O dia amanheceu de maneira conturbada na enorme mansão dos Vaccine, as empregadas, com seus uniformes padronizados, se acomodavam às portas, tentando ouvir o que acontecia no salão principal. Era sempre um verdadeiro “show” quando uma das cunhadas entrava em pé de guerra com a outra, mas dessa vez, por mais surpreendente que parecesse, quem se encontrava no centro da discussão era a única mulher de mente centrada naquela casa, Carlota.
– Isso é um disparate! A cunhada mais nova argumentava num tom exasperado, sua voz chegava a elevar alguns tons. – Você só pode ter enlouquecido, seu irmão logo retornará da Sicília, e o que você fará?
– Basta, Marine! Carlota, a filha primogênita, exclamou irredutível. – Não estou pedindo a sua opinião, muito menos dele, já está decidido.
Os homens, mesmo observando tudo, não diziam nada, em parte porque não havia nada que pudesse ser feito àquela altura. A situação havia passado dos limites, extrapolando o controle de qualquer um deles e talvez, mesmo que realmente fosse uma loucura, Carlota estivesse certa.
Então, tudo ficou em silêncio, ninguém mais ousava desafiar a soberania da presidente, mesmo que internamente, alguns deles quisessem o fazer. As empregadas se entreolharam e, pensando que a diversão havia acabado, começaram a fazer seus trabalhos domésticos enquanto ainda fofocavam aos cochichos.
– Eu já imaginava que logo as brigas começaram, até demorou… – Uma delas sussurrou erguendo o tecido de linho, um grande guardanapo, dobrando-o sobre a mesa de mármore. – É sempre assim quando um patriarca morre, coisas vêm à tona e pessoas começam a abrir o bico.
– Como assim? Olivia, uma mulher na casa dos trinta anos, perguntou com os olhos arregalados, tamanha era a sua curiosidade.
– É mesmo, você é nova na casa… – A primeira comentou, gesticulando para que se aproximasse e sorriu sussurrando. – Fofocavam quatorze anos atrás que uma empregada daqui engravidou do filho mais novo e o patriarca deu dinheiro para ela sumir e não se sabe o que ele fez com a criança…
– V-você acha que ele mandou matá-la, Maria? Olivia questionou horrorizada e tapou a própria boca com as duas mãos, era horrível até cogitar a ideia.
– Olha, ele tinha aquele jeito de Don Corleone, mas não faria algo assim… – Maria explicou puxando a outra para mais perto. – Dizem que ela está num orfanato.
– É por isso que estão brigando, alguém descobriu? Olivia tornou a questionar, arqueando uma sobrancelha. – Está me matando de curiosidade.
– A nonna está doente, precisa de um transplante de medula óssea! Maria contou, e então, abriu um sorriso travesso. – Mas ninguém na casa é compatível…
– Não. Essas coisas não acontecem na vida real… – Olivia debochou, antecipando o que a outra iria dizer. – Vai me dizer que justamente essa neta “bastarda” é compatível? Que tipo de “mundo dando voltas” é esse?
– Não diga dessa água nunca beberei… – Maria cantarolou, sacudindo os ombros, claramente se divertindo muito. – Já disse que adoro trabalhar nesse lugar?
De repente, ambas calaram-se quando uma terceira empregada entrou na cozinha, sua expressão era fechada, as olheiras deixavam seu rosto obscuro e enquanto tentava limpar as manchas de café de sua blusa branca, soltou um suspiro de cansaço.
– Pietra de novo? Maria indagou, mas sem humor dessa vez.
– “Eu disse chá verde, não café gelado, sua inútil!” Abgail exclamou, gesticulando as mãos no ar, imitando o escândalo da jovem, então soltou um suspiro melancólico. – Alguém me socorra, por favor, é pedir demais, Deus!?
Abigail havia chegado àquela casa quando a moça tinha seis anos de idade, indicada por uma amiga da família, era conhecida por lidar bem com crianças indisciplinadas, e por mais árduo que fosse o trabalho, não costumava reclamar, então, ao ver seu estado tão abalado, as outras ficaram preocupadas.
– Então, hum… você está bem? Maria perguntou com uma expressão preocupada, estava preocupada em ser mal-interpretada.
– Não. Mas não faz diferença! Abigail explicou secando as lágrimas que umedeciam seus olhos. – O pior é que eu gosto daquela peste, coitadinha…
– Coitada de você que endoidou! Maria exclamou incrédula, até parou de dobrar os guardanapos para encará-la. – Ela te inferniza e você ainda tem pena?
Abigail estava prestes a defender a menina, mas se refreou. Havia acabado de presenciar Pietra sendo disciplinada pela mãe, e seus pelos ainda se arrepiavam sempre que relembrava a imagem da menina mordendo o lenço porque não podia sequer fazer barulho. Em seu coração materno, não achava que nenhuma criança deveria passar por aquilo, mesmo que fosse uma peste.
“Os ricos são estranhos, não parecem amar suas crias” Ela pensava consigo mesma, e então, seguiu para seu quarto, precisava trocar suas roupas.
Minutos depois, quando retornou ao trabalho, lembrou dos ânimos aflorados na sala e resolveu preparar um chá de camomila, servindo-o num conjunto de porcelana chinesa. Em silêncio, colocou a bandeja de prata sobre a mesinha de centro, girou nos calcanhares, pronta para retornar à cozinha, mas parou no mesmo lugar quando a grande e pesada porta de mogno se abriu às suas costas.
Lorenzo, o advogado da família, havia acabado de chegar trazendo consigo o motivo para toda aquela tensão: uma convidada indesejada. Era uma moça pequena, seus olhos presos ao chão, mas dava para perceber que eram azuis e enquanto mordia levemente o lábio inferior, avermelhado, seus dedos se enroscavam nos fios loiros presos a uma trança longa.
Os olhos esverdeados do advogado fixaram-se na primogênita, sentindo sua frequência cardíaca acelerar somente por estar em sua presença. Ele era a única pessoa que podia perceber que, por baixo daquela máscara de frieza, ela estava preocupada e feliz ao mesmo tempo com a presença da criança.
Um silêncio denso recaiu sobre todos na sala, ninguém ousava dizer nada, e somente depois de um longo tempo, enfim, alguém resolveu se aproximar. Era Pietra que, até então, permanecia parada no topo da escadaria, encarando a recém-chegada com intensidade.
Ela parou em frente à outra menina, notando que tinham uma pequena diferença de altura e então, sorriu de canto inclinando-se para beijar sua bochecha, apenas como um pretexto para sussurrar ao seu ouvido:
– Bem-vinda ao inferno, bastarda…
Alana agarrou a rama esverdeada, puxando-a bruscamente do solo e encarou as batatas cheias de areia, se perguntando se estavam maduras o suficiente para o consumo, no fim, sem chegar a uma conclusão, deu de ombros, e as jogou no cesto. Todos naquele orfanato tinham funções, e as meninas mais velhas, como ela, cuidavam das hortas ao redor da catedral. Foi tirada de seus devaneios quando, numa demonstração da ruptura que estava prestes a acontecer, de repente, começou a chuviscar, e o dia antes ensolarado, deu lugar a nuvens negras que “fechavam” o tempo, escurecendo rapidamente os céus. “Parece que vai chover…” A moça pensou consigo mesma, olhando ao redor, ficando preocupada com as outras crianças que corriam no campo aberto. – Entrem, o clima está ficando perigoso, pode haver raios! Gritou apontando para as nuvens escuras sobre sua cabeça. – Cuidado para não se machucar. – Será que algum raio derrubará a velha árvore? Uma das meninas, questionou rindo, e contagiando as outras men
Sua nova casa era gigantesca, uma mansão na verdade, mordomos e empregadas vestidos em uniformes de corte tradicional, uma biblioteca maravilhosa de perder o fôlego, lustres brilhantes feitos de diamante sobre as longas escadarias, e um jardim impressionante se espalhava ao redor da gigantesca construção pertencente àquela família por três gerações. Era a observação ingênua de uma menina ofuscada pela grandiosidade daquele lugar, notando apenas os elementos que a encantavam, sem perceber que na verdade, tudo aquilo apenas ofuscava sua visão do que realmente era aquele lugar. Ela ainda não havia percebido, mas, dentre aquele turbilhão de sentimentos, não havia pertencimento. Curiosa, observava a empregada que caminhava ao seu lado, guiando-a pelos corredores em direção ao andar onde ficavam os quartos, era uma mulher bonita, cabelos longos e negros prestos num rabo-de-cavalo baixo, parecia gentil, mas não falava muito. Quando pararam em frente à pesada porta de mogno, a recém-cheg
Então, alguns dias passaram. Nesse meio tempo, Alana foi tentando se acostumar àquela nova realidade, mas tudo era tão diferente que quase não conseguia acompanhar. Às vezes, a falta de diálogos a irritava, não entendia o que acontecia à sua volta e ninguém lhe dava explicação, no fim, era sufocante. Os acontecimentos que antecederam seu nascimento eram um mistério para ela, e os quatorze anos longe de sua família biológica mostravam que, apesar de ter herdado seu sangue, não era um deles. Por mais doloroso que fosse admitir, a verdade era inapagável, ela era uma bastarda, assim como a prima cruelmente havia dito. “Não posso baixar a guarda com ela.” A moça pensou consigo mesma, e então, um livro que havia lido escondido das freiras lhe veio à mente, pensou um pouco e riu ao lembrar o título, era: Menina má, de Christine Penmark. – Há algo que não entendo… – Alana chamou baixinho, inclinando a cabeça para trás, fitando a mulher que penteava seus cabelos. – Porque eu fui trazida para
Alana não conseguiu dormir mais nada depois de ouvir aquelas palavras, cada peça daquele quebra-cabeças só deixava tudo mais confuso e sentia como se estivesse diante de um poço sem fundo, o que poderia ser considerado cômico se não fosse tão dramático. O dia amanhecia quando percebeu que realmente não conseguiria voltar a dormir, então, foi para a biblioteca e enquanto procurava por algo do seu interesse, se perdeu em pensamentos. De repente, se lembrou do longo sermão que a irmã Joana havia lhe dado quando a encontrou lendo algumas de suas leituras “tortas”, e riu se questionando o que a mulher teria dito se a visse lendo O Retrato de Dorian Gray. Eram suas pequenas rebeldias. Foi tirada de seus devaneios quando ouviu uma respiração ofegante e passos apressados às suas costas, a menina se virou, assustada e ainda pensando que talvez aquela casa fosse assombrada, mas se deparou com uma Olivia pálida e ofegante. – Não faça isso! A mulher exclamou depois de tomar algum fôle
Ela tentava se acostumar ao seu novo nome. Mona lhe soava estranho, mas sentia que poderia se acostumar. Além disso, tinha maiores preocupações naquele momento, pois logo descobriu que, com sua nova vida luxuosa, veio também as responsabilidades de rica, um absurdo e rigoroso cronograma no qual não lhe sobrava tempo para se martirizar. Às vezes, enquanto a professora de etiqueta ensinava sobre uma boa postura, se lembrava da tia, e tentava imitar seus gestos, ela era sua inspiração. Estranhamente estava feliz, e o que mais amava eram as aulas de piano, suspirando de olhos fechados enquanto arriscava algumas notas que já havia aprendido. Porém, como nem tudo eram flores, vez ou outra, recebia uma bronca da professora por estar cantando a letra das músicas errado, a verdade era que, aos seus ouvidos despreparados, aqueles idiomas pareciam impossíveis de pronunciar. Era cansativo, desgastante, mas estava se esforçando. Acordava cedo todos os dias para treinar sozinha antes das aulas m
Sentadas à mesa, uma de frente para a outra, Pietra encarava a prima cheia de raiva, se perguntava o porquê de a tia estar a protegendo, mesmo que discretamente. Estranhava seu interesse pois, era uma mulher ocupada, e justamente por esse motivo, sempre havia aceitado o fato de não receber mimos dela, mas agora, vendo-a observar a prima pelo canto do olho, ou mesmo defendê-la, estava a enlouquecendo de ciúmes. Ela queria aquela atenção para si. Enquanto isso, Mona distraia-se com seu coraçãozinho aquecido pela ajuda de mais cedo, nunca havia imaginado que seria justamente ela a interferir e mesmo que a parte mais racional de sua mente lhe dissesse que não se tratava de uma boa ação, seu lado ainda um pouco inocente ficava feliz por aquilo. “Ela é tão magra!” Observou pensativa e voltou seus olhos novamente ao café da manhã que a tia tomava, percebendo que continha apenas algumas frutas cortadas, queijo branco e pão integral. Fitou seu próprio corpo e pensou se deveria iniciar uma d
Mona estava imersa em sua leitura quando, de repente, ouviu seu nome sendo chamado, ergueu a cabeça e para a sua surpresa, se deparou com a prima e suas amigas paradas à sua frente. – Não fique tão acanhada, quero te apresentar minhas amigas... – Pietra comentou com um tom de voz suave, quase ensaiado enquanto apontava as duas jovens que a acompanhavam. – Estão são Eleine e Marie, ambas são irmãs, e estudamos juntas desde o colegial! – Fico feliz em conhecê-las, seus nomes são lindos... – A moça respondeu sorrindo, inocentemente imaginando a prima estivesse arrependida. – Eu me chamo Mona. – Então você tem sotaque do sul, que fofo! Marie comentou irônica, era evidente que estava apenas apontando coisas que as diferenciavam. – Sim. Como eu disse, ela passou muito tempo nos montes por causa dos problemas respiratórios! Pietra respondeu mentindo, e forçando a prima a concordar com suas palavras. “Então foi isso que você inventou para suas amigas?” Mona se perguntou, triste consigo me
– O que mais acontece nesses trotes? Mona questionou preocupada quando foram obrigadas a entrar numa fila formada pelos veteranos. – Já tinha esquecido dele... – Mariana resmungou estapeando a própria testa e estremeceu, lembrando-se porque estava procurando por companhia quando encontrou com Mona. – Nunca soube de alguém que morreu, mas sempre escuto histórias de cabelos cortados, pinturas sem noção e bebedeiras. – Pelo menos ninguém morreu... – Mona comentou com um riso baixo, tentando aliviar o clima, mas seu rosto empalideceu um pouco quando notou seus três “carrascos” se aproximando, sendo que na mão de Pietra havia uma tesoura de papel. Rapidamente, um pequeno grupo de jovens se formou naquele lugar, a maioria era novato então, estavam apenas calados esperando pelo desastre que os aguardava em meio àquele trote estúpido que ainda duraria mais algumas horas, nas quais tinham certeza de que ninguém iria interferir. – Quem vai ser o primeiro? Pietra questionou olhando diretament