O sol de Sevilha já começava a aquecer as ruas de pedra quando peguei a mãozinha de Giulia e a conduzi para fora do carro. Ela saltitava ao meu lado, o vestido leve balançando, o sorriso iluminando o mundo como só ela sabia fazer.Decidi que hoje seria um dia só nosso. Precisávamos disso — eu precisava disso.— Onde a gente vai, papai? — ela perguntou, olhando para cima com os olhos curiosos.Sorri, apertando seus dedos pequenos entre os meus.— Vamos tomar café naquela cafeteria que você gosta. A que tem churros.Ela soltou uma risadinha animada e correu na frente, me puxando pela mão. O cheiro de açúcar e café recém-passado preencheu o ar assim que empurramos a porta de vidro.Sentamo-nos em uma mesinha perto da janela, e logo uma moça simpática veio nos atender. Pedi um café forte para mim, chocolate quente para Giulia e, claro, uma porção generosa de churros.Enquanto esperávamos, observei minha filha apoiando o queixo nas mãos, olhando as pessoas passando lá fora. Tão pequena, tã
O som dos saltos de Carmen ecoava discretamente no corredor enquanto ela se aproximava da minha sala. A mulher tinha um jeito firme e maternal que sempre me acalmava, como se fosse uma âncora em meio à bagunça que às vezes minha vida se tornava.Estava sentado atrás da mesa, girando uma caneta entre os dedos, olhando para a tela do computador sem realmente enxergá-la. Meus pensamentos estavam longe — muito longe.Em Isabella.Em Giulia.Em nós.Carmen bateu na porta de madeira antes de entrar com sua costumeira eficiência.— Señor De La Vega, trouxe os contratos para o senhor revisar antes da reunião de amanhã.Assenti, aceitando a pasta que ela me estendia. Mas ela não se moveu para sair.Seus olhos atentos, já marcados por anos de vida e sabedoria, me estudaram com atenção.— Está tudo bem, Miguel?Suspirei, largando a caneta sobre a mesa.— Não, Carmen. — Confessei, a voz mais baixa do que pretendia. — Eu não sei o que fazer.Ela sorriu com ternura e fechou a porta atrás de si, com
O sol já se punha sobre São Paulo quando finalmente saí da faculdade. Meus pés doíam depois de horas em pé, limpando quartos de hotel antes das aulas, e minha mochila parecia pesar o dobro do normal com os livros que eu mal tinha tempo de abrir. O cansaço era tanto que até respirar parecia exigir um esforço extra.Com um suspiro, caminhei até o ponto de ônibus, onde já se formava uma pequena multidão de pessoas igualmente exaustas. O trânsito caótico da cidade não perdoava ninguém, e o ônibus que eu precisava pegar sempre demorava mais do que deveria. Enquanto esperava, encostei minha mochila no chão e fechei os olhos por um instante, tentando me convencer de que ainda tinha energia para o trajeto de quase uma hora até casa.Quando o ônibus finalmente chegou, quase não consegui subir os degraus.Meu corpo pedia descanso, mas minha mente sabia que o dia ainda não tinha acabado. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e deixei minha mochila no c
O despertador tocou às 5h30, mas eu já estava acordado. Meu corpo parece ter um relógio interno que não me permite descansar por muito tempo. Enquanto me vestia, mentalizava a agenda do dia: reuniões, contratos, clientes. Tudo precisava ser perfeito. Tomei meu café preto, comi duas torradas sem muita vontade e dei uma olhada rápida nas notícias do mercado. Giulia ainda dormia, e deixei um bilhete para a governanta, como sempre faço, com instruções sobre o que ela deve comer e vestir. Não posso falhar com ela. Nunca.No carro, revi relatórios no tablet. A Benites Seguridad é meu legado, minha responsabilidade. Herdar o império do pai não foi fácil. Lembro das noites em claro estudando administração e finanças, das reuniões onde era tratado como um "menino mimado" até provar meu valor. Abdiquei de tudo: festas, amigos, até um noivado que não sobreviveu à minha dedicação obsessiva ao trabalho. Tudo para ser digno do nome Benites.Cheguei ao escritório e fui direto para a primeira reunião
O dia foi longo. Mais longo do que o normal, se é que isso é possível. Meus pés doíam como se tivessem sido esmagados por uma prensa, e minhas costas pareciam carregar o peso de todos os lençóis que troquei hoje. Trabalhar como camareira em um hotel cinco estrelas pode parecer glamouroso para alguns, mas a realidade é bem diferente. Quartos imensos, banheiros gigantes e clientes exigentes que nunca estão satisfeitos. Hoje, felizmente, não tenho aula na faculdade. Meu único plano é chegar em casa, tomar um banho quente e tentar estudar um pouco antes que o cansaço me derrube.Entrei no ônibus quase arrastando os pés. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e encostei minha cabeça no vidro frio. O barulho do motor e o balanço do veículo quase me fazem adormecer, mas resisto. Preciso checar meu e-mail. Talvez a professora Ana tenha respondido sobre o programa de au pair. Ela me ajudou a me inscrever há semanas, e desde então vivo checando a caixa
Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distr
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e
A casa da Marina sempre foi meu refúgio. Desde que me mudei para cá, depois daquela noite terrível em que fui expulsa de casa, ela tem sido minha âncora. Marina é mais que uma prima; é a irmã que nunca tive. E hoje, mais do que nunca, eu precisava dela.— Isa, você está bem? — Marina perguntou, colocando uma xícara de chá na minha frente. O cheiro de camomila era reconfortante, mas nem mesmo isso conseguia acalmar minha mente agitada.— Não sei — respondi, segurando a xícara com as duas mãos. — Acho que estou me sentindo... culpada.Marina sentou-se ao meu lado no sofá, seus olhos cheios de preocupação.— Culpada por quê? Você não fez nada de errado.— Eu deixei ela lá, Marina. Deixei minha mãe sozinha com ele. Como posso simplesmente ir embora e fingir que está tudo bem?— Isa, você não deixou ela. Você foi expulsa. E você fez tudo o que pôde para ajudá-la. Quantas vezes você tentou convencê-la a sair daquela situação? Quantas vezes você chamou a polícia, implorou, chorou?Eu olhei p