Capítulo 2

Deviam ser por volta de cinco e meia da manhã quando finalmente desisti de caçar o sono e me sentei na cama virada para a janela, observando as poucas estrelas que não haviam sido escondidas por nuvens. Não conseguia tirar aquela família de bonecas da minha mente, afinal, eu nunca havia visto nada tão bizarro e sem sentido.

Tinham aproximadamente umas vinte bonecas lá, todas diferentes umas das outras, cada uma assustadora à sua maneira. E no fim, as únicas caixas que eu e Eliel encontramos no sótão continuaram lá, pois nenhum de nós foi corajoso o suficiente para permanecer naquele lugar pelo tempo que fosse.

Meu coração palpitava e a cada meio minuto um arrepio percorria minha espinha. Claro, eu estava morrendo de medo, mas não pude evitar um sorriso. Era tão estranho mas ao mesmo tempo tão legal.

"Deve ser algo que os antigos donos deixaram, não sei" foi o que minha mãe disse, mas é óbvio que eu não engoliria algo assim. Uma louca fanática por terror e que enxerga coisas e motivos sobrenaturais em tudo simplesmente acreditar em uma explicação rasa e normal como essa? Haha, nem em sonho.

Peguei o celular debaixo do travesseiro e apertei um botão qualquer para ver as horas. Faltavam quase dez minutos para as seis e eu ainda estava sem sono algum.

Soltei um grunhido e deitei novamente, afundando o rosto num amontoado de cobertas, almofadas e ursos de pelúcia.

– O que acha, Berrie? – Sussurrei para o meu urso favorito, apertando ele contra o peito. – Deve ter alguma coisa e...

Gelei ao ouvir alguém bater na porta. Afundei ainda mais minhas unhas no corpo fofo e cor-de-rosa de Berrie e respirei fundo, ainda hesitando para descer da cama e ir abrir a porta.

Mais três batidas.

Meus parabéns demônios aleatórios, escolheram a melhor pior hora para assombrar a minha casa.

– Anda Lis, eu sei que você tá acordada... – disse baixinho uma voz sonolenta e, no mesmo instante, saltei da cama para a porta, ou quase isso.

– Mas que merda Eliel, quer me matar do coração? Idiota – xinguei irritada, abrindo a porta, empurrando-o para dentro do quarto e já fechando a porta novamente, quase tudo ao mesmo tempo, tão rápido que quase que nem eu mesma entendi direito o que estava fazendo.

– Para de gritar, vai acordar a mamãe – ele disse cambaleando em direção à minha cama.

– O que está fazendo aqui à essa hora? – Questionei ainda me recuperando do susto anterior. Nada legal.

– Tinham ratos no meu quarto, não me deixaram dormir por causa do barulho – resmungou já se enrolando no edredom.

– Ratos? – Perguntei balbuciando, mais para mim mesma do que para ele.

– É, ratos, morcegos... Não sei, tinha algum roedor dentro do guarda-roupa ou embaixo da minha cama, não sei, tô morrendo de sono.

– É, tinham morcegos dentro do guarda-roupa e eles são roedores, sim, com certeza – concordei com ironia. – Seu anta.

– Ah cala a boca, vai dormir também.

Suspirei e revirei os olhos. Ótimo, não bastava não ter sono, tinha que aguentar o idiota do Eliel na minha cama. Que vida mais perfeita.

– Vai um pouco mais para o lado seu imbecil, não sou feita de vento – mandei e o empurrei antes mesmo que ele conseguisse entender o que eu estava falando.

Me escondi debaixo do edredom e voltei a observar o céu que já começava a ganhar um tom mais claro.

Depois de mais ou menos uma eternidade, comecei a pegar no sono. Já nem sabia mais diferenciar sonhos e realidade quando um filhotinho de gato siamês parou no gramado e começou a me encarar, soltando miados agudos e curtos de vez em quando.

– Coisa fofa – disse baixinho mais para mim mesma do que para o gato e fechei os olhos, caindo em um sono pesado.

                                                                ◈◇◈

– Lis! Anda, acorda, a mamãe mandou você descer – uma vozinha sussurrou no meu ouvido e eu apenas cobri o rosto com a coberta.

– Descer... Descer para onde? – Murmurei sem entender o que estava acontecendo, mal sentia meu corpo.

– Para a sala sua burra! Anda, já são dez e meia!

– Dez e... meia? – Disse um pouco mais alto com minha melhor voz psicótica. – E você ainda diz 'já'? Sabe que horas eu fui dormir ontem?

– Mas a...

– Marliss Stella! Desça agora ou eu mesma vou aí te acordar! – Gritou a voz furiosa de minha mãe, me fazendo estremecer.

Era quase um milagre minha mãe se irritar, mas era um milagre ruim que eu preferia não ver.

– Já vou – gritei em tom mal-humorado e cocei os olhos, apenas ouvindo o som dos passos apressados de Eliel indo para fora do quarto.

Com a maior preguiça e má vontade do mundo, rolei para fora da cama e caí sentada no chão, ainda resmungando.

– É pra hoje querida – minha mãe gritou novamente e, parecendo um zumbi, me levantei resmungando e fui até o guarda-roupa.

Comecei a vasculhar pelo amontoado de roupas que eu havia guardado – lê-se jogado – ali, até encontrar algo duro que parecia ser feito de plástico por entre as roupas. Puxei a coisa para cima e soltei um gritinho, jogando-a longe.

Parei por um momento, estática, apenas encarando a boneca loira que havia sido arremessada para o outro lado do quarto. Fechei os olhos e respirei fundo, contando até dez.

– Muito engraçado Eliel, muito engraçado... – sussurrei sentindo o ódio percorrer as minhas veias.

Rapidamente troquei de roupa, colocando meu melhor moletom brega, listrado de azul e laranja com o rosto de um urso estampado na frente, e meus jeans escuros.

Desci para a sala sem ao menos pentear o meu cabelo que devia estar parecendo um ninho de pássaros, meu rosto completamente vermelho, e podia jurar que, se fosse um desenho animado, eu estaria soltando vapor pelas orelhas.

– Meus parabéns seu palhacinho, já pode entrar para o circo – falei indo direto em direção à Eliel e lhe dando um empurrão.

– O que foi que eu fiz agora sua louca? – Ele respondeu me empurrando de volta e dei uma falsa risada.

– Louca? Vou te mostrar o que...

– Podem parar agora! – Minha mãe gritou e paramos para encará-la.

Ótimo. Mais uma bronca por causa daquele imbecil. Olhei para ele e apertei as unhas contra as palmas das mãos, queria esganá-lo.

– O que aconteceu? – Mamãe perguntou em tom estressado e entediado e suspirei.

– O idiota do Eliel foi dormir comigo ontem e escondeu uma daquelas coisas endemoniadas que vocês chamam de boneca no meu armário.

– Mentirosa! Você sabe muito bem que eu não subiria lá de novo nem que me pagassem!

– Aham, conta outra.

– Calem a boca! – Mamãe gritou e eu suspirei mais uma vez. – Eliel, eu já cansei de falar que eu não quero você fazendo esse tipo de brincadeira com a sua irmã, se fosse o contrário você também não iria gostar.

– Mas não fui eu, mãe!

Ela apenas o ignorou, voltando-se para mim.

– E você pare de ser tão escandalosa, é só uma boneca, não um assassino.

– Nunca se sabe – respondi e ela bufou, soltando algo parecido à um rosnado.

Não era mentira. Nunca se sabe, bonecas podiam muito bem serem assassinas, eram coisas tão estranhas, pareciam que tinham sido feitas especificamente para guardar espíritos e outros rituais satânicos esquisitos.

– Eu vou trancar aquela porcaria já que não vamos mesmo usar para nada, assim não tem como isso acontecer de novo.

– Tudo bem – eu e Eliel respondemos em uníssono e logo ele voltou para seu joguinho.

– O que queria? – Perguntei e mamãe foi procurar algo em sua bolsa que parecia um buraco negro, você poderia guardar o mundo inteiro ali dentro e ainda assim sobraria espaço para Júpiter.

– Vamos ao mercado, dê um jeito nesse cabelo, pelo amor do bom Deus – ela respondeu.

– Não deve estar tão ruim, eu nem... – parei a frase pela metade e encarei uma mecha que caía bem a frente do meu rosto, parecia palha carbonizada. – Está horrível, já volto.

Fui até o banheiro e peguei uma escova qualquer, começando a desembaraçar pelas pontas aquele conjunto de nós que muitos chamam de cabelo. O prendi com uma trança lateral e dei de ombros. Bem melhor.

– Pronto, estou ótima – disse voltando para a sala onde mamãe já segurava as chaves do carro em uma das mãos.

– Aham, seus pés descalços também estão ótimos.

Olhei para baixo e soltei um resmungo, não lembrava onde havia deixado meus tênis.

– Eu não...

– Estão no carro, vamos – ela disse me interrompendo e indo para fora de casa.

Arqueei as sobrancelhas e suspirei, desejando ter pelo menos dois por cento dos poderes telepáticos de minha mãe.

Fiz o caminho até o carro pedindo por asas toda vez que pisava em alguma poça de lama escondida entre aquele monte de grama alta, era o inferno molhado e meus pés estavam entorpecidos de frio.

Quando cheguei naquela coisa prata e nada chamativa, abri a porta e me joguei no banco, ligando o aquecedor na velocidade da luz.

– Seque esses pés enlameados antes que eu corte eles fora – minha mãe disse me dando um pano aleatório que guardava para ocasiões aleatórias como aquela.

Aleatório... Eu realmente gostava dessa palavra, era tão... Aleatória.

– Tudo bem, não precisa agredir – respondi deixando meus devaneios sem sentido de lado.

Enquanto secava os pés, comecei a observar a paisagem pela janela embaçada. Estava tudo embaçado na verdade, a neblina parecia ser dona do lugar.

As árvores eram muitas dos dois lados da rua – talvez o motivo de tanta neblina? – e vez ou outra eram visíveis pequenas casas parecidas com a nossa. Em uma delas pude ver uma garotinha mais ou menos da idade do meu irmão, estava sentada nos degraus do lado de fora da varanda da casa, brincando com uma boneca bebê.

Voltei meus olhos para meus pés já limpos, preferia não ver mais bonecas por hoje. E aquela menina devia ser doente ou algo do tipo para estar brincando fora de casa com o frio que fazia. Bom, talvez ela não fosse doente, apenas morta.

Deixei escapar um sorrisinho e percebi que mamãe estava me encarando como se eu fosse louca.

– O que foi? – perguntei encarando-a de volta.

– Quem é Abelle?

– E como eu vou saber?

– Não sei, você quem disse.

Meu coração palpitou por um instante e senti minha respiração falhar.

– Eu disse o quê? – perguntei e ela me olhou, furiosa.

– Para de se fazer de idiota, você estava sorrindo igual uma doida e... Bom não importa, só tente ser menos estranha, nem parece que é minha filha.

Eu ri e revirei os olhos. Claro, porque ela era muito normal mesmo. Ainda podia me lembrar perfeitamente das histórias que me contava quando criança, sobre ser sequestrada e torturada por bonecas – sem dúvidas a causa da minha quase fobia.

Coloquei os sapatos e mamãe parou o carro em frente a uma pequena praça, cheia de árvores peladas e folhas secas e alaranjadas forrando o chão.

Isso fez eu me perguntar se as árvores não se sentiam envergonhadas de estarem peladas onde todos podiam vê-las, afinal, eram vivas como qualquer um.

– Lis! O que está acontecendo com você hoje? Já te chamei três vezes! – Mamãe disse alto demais, o que fez eu me assustar de leve e dar um pulinho no banco.

– Ela foi para o País das Maravilhas – Eliel disse sem ao menos tirar os olhos da tela do celular e o mandei calar a boca, só para não perder o costume.

– Vai entrar comigo ou vai ficar no carro? – Ela perguntou já impaciente e fiquei em silêncio por um momento, decidindo. Eu era definitivamente horrível em decidir coisas.

– Vou com você – finalmente respondi e ela assentiu.

Eliel quis continuar no carro com seus jogos estranhos e barulhentos, então mamãe trancou as portas e levou as chaves.

O mercado ficava do outro lado da rua e não era nada muito grande ou impressionante.

Um toldo vermelho cobria a calçada e a tinta amarela da fachada já estava começando a descascar. Tinha o tamanho de uma mini-padaria.

Fiquei parada o tempo todo atrás de minha mãe, balançando-me para frente e para trás sobre os calcanhares enquanto ela enchia a cesta em sua mão, imaginei como seria se objetos inanimados tivessem vida.

– Não é engraçado? – disse uma senhorinha que parecia ter brotado do chão ao meu lado, me encarando e exibindo um sorriso gentil e curioso.

– O que? – perguntei distraída, pega de surpresa pelo diálogo repentino, e ela soltou um longo suspiro.

– Saber que tudo tem uma alma, mesmo que isso pareça impossível – ela respondeu mas não falei nada dessa vez, estava confusa demais. Ela pareceu ter percebido, pois deu uma risadinha e voltou a falar. – Quero dizer, não é como se uma lata de ervilha fosse se apaixonar por uma de milho e ambas fossem criar pernas e fugir para não virar jantar de alguém.

Eu sorri e assenti. Era como se ela pensasse as mesmas coisas que eu. Talvez pudesse ler mentes?

– Sim eu entendo. Mas que tipo de objetos a senhora acha que podem ter alma? – Perguntei ficando cada vez mais curiosa com o assunto e cada vez mais interessada na estranha senhora.

– Oh minha querida, você sabe – ela respondeu pegando minhas mãos geladas e as escondendo sob as suas. – Como se chama?

– Marliss.

– Marie Ann, é um ótimo nome – ela disse com alegria e preferi não corrigi-la. – Bem, você sabe do que estou falando, é uma menina muito inteligente, Marie Ann.

– Sei? Sou? – Franzi as sobrancelhas e perguntei num sussurro, mais para mim mesma do que para ela.

– Sim, sim... As... – ela parou por um momento, como se estivesse tentando se lembrar de algo, e um garoto apareceu de trás de uma prateleira, parecia desesperado.

– Meu Deus vó, a senhora quer me matar de susto? – ele disse e colocou as mãos sobre os ombros dela.

– Oh! Me desculpe Henri, querido, eu precisava falar com ela, eu vi...

– Não vovó, a senhora não viu nada.

Eles se encararam por um tempo, como se conversassem apenas com o olhar. Bem, eu mesma estava encarando o tal de Henri, quem não encararia alguém com belos e brilhantes olhos verdes como aqueles? Eram como as folhas das árvores no início do outono, meio esverdeadas, meio douradas. E eles ficavam mais bonitos ainda sob seus grandes óculos quadrados...

– Marie Ann? – a senhora me chamou, jogando meus devaneios para longe.

Talvez Eliel estivesse certo e eu realmente estivesse com um pé no mundo real e outro no País das Maravilhas.

– S-sim... – respondi ainda meio viajando.

– Apareça lá em casa uma tarde dessas para conversarmos, você é uma garota bem interessante.

– Claro – concordei instantaneamente, nem sabia se minha mãe aprovaria essa ideia mas pouco importava, eu estava precisando conversar com alguém que não fosse ela e Eliel. – Como se chama?

– Oh sim, sim... Como me esqueci de algo tão importante? – Ela riu. – Sou Emilly, mas pode me chamar de Emy. A propósito, minha casa não fica muito longe, é na rua à frente dessa, número 1882, tem o muro feito de tijolinhos cor de abóbora e...

– Eu a espero na frente de casa vó, agora precisamos ir – Henri disse arrastando Emy para fora do minimercado, ela resmungando sobre não ter terminado de falar. – Me desculpe, Marie Ann.

Eu ri e murmurei para mim mesma:

– É Marliss.

Mamãe já estava no caixa pagando as comidas e infinidade de doces que havia comprado. Parei ao seu lado e ela me olhou como se quisesse rir da minha cara.

– Nem vem – eu disse de prontidão. – A única coisa que sei sobre ele é que se chama Henri e que tem belos olhos.

– Aham – mamãe respondeu com ironia e comprimiu os lábios para segurar a risada.

Ótima mãe a que os Deuses escolheram para mim. Perfeita.

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