gigantes e clientes exigentes que nunca estão satisfeitos. Hoje, felizmente, não tenho aula na faculdade. Meu único plano é chegar em casa, tomar um banho quente e tentar estudar um pouco antes que o cansaço me derrube.Entrei no ônibus quase arrastando os pés. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e encostei minha cabeça no vidro frio. O barulho do motor e o balanço do veículo quase me fazem adormecer, mas resisto. Preciso checar meu e-mail. Talvez a professora Ana tenha respondido sobre o programa de au pair. Ela me ajudou a me inscrever há semanas, e desde então vivo checando a caixa
Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distr
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e