Capítulo 1

– Será que você pode parar de drama? Pelo amor de Deus – minha mãe disse já se irritando, batendo as mãos contra o volante.

Suspirei e limpei as lágrimas dos olhos e bochechas, sem querer soltando um soluço. O que mais eu podia fazer?

– Mas mãe, era o meu livro favorito! Não pode ter acabado assim, simplesmente não pode! – Gritei com uma voz aguda incomum e meu coração se encheu com uma profunda tristeza.

Eu havia passado uma semana lendo aquela maldita trilogia e ela acabava assim, sem mais nem menos. Estava com uma vontade gigantesca de ir até o Canadá só para bater na autora e mandar ela escrever mais. Ok, talvez isso fosse meio exagerado, mas eu necessitava de uma continuação.

Podia parecer estranho para pessoas normais, mas eu me apegava à personagens de modo a ficar triste como se um parente meu tivesse morrido.

– É só um livro, depois você acha outro que goste mais – minha mãe disse indiferente e pude ouvir meu irmão mais novo sussurrar do banco de trás:

– Ah, ela não disse isso. – Sim, ela havia dito. – Lis, respira, não precisa nos dar um sermão de como era especial para você e jamais existirá outro igual.

Olhei mortalmente para ele, eu não fazia aquilo. Tá, talvez umas poucas vezes mas nada que mudasse algo em nossas vidas.

– Não vou, agora tchau que ninguém te chamou na conversa – disse e foi a vez de minha mãe me encarar mortalmente.

– Fale direito com o seu irmão.

Revirei os olhos e apoiei o rosto no vidro da janela, observando a rodovia cheia de carros apressados.

– Então? Qual é a história dessa nova casa? – Perguntei me recuperando da depressão momentânea e já sentindo certa euforia misturada a ansiedade.

– Como assim história, menina?

– Sei lá, é uma casa antiga de madeira em uma cidade quase vazia que fica no meio do mato, isso não te lembra filmes de terror? Deve ter alguma história por trás, tipo Poltergeist – expliquei fazendo referência ao filme que havíamos assistido na semana anterior e Eliel deu uma risadinha.

– Não fale sobre isso senão a mamãe não dorme de noite, esqueceu? – Ele disse e não pude segurar uma risada.

– Haha, como vocês são engraçados. E não, não tem história nenhuma por trás da velha casa nova mas, como segundo você mesma, ela fica no meio do mato, então é bem capaz que tenha muitos grilos, aranhas e coisas assim.

Estremeci só de pensar. Droga, não tinha graça brincar com a minha mãe, ela sempre apelava para as únicas coisas das quais eu tinha medo: insetos e bonecas.

– Legal, empolgante – murmurei com uma expressão de tédio e puxei meu edredom do banco de trás, enrolando-me até praticamente sumir ali dentro, e novamente encostei o rosto na janela. – Quando chegarmos você me acorda, ok amorzinho?

– Tudo bem, querida filha – ela respondeu e esbocei um leve sorriso.

Depois de pensar mais uma vez e lamentar o término da trilogia da minha vida, finalmente consegui pegar no sono, ou pelo menos cochilar já que aquele carro balançando de um lado para o outro não ajudava em nada.

Uma respiração fraca e gelada soprou nos meus ouvidos e eu já estava preparando minha mão para dar um tapa em Eliel quando uma voz feminina disse algo num sussurro cujo não entendi absolutamente nada.

– O que disse, mãe? – Perguntei soltando um bocejo e ouvi ela rir baixinho.

– Nada, tá ficando doida? – Perguntou zombando e arqueei as sobrancelhas.

– É... devo estar.

                                                              ◈◇◈

Quando estava no mais perfeito estado de sono profundo, tendo sonhos estranhos com personagens de desenhos animados, senti alguém me chacoalhar pelos ombros. Bufei e lentamente abri os olhos, parecia já estar escurecendo.

– Já chegamos – minha mãe disse e saiu do carro, me deixando sozinha.

O afobado do Eliel já devia estar correndo pela casa inteira, aproveitando os espaços vazios. Dei de ombros e me espreguicei, batendo as mãos no teto.

– Saco – murmurei e abri a porta, saindo e levando comigo o enorme edredom que quase deixei cair na grama molhada.

Isso Lis, derrube o edredom limpinho na lama e saberá o que é uma mãe psicopata.

Encarei a casa que por um momento pareceu me encarar de volta. Era bizarramente bonita, o que me chamava muito a atenção. A madeira do lado de fora estava gasta e velha, e possuía pelo menos seis janelas na parte da frente, sendo três do segundo andar e duas estando com o vidro trincado. Tinha uma varanda bem extensa com degraus largos que pareciam estar ali há séculos.

Bem, depois de morar meus quinze anos inteiros em uma cidade grande insuportavelmente chata, barulhenta e cinza, eu estava amando aquilo.

A porta da frente se abriu e um Eliel apressado saiu correndo por ela, tropeçando em uma pedra escondida no gramado e caindo de joelhos. Não consegui segurar a risada diante daquela cena, o que fez com que ele me lançasse um olhar assassino. Dei de ombros e retomei meu caminho em direção à casa.

– Ridícula! – Ele gritou para mim enquanto se levantava.

– Otário – respondi e lhe mostrei o dedo médio pelas costas.

– Vou contar para a mamãe – ameaçou em uma tentativa falha de me irritar.

– Não, não vai porque eu sei que você quer viver pelo menos até seus trinta anos – eu disse suspirando e ouvi ele grunhir de irritação atrás de mim.

Como era lindo o amor de irmãos.

Coloquei o pé no primeiro degrau da varanda e ele rangeu, porém não me impressionei, já esperava isso. Comecei a subir rapidamente e tropecei no último degrau, precisando me apoiar no corrimão para não cair e, novamente, quase derrubando o edredom.

– Vai, trouxa – Eliel zombou quando passou por mim na velocidade da luz, carregando sua mochila.

Vou te mostrar quem é a trouxa, pensei já recuperando o equilíbrio e voltando a andar para dentro da casa.

As luzes eram amareladas e fracas, o que dava um clima ainda mais bizarro àquela casa bizarra. Era o cenário perfeito para um filme de terror, fato que só me fazia amar aquilo ainda mais.

Ok, talvez não fosse muito recomendável ter fanatismo por terror ao mesmo tempo em que se mora no meio do mato de uma cidade isolada. Afinal, como minha mãe sempre diz, quem procura acha.

Ah, quem ligava para isso? O que eu mais queria era mesmo achar algo, ter um pouco de emoção na minha vidinha sem graça.

– Mãe? – Chamei inspecionando os cantos escuros do cômodo vazio.

– Estou aqui em cima – sua voz disse descendo em eco pelas escadas que levariam até o segundo andar.

Mais uma vez precisei subir escadas, respirando fundo e reclamando a cada degrau. Apesar de ser quase um saco de ossos de tão magra, eu era muito sedentária e odiava fazer qualquer coisa para a qual precisasse me locomover. Era um saco.

– Onde? – Perguntei depois de chegar em um corredor mais que comprido, com uma porta na parede final e outras duas nas paredes laterais.

– Aqui – ela respondeu saindo da porta da esquerda. – Os quartos são enormes e, como eu prefiro ficar lá embaixo, eles serão todos seus e do Eliel.

Sorri e novamente dei de ombros, abrindo a porta da direita. O quarto estaria vazio se não fosse por uma cama, um armário, e um criado-mudo antigo.

– Móveis novos também?

Mamãe riu e apoiou-se no batente da porta.

– Pensei que tivesse avisado – disse em tom brincalhão. – Não estamos só mudando de casa, estamos mudando de vida.

Joguei o edredom em cima da cama e dei um abraço apertado em mamãe.

Meu pai havia morrido quando eu ainda era muito nova e recentemente ela havia se divorciado do pai de Eliel, devia ser uma droga ser ela no momento.

– Por isso você deve ficar feliz. Sei que não é fácil mas, mesmo o Eliel sendo muito novo e eu sendo... hum... um pouquinho irresponsável, estaremos aqui para ajudar no que for possível.

– Obrigada, vocês não sabem o quanto sou feliz por ter vocês.

– É claro que sei – falei com certa ironia e ela me deu um tapa leve no braço e riu.

– Nada convencida – disse e saiu do quarto, pude ouvir seus passos quando desceu a escada.

– Só verdades – murmurei e me joguei de costas na cama, enrolando-me no edredom mais uma vez.

Tudo ótimo, finalmente minha vida estava como eu sempre quis – a única coisa, por enquanto, que eu considerava um porre era a mudança de escola.

Sim, é estranho, mas eu meio que sempre tive medo de conversar com pessoas desconhecidas, na maioria das vezes parece que vão me assassinar ou me denunciar ao sei lá o que dos direitos humanos por ter nascido e ser uma ameaça para o mundo das pessoas legais.

– Lis! A mamãe tá te chamando – Eliel gritou do andar de baixo seguido de minha mãe resmungando um "Se fosse para gritar eu mesma gritava". Eu apenas bufei e revirei os olhos.

– Já vou – gritei de volta em tom completamente entediado.

Praticamente me arrastando feito um morto-vivo, desci da cama e sai do quarto, escorando-me completamente na parede ao descer a escada.

– Os caras da mudança levaram algumas caixas para o sótão, pode dar uma olhada? – Pediu assim que cheguei na metade dos degraus e até senti meu coração palpitar.

– Temos um sótão? – Perguntei segurando com força o corrimão de madeira e deixando marcas fracas onde minhas unhas haviam apertado, podia até imaginar espíritos presos dentro de lá me levando para só Deus sabe onde. – Nem ferrando que vou lá sozinha, mande o Eliel ir comigo, ele não faz nada da vida dele mesmo.

– Ué, tá com medo, Lis? – Ele zombou sem tirar os olhos de seu joguinho no celular. – Não era você que queria encontrar um fantasma?

– Cale a boca! Mãe! – Guinchei em uma voz irritada e extremamente aguda que nem eu sabia ter.

– Filho vai lá com a sua irmã, por favor? – Minha mãe pediu com uma doçura única usada especificamente para suas chantagens emocionais e rapidamente Eliel largou o celular dela no sofá, deixando seu precioso jogo pausado.

– Claro – respondeu vindo logo atrás de mim.

Mais uma vez revirei os olhos e voltei a subir as escadas, ligando as luzes de todos os lugares possíveis.

– Onde fica, mãe? – Gritei sem conseguir encontrar alguma porta que não fosse dos quartos e do banheiro.

– Não sei, deve ter alguma portinha pequena em algum lugar do teto, procure oras.

Tudo bem. Respirei fundo e passei a procurar em cada canto do teto, até achar um pequeno encaixe quadrado com uma maçaneta também quadrada de metal que pelo visto eu não ia alcançar.

– Eliel, vem aqui – chamei e ele veio com a mesma vontade com a qual eu levantava da cama, ou seja, nenhuma. – Eu não vou conseguir alcançar isso aqui sozinha, então vou te levantar e você puxa, pode ser?

– Tá, né – resmungou.

O puxei pela cintura e o levantei o máximo que conseguia, sentindo meus braços tremerem.

– Anda logo com isso, você pesa muito para alguém tão pequeno – reclamei e ele grunhiu.

– Espera... é muito pesado – disse arfando e o coloquei de volta no chão.

– Pesado, claro, e você é muito leve - eu disse irônica e o levantei mais uma vez. – Agora puxe de uma vez senão...

Um estalo alto preencheu meus ouvidos e uma escada pequena desceu à nossa frente, grudada com a portinha que Eliel havia finalmente conseguido puxar.

Olhei para cima e tossi. Lá estava completamente escuro e com um forte cheiro de mofo que veio junto com o ar abafado que parecia estar preso ali há milênios.

– Não vou entrar aí, é nojento – falei virando o rosto para respirar ar saudável.

– Anda logo – Eliel disse irritado, já subindo a pequena escada que rangeu sob seu peso.

Dei de ombros e peguei meu celular no bolso de trás dos jeans, ativando a lanterna. Ainda hesitei um pouco antes de subir o primeiro degrau.

– Anda logo, não consigo enxergar nada – Eliel gritou, fazendo-me pular com o susto repentino.

– Cale a boca, já estou indo.

Apoiei a mão livre no terceiro degrau, sujando-a inteira de poeira e deixando marcas de dedos ao retirá-la.

Finalmente cheguei ao sótão onde, para o azar de meus pulmões, era bem mais abafado e fedido do que parecera, meu nariz chegava a arder.

– Eliel? – chamei e uma mão surgida do escuro puxou meu braço para me ajudar a levantar.

– Tô aqui, anda.

Levantei a lanterna do celular e meu corpo inteiro gelou. Um arrepio percorreu minha espinha, me dando uma sensação extremamente bizarra e perturbadora e me fazendo apertar a mão de Eliel com força até ele reclamar de dor.

– Que merda... É essa? – sussurrei, iluminando o monte de bonecas assustadoramente realistas à minha frente, cobertas de poeira e espalhadas por todo o cômodo.

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