PARTE UM
A GUARDIÃ DO GELO
Estar no último ano do ensino médio pode ser tanto uma benção como uma porcaria. Pensa só: talvez você nunca mais vai poder ver seus amigos de sala e ainda vai ser obrigado a enfrentar o mundo adulto sozinho. Bem, isso é pra quem acha tudo isso uma porcaria.
Claro que pra outros isso pode ser uma benção e esses "outros", sou eu.
Aí você pensa: mas por que, Natália? Simples: quando se é alvo da zoação pesada da turma, você nunca quer estar ali e nesse momento meu desejo era que aquela semana — maldita última semana de aula — terminasse e eu finalmente pudesse cuidar da minha vida sozinha e longe daquele bando de retardados.
— Olha só quem chegou, a quatro olhos! — disse Henrique, o pior deles.
Posso ser quatro olhos por usar óculos, mas quem vai reprovar esse ano não serei eu, pensei em desgosto enquanto me dirigia pra cadeira exatamente na frente do imbecil.
Quando eu me sentei, não tinha reparado que havia chantili espalhado na minha cadeira. Me levantei apressada ao sentir algo diferente e xinguei — ah, como xinguei.
— SEU FILHO DA...!
— Acho que já chega, senhorita Winter. — O professor Gilbert entrava na sala naquele instante. — Apenas quero que se recorde de que aqui é uma sala de aula e no mínimo uma aluna com seu intelecto deveria descartar as palavras chulas do dicionário pessoal.
Eu enrubesci — pelo menos esperava que isso tivesse acontecido já que eu era morena.
— Desculpa — respondi a contragosto.
— Sente-se.
— Sim, senhor.
Murmurei mais algum xingamento para Henrique e me sentei, lambuzando ainda mais minha saia escolar.
Morena, cabelos cacheados — crespos — e olhos castanhos sem graça. Antes de me mudar pra cidade no início do ano, eu me amava como pessoa (e tinha um amorzinho especial pelos meus olhos que são uma mistura de castanho e mel). Só que acabei sendo infernizada por esses diabos e minha autoestima só caiu desde então.
Bom, que se danem todos. No fim da semana, estarei livre, pensei, tentando me passar uma energia positiva.
— Como todos sabem, essa é a última semana de aula. — Os alunos gritaram de felicidade em resposta. — Por isso vou dar meu último teste hoje. — Todos soltaram um "Ah!" desanimado.
O professor Gilbert pegou uma caixa do chão. Ela estava lacrada.
— Dentro dessa caixa — ele deu dois tapinhas na mesma —, está o meu teste e todos vão ser obrigados a participar porque ele terá uma importância crucial para a festa de formatura no fim de semana.
Então ele abriu a caixa e pescou de lá uma pulseira de borracha com um botão verde no centro. Arqueei uma sobrancelha. O que uma pulseira tem a ver com a festa de formatura?, me vi pensando.
— Nos últimos anos venho desenvolvendo um jogo de realidade aumentada e, meus caros alunos, esta é a inovação no mundo dos games. — A maioria dos meninos gritou em resposta. — Só que eu preciso testá-lo com um grupo de pessoas e vocês, alunos do terceirão, foram escolhidos para uma experiência única.
Mais gritos de felicidade e eu revirei os olhos. Jogar videogame? Sério? Não podia ser algo mais maduro?, protestei mentalmente.
— O objetivo de vocês dentro do jogo será descobrir quem é a equipe A e B, saber de qual você pertence e aniquilar a equipe inimiga. Simples, não é? Natália, distribua as pulseiras pra mim.
Ouvi uma risadinha do Henrique atrás de mim. Ah, merda...
— Professor... Não pode chamar outra pessoa?
— Vamos, Natália. Você é a líder da turma. Esse é o seu trabalho.
Mordi o lábio inferior e me levantei relutante da cadeira. Então meu bumbum-bolo ficou à mostra para os que estavam atrás de mim, gerando risadinhas.
Caminhei em direção ao professor e por onde eu passava eu ouvia comentários e risadinhas baixinhas. Enchi as mãos da pulseira e fui distribuindo um a um. Será que ele nem se dá o trabalho de notar que minha bunda está suja?, me perguntei mentalmente.
— Quero que usem a pulseira quando forem dormir, pois o jogo virá como um sonho pra vocês.
— Mas como é possível que um jogo possa entrar na nossa cabeça através de uma pulseira? — questionou Robert, o outro nerd da sala, mas que não era zoado por ser ruivo e bonitinho.
— Ah, um mágico nunca revela seus segredos, Robb — respondeu o professor num sorriso de divertimento maldoso, como se armasse um plano maléfico. Ele sempre fazia aquela cara para manter um bom mistério.
— Bela decoração do bolo, hein, Nath-Quatro — provocou Melissa, a patricinha da sala enquanto eu lhe entregava a pulseira.
— E bela pintura abstrata de um palhaço que fizeram na sua cara com a maquiagem — respondi sarcástica e na mesma hora às pressas ela pegou um espelho pra conferir a maquiagem.
— Isso é inveja?
— Do seu ego? Tenho nojo dele.
— Melissa e Natália — Gilbert chamou atenção. — Algum problema?
— Não senhor — respondemos baixo em uníssono.
Continuei distribuindo as pulseiras.
— Devia bater neles — disse John quando cheguei nele. — Sabe, pela sua bunda. O chantili e tal.
— Devia, mas sou mais madura que isso. Deixa eles zoarem. — Dei de ombros, embora eu realmente quisesse bater em todos eles.
De vez em quando John trocava algumas palavras comigo — e até boas, ele podia ser um bom amigo —, só que ele era um dos melhores amigos do Henrique, então sem chance.
— Quanto custa uma escrava com chantili na bunda? — era Samuell, a pessoa mais irritante do planeta. No mesmo nível do Henrique. — Posso lamber isso aí?
— Vá pro inferno — resmunguei.
Terminei de entregar todas as pulseiras e me sentei em meu lugar, fervendo de raiva. Algum dia eu iria me vingar deles. De todos eles. Por tudo que fizeram.
— Agora que todos já receberam, observem o botão verde. — O professor tinha uma pulseira em mãos e apontou pro botão. — Quando forem dormir, coloquem a pulseira, apertem o botão verde e tenham bons sonhos. É ele que te colocará no jogo.
— E nossos personagens? — perguntou Henrique. — Como vão ser? Tipo, vai ser a gente mesmo?
— Ah, aí está uma pergunta interessante — Gilbert parecia satisfeito. — Pois bem, o jogo é baseado em mitologia grega, então se você pegou Zeus, por exemplo, suas características serão de acordo com as dele.
Fiquei um pouco mais feliz com aquela história toda quando ouvi que o jogo era de mitologia grega. Sempre fui apaixonada.
— Os poderes também — Ele ressaltou e um sorriso brotou em seu rosto quando os alunos ficaram animados por terem poderes no jogo. — E não recomendo que digam quem são durante o jogo. Faz parte da surpresa da festa de formatura.
Todos bateram palmas e gritaram. Tá, talvez até eu estivesse animada pra jogar.
— Espero que se divirtam. Agora por favor, silêncio. Será que podemos começar a nossa aula?
❄
O caminho até em casa foi totalmente um inferno. Eu era zoada por onde passava e nem um casaco pra tapar a bunda eu tinha, o que só me deixou com mais raiva de todo mundo daquele colégio.
Que importa? Eu vou trabalhar e ser mais rica que todos eles. Logo, logo vão trabalhar pra mim, pensei, me convencendo.
Minha casa não era lá muita coisa. Era uma casa comum das pessoas de classe média, mas o que me irritava mesmo eram as pessoas que moravam ali. Meu pai e minha mãe. Não, eu não os odiava. Eu só não gostava deles não me dando atenção.
Mal me viram chegar. Só minha mãe que se limitou a dizer um "oi" antes de me ver subir as escadas pro meu quarto que era no segundo andar.
Jogo os sapatos longe assim que entro e fecho a porta. Jogo a mochila pra perto dos mesmos e pulo na cama. A essa hora era tardezinha e eu queria muito jogar o tal jogo do professor Gilbert. Tinha mitologia. Eu amava mitologia.
Corri pro banheiro e tomei um banho longo antes de vestir uma roupa qualquer e voltar a pular na cama, pronta para jogar aquilo. Peguei a pulseira na bolsa e recusei quando minha mãe veio me chamar pra jantar.
Coloquei-a no pulso, apaguei as luzes — o interruptor era acima da minha cabeça, então nem precisei levantar — e caí no sono.
E naquele momento me tornei Karysha Winter, filha de Quione.
Tudo estava escuro. Bem, eu acho que estava no jogo. Talvez tenha dado algum defeito ou algo assim porque eu nada conseguia ver. Sentia algo gelado passando pelo meu corpo, mas não sentia frio. Só tinha sensação de queestavafrio.Alguma coisa estava estranha em mim porque eu sentia meu corpo enãosentia meu corpo.
— ACOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOORDA, SOLDAAAAAAAAAAADO! — foi com um grito do Imma que eu acordei de manhã.Tapei os ouvidos e xinguei por ele ter gritado exatamente neles. Embora aquilo fosse um jogo, minha audição estava bem demais para ser obrigada a aguentar um grito daqueles.
O som de algo raspando no que parecia madeira, me acordou. Abri os olhos devagar, incomodada com o barulho e quando vejo quem era que estava fazendo aquilo, volto a fechar os olhos.— Eu sei que você tá acordada — disse Malek.
A neve que me cercava, enchia meu pulmão e meu coração de alegria. Estava livre enfim daqueles idiotas ingratos e machistas. Agora poderia finalmente encontrar aquilo que procurava: uma equipe que realmente soubesse trabalhar como tal e que de preferência houvesse mulheres.Teve um momento em que apenas ajoelhei no chão gelado e deitei, adorando sentir aquele gelo contra a pele. Meu corpo vibrou e uma fina camada de gelo cobriu minha pele em resposta. Estava me
Os dias se seguiam e não tínhamos nenhuma notícia de Utae. Ele realmente tinha desaparecido e não fazíamos ideia pra onde sequer ele tinha ido. A única pessoa que podia nos guiar era Imma, mas ele insistia em esperar a nevasca passar pra poder irmos. O problema é que a nevascanuncapassava — ela começara poucas horas depois de Malek ter curado Kameel.Era manhã e eu estava sen
Depois de uns três dias, eu não me aguentava de tanta fome que sentia — não que a gente não recebia comida, nem nada. É só que a gente recebia comida prasobreviver, o que não era um hábito tão comum assim pra mim.Eu e Imma tentávamos planejar alguma coisa, mas sempre ficávamos receosos por achar que alguém pudesse ouvir nossos planos.
No fim, Utae acabou aceitando nosso mais novo integrante na nossa equipe. O nome dele era Xander, filho de Hades — foi aí que eu entendi porque sentia tanto medo dele aquele dia. Ele era um nível 4 — ou seja, também mais avançado que eu.Mesmo depois de dias, as palavras de Utae ainda ecoavam em meus ouvidos:você é inteligente. Bem-vinda oficialmente ao grupo.Ele estava orgulhoso de mim e eu
Fiquei paralisada, sem conseguir pensar em qualquer outra reação. As Fúrias eram bonitas, mas as asas e presas de morcego, tiravam toda a beleza delas. Todas tinham cabelos negros e olhos negros, pareciam trigêmeas. Existia apenas duas diferenças entre as três: a tonalidade da cor da asa e a armadura que cobria todo o tronco — e mais uma vez as pernas de um personagem feminino estavam de fora, sendo cobertas apenas por uma bota de metal, muito parecida com a minha.
Último capítulo