Tudo estava escuro. Bem, eu acho que estava no jogo. Talvez tenha dado algum defeito ou algo assim porque eu nada conseguia ver. Sentia algo gelado passando pelo meu corpo, mas não sentia frio. Só tinha sensação de que estava frio.
Alguma coisa estava estranha em mim porque eu sentia meu corpo e não sentia meu corpo.
— Malek, tem certeza de que você sabe olhar se um animal é macho ou fêmea? — uma voz masculina perguntou.
— Claro que eu sei! — outra voz masculina disse. — E eu posso jurar que tinha um... órgão masculino entre as pernas desse lobo!
— ENTÃO POR QUE PARECE UMA GAROTA?
— MAS EU POSSO JURAR QUE...!
— ERA O RABO DELA, SEU BURRO! — agora uma terceira voz masculina.
Meus olhos abriram devagar. Talvez a curiosidade tenha me feito acordar. Quando meus olhos se acostumaram com a claridade, lá estavam três garotos. Um ruivo, um de cabelos negros e outro de cabelos castanhos. Essas foram as principais diferenças que reparei de primeira.
— Hmmmm, oi? — arrisquei a dizer e minha voz acabou saindo rouca.
O de cabelos negros revirou os olhos e saiu do quarto. Bem, só agora percebi que estava numa cama, então aproveitei pra me sentar, porém, foi aí que vi o tipo de armadura que usava. Não sabia que em videogames atuais as guerreiras pareciam ter saído de um desfile de biquíni.
Tapei a barriga exposta com os braços. O ruivo arqueou uma sobrancelha.
— Não vamos estuprar você, coisa burra.
— Burro é você que trouxe ela pra cá — rosnou o de cabelos castanhos pro ruivo.
Levantei devagar da cama, tentando me acostumar com aquela armadura que tapava só meus seios e a parte íntima. Esses malditos criadores de jogos que abusam da sensualidade da mulher. Bando de machistas, protestei mentalmente.
— Quem são vocês? — perguntei, incomodada pelos dois estarem me analisando de cima à baixo.
— Senhor Não e Senhor Interessa, prazer — o ruivo respondeu com sarcasmo.
Cerrei os punhos e ameacei pular em cima dele. Uma energia percorreu o meu corpo como nunca antes. Era como se no meu sangue corresse poder puro.
Só que antes de eu alcançar a cara do ruivo, o castanho pegou meus pulsos.
— Calma aí, gracinha, sem estresse. Somos os donos da casa, então está sob nossas regras e a primeira delas é: sem agressão.
Rosnei pra eles e puxei meus pulsos pra mim, me livrando dele. Eu me sentia tão... forte.
— Me digam quem são então, e não terão problemas. — Não soube dizer de onde veio tanta ousadia da minha parte.
Os dois caíram na gargalhada, fazendo esvair todo meu ego.
— Quem não terá problemas é você se não arrumar briga com a gente — informou o castanho. — Diremos no jantar, ou seja, daqui à meia-hora. Vamos dar um tempinho pra você se acostumar nesse corpo avantajado.
Percebi a olhadela que ele deu para os meus seios e aquilo fez meu rosto ferver — mas eu era morena, certo? Ele nem deve ter percebido.
— E tenta não entrar em combustão — comentou o ruivo antes dos dois irem embora do quarto, fechando a porta de madeira.
Entrar em combustão? Como assim...?
Foi quando me permiti olhar no espelho e meu queixo caiu — quase literalmente. Minha pele era tão clara e delicada que parecia porcelana. Meus olhos de um azul da cor do céu mais limpo e meus cabelos... acompanhavam o tom dos olhos, ondulados de uma maneira que parecia as ondas de um mar azulado de tão limpo. Minhas bochechas estavam visivelmente coradas e isso só me fez ferver mais ainda de vergonha. Bem, agora não vai dar nem pra esconder quando sentir vergonha, me vi pensando e aquilo me fez mordiscar o lábio que por sinal era tão rosado quanto minhas bochechas.
Agora já a armadura que usava... Realmente parecia um biquíni feito de metal. Era azul misturado com cinza e tinha alguns símbolos de floco de neve. O que mais escondia meu corpo eram as botas de metal que iam até o joelho. A parte que cobria os seios só dava mais volume a eles, empinando-os — opa, o jogo me deu até mais vantagem no busto, gostei disso. O que deveria cobrir minhas partes íntimas, não passava de um metal em forma de calcinha.
Eu me sentia exposta e nua. E estou presa numa casa com três garotos, ótimo, pensei em ironia e balancei a cabeça, respirando fundo. Só que aqui não sou mais a nerd da Natália Winter. Aqui posso ter oportunidade de ser alguém que sempre quis ser, o pensamento fez um sorriso surgir no meu rosto e só de ver o quanto meu sorriso ficou bonito naquele corpo, minha autoestima foi lá em cima.
Então notei o colar de floco de neve e não tive mais dúvidas: eu era filha de Quione.
Tudo bem, eu controlava o gelo e tinha de arranjar um jeito de escapar daquela cabana antes que aqueles três pudessem ter planos pervertidos pra única mulher da casa. Aquilo seria moleza.
Saí do quarto e dei de cara com uma escada em espiral com não mais que dez ou quinze degraus. Subi rapidamente e saí de dentro de um alçapão. Quando vi, estava dentro de uma espécie de sala onde havia uma lareira, deixando o ambiente quente. E desconfortável, pensei. O calor me incomodava.
Os três estavam ao redor da lareira, assando uma carne qualquer, quando me viram sair do alçapão.
— Olha aí nossa intrusa — comentou o ruivo.
— Não sei vocês, mas acho que na verdade alguém é que me trouxe até aqui — abri um pequeno sorriso de deboche. O ruivo não gostou da implicância.
Então seus cabelos ganharam um tom mais vibrante que começou a misturar vermelho, laranja e amarelo numa dança única entre os fios. Fogo. Aquilo me incomodou de imediato e senti a temperatura corporal baixar como defesa. Era como se meu próprio corpo criasse um escudo de gelo sob minha pele para me proteger do que podia acontecer.
Estou presa numa casa com um filho de Héstia, popularmente conhecida como deusa do fogo, que maravilha, pensei em ironia.
— Malek, sem estresse — pediu o castanho, colocando uma mão em seu ombro.
Demorou alguns instantes até o ruivo — chamado Malek pelo visto — ceder e seus cabelos voltarem ao normal.
— Agora podem responder minha pergunta? — questionei. — Quem são vocês?
— Sente-se primeiro — pediu o de cabelos negros, inexpressivo.
Me sentei no chão, um tanto afastada deles e esperei.
— Meu nome é Utaemon, mas prefiro ser chamado de Utae. Não leve isso como uma intimidade entre nós — ressaltou o de cabelos negros, sério. — Sou filho de Zeus, por isso sou o líder daqui, então está sob minhas regras.
Assenti, informando que havia entendido. Por um momento, parei para observar o tom dos seus olhos que eram de uma tonalidade violeta única que até me fez ficar vidrada por alguns segundos.
— Immacolato, só que pode me chamar de Imma, gatinha — disse o castanho e eu revirei os olhos. — Sou filho de Poseidon e dizem que gelo e água costumam combinar.
— Pena que gelo destrói a água, esmagando suas células até não sobrarem mais nada — digo num tom de ameaça.
Os três se entreolharam e soltaram uma gargalhada.
— Ela não parece aquela nerd que estuda com a gente? — disse Malek. — Qual o nome dela? Núbia? Nicole? Natália?
— Natália! — exclamou Imma enquanto gargalhava.
Enrubesci — opa! Querida, agora dá pra ver, me lembrei. Você não é mais morena. Precisa ter mais cuidado.
— Precisa ficar com vergonha não, garota — disse Utae, parecendo ainda rir. — Você conhecia ela? Era uma retardada que vivia sendo a queridinha dos professores.
— Conheci — falei cautelosamente. — Imagina... ela jogando esse jogo agora? Deve estar fazendo cálculos matemáticos para achar o Norte.
Eles riram, concordando e me senti um pouco mais aliviada, embora incomodada.
— E eu sou Malek — o ruivo concluiu a apresentação. — Filho de Héstia e, pra ser sincero, odeio você.
— Também te odeio — me vi murmurando.
Gelo e fogo. Ambos se transformam em água ou em vapor. Isso depende de qual é mais forte.
Percebi que os três usavam colares também. Utae com pingente de um raio amarelo, Imma uma gota d'água e Malek uma chama. Se eles são da equipe inimiga, como eu posso saber?, tentei pensar com a informação que o professor Gilbert havia nos dado.
— Imma é o vice-líder e Malek foi rebaixado para vice do vice-líder — informou Utae.
— Quê?! — protestou Malek.
— Isso foi por ter olhado o sexo errado do lobo!
— Mas eu podia jurar que tinha um órgão masculino lá!
— Então me explica, onde você tá vendo isso?
Aquela era a discussão mais idiota que eu já vi na vida. Tinha que ser o pessoal da minha sala.
— Tudo bem, todos sabemos que não tem nada entre as minhas pernas, então será que dá pra parar de discutir sobre isso?
Vi um pequeno sorriso no rosto do Imma e logo ele jogou um pedaço de carne aos meus pés.
— Ela tem razão. Trouxemos ela pra cá e agora temos que aguentar. Qual é, gente. Vocês são gays, é? Porque eu não vejo problema nenhum uma gatinha dessas morando com a gente.
Revirei os olhos. Machista, pensei, cruzando os braços por baixo dos seios e me arrependi porque todos os olhares masculinos se viraram ao me ver fazer aquilo. Pareciam refletir entre ficar com ou sem um par de seios.
— Tá bom — decidiu Utae. — Vamos ficar com ela.
— Virei algum troféu agora? — Bufei.
— Não. — Utae balançou a cabeça. — Mas minha casa, minhas regras e eu digo que você fica.
— E agora precisamos saber quem é você — disse Imma.
Mordisquei o lábio e tentei pensar em algum nome. Não iria nem morta dar o meu verdadeiro. Aqui eu era outra pessoa e tinha que agir como tal.
— Karysha e... Acho que me chamar de Kary já está bom. — Suspirei. — Sou filha de Quione.
Os olhos de Imma e Utae serpentearam em círculos entre mim e Malek. Gelo e fogo.
Utae se levantou por fim e passou por mim, provavelmente indo pro alçapão.
— Que seja — disse ao passar. — Se eu fosse você, comeria. A comida é meio difícil de conseguir por aqui.
Então desceu as escadas para os quartos lá de baixo.
— Acho que eu também vou dar uma descansada. Preciso recuperar as forças.
E lá se foi Malek, mas não antes de me encarar por um longo momento, mostrando que não seríamos amigos em hipótese alguma. O fogo da lareira também se foi com ele, deixando eu e Imma apenas com a meia-luz da lua.
Tomei coragem e peguei o pedaço de carne, aproveitando que o mais insuportável da sala tinha saído — não que Imma e Utae também não fossem. Dei uma mordida e a carne estava meio borrachuda. Talvez fosse a carne de uma ave qualquer abatida. De qualquer forma, estava fria.
— Eles não gostam de você — refletiu Imma.
— Ótima observação — rebati irônica.
— Se quiser continuar viva, vai precisar mais do que apenas um rostinho bonito, garota.
Imma se levantou.
— Aqui é fazer aliados ou inimigos. Matar ou morrer.
E ele se foi, me deixando com uma carne horrível, uma sala escura e fria e meus pensamentos.
Perder ou ganhar, completei mentalmente e inesperadamente, eu desejava ganhar mais que tudo.
— ACOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOORDA, SOLDAAAAAAAAAAADO! — foi com um grito do Imma que eu acordei de manhã.Tapei os ouvidos e xinguei por ele ter gritado exatamente neles. Embora aquilo fosse um jogo, minha audição estava bem demais para ser obrigada a aguentar um grito daqueles.
O som de algo raspando no que parecia madeira, me acordou. Abri os olhos devagar, incomodada com o barulho e quando vejo quem era que estava fazendo aquilo, volto a fechar os olhos.— Eu sei que você tá acordada — disse Malek.
A neve que me cercava, enchia meu pulmão e meu coração de alegria. Estava livre enfim daqueles idiotas ingratos e machistas. Agora poderia finalmente encontrar aquilo que procurava: uma equipe que realmente soubesse trabalhar como tal e que de preferência houvesse mulheres.Teve um momento em que apenas ajoelhei no chão gelado e deitei, adorando sentir aquele gelo contra a pele. Meu corpo vibrou e uma fina camada de gelo cobriu minha pele em resposta. Estava me
Os dias se seguiam e não tínhamos nenhuma notícia de Utae. Ele realmente tinha desaparecido e não fazíamos ideia pra onde sequer ele tinha ido. A única pessoa que podia nos guiar era Imma, mas ele insistia em esperar a nevasca passar pra poder irmos. O problema é que a nevascanuncapassava — ela começara poucas horas depois de Malek ter curado Kameel.Era manhã e eu estava sen
Depois de uns três dias, eu não me aguentava de tanta fome que sentia — não que a gente não recebia comida, nem nada. É só que a gente recebia comida prasobreviver, o que não era um hábito tão comum assim pra mim.Eu e Imma tentávamos planejar alguma coisa, mas sempre ficávamos receosos por achar que alguém pudesse ouvir nossos planos.
No fim, Utae acabou aceitando nosso mais novo integrante na nossa equipe. O nome dele era Xander, filho de Hades — foi aí que eu entendi porque sentia tanto medo dele aquele dia. Ele era um nível 4 — ou seja, também mais avançado que eu.Mesmo depois de dias, as palavras de Utae ainda ecoavam em meus ouvidos:você é inteligente. Bem-vinda oficialmente ao grupo.Ele estava orgulhoso de mim e eu
Fiquei paralisada, sem conseguir pensar em qualquer outra reação. As Fúrias eram bonitas, mas as asas e presas de morcego, tiravam toda a beleza delas. Todas tinham cabelos negros e olhos negros, pareciam trigêmeas. Existia apenas duas diferenças entre as três: a tonalidade da cor da asa e a armadura que cobria todo o tronco — e mais uma vez as pernas de um personagem feminino estavam de fora, sendo cobertas apenas por uma bota de metal, muito parecida com a minha.
De uns dias pra cá, comecei a entender que as coisas ruins só acontecem durante a noite. Pelo menos o jogo estava nos dando alguns dias de folga dos monstros porque pelo que aconteceu alguns dias atrás, eu ainda tinha horríveis pesadelos sobre as Fúrias.Kameel nesses dias havia virado um amorzinho comigo, sendo o mais gentil de todos os garotos — ou eu sou uma idiota e estou imaginando isso já que ele meio que ainda cuidava de mim desde do que aco