A pequena embarcação ancorou na ilha do Francês, no litoral brasileiro. A ilhota era assim denominada por servir de habitação a um tenente francês que ali aportou, após a segunda guerra mundial. Edmond Ordonez construiu uma grande casa e o cais na pequena ilha. O oficial ia semanalmente ao continente, com seu barco, para comprar materiais de construção e alimentos. Era conhecido e querido por todos. Edmond era médico e construiu um posto médico na ilha, onde cuidava das pessoas gratuitamente. Ele faleceu em 2002, aos noventa e três anos, esbanjando vitalidade e sabedoria. Sem aparecer na cidade litorânea de Lages, foi encontrado após três dias, por amigos pescadores. A ilha e a casa foram abandonados.- Há cobras nessa ilha?- Sim, doutor mas estão no morro, na vegetação densa. - Terei que ficar nesse casarão antigo?- Nada que uma boa faxina não resolva. Meus homens cuidarão disso. Vamos consertar as telas das janelas e abastecer a despensa com muita comida e uísque. Você merece.
Dois meses se passaram. A secretária interfonou para a presidente Bianca. Ela saiu de seu cochilo e tirou os pés da mesa.- Presidente Bianca, ligação de Nova York. Ronald Higgins. Transfiro?- Sim, Mercedes. Obrigada.Ela pensou.- O que esse cara quer comigo?Ela se endireitou na cadeira e colocou doçura na voz.- Bom dia. Finalmente, amigo.- Bom dia, senhorita. Primeiramente, os meus sentimentos pela sua tia. Uma pena.- Obrigada, Ronald. Já está fazendo tanta falta.- De fato. Segundo, como estão os andamentos de seu projeto? - A todo vapor, amigo. Será um sucesso, sem sombras de dúvidas.- Recebemos algumas queixas de seu pessoal, junto às agências, em especial a Unicef. Parece que não se deram bem trabalhando juntas. Sabia que teve um tufão violento nas Filipinas? Tive que tirar nossos médicos de lá.- Eu fiquei sabendo. Entrei em contato com nosso pessoal.Ela mentiu. - Lembre-se que há um prazo para os objetivos, querida. Não quero lhe intimidar, ao contrário. O segundo apo
Humberto bateu a porta do apartamento.- Que humilhação.Renata se despediu do encanador e pegou a garrafa de whisky no bar. Humberto sentou-se no banquinho.- Alguém aqui está pistola. Quer uma dose, com gelo ou sem gelo?- Com gelo, por favor.Renata o fitou. Humberto estava bufando, de tão nervoso.- A reunião virtual com a presidente o deixou assim?- Aquilo não foi reunião mas sim humilhação, Rê.Ela acendeu um cigarro.- Estou mais preocupada com o nosso chuveiro, que está esquentando pela metade. Já imaginou quando o inverno chegar?- Me poupe.Ela apagou o cigarro, pela metade, no cinzeiro.- O cara veio aqui pois eu o chamei, indicado pelo zelador. Você não conhece o zelador, Jeremias nem o síndico, o Benício. Pudera, você não vai às reuniões e assembléias. Levamos duas multas, de oitocentos reais cada, por excesso de barulho, gritarias e bebedeiras às duas horas da madrugada. Está aqui , dias treze e quinze. Os dias em que eu estava em Santa Catarina.- Sério? Eu as pago.-
O sorriso de Humberto desapareceu ao ouvir uma voz diferente, quando a porta ficou entreaberta.- Quem é? Guilherme, tem gente na porta!- O Gui está aí? É o Humberto.- Só um momento.Antes que a porta fosse fechada, Humberto percebeu que o rapaz estava nú. Mais que isso, havia outro homem atrás dele. Dez minutos depois, a porta abriu. Para sua surpresa, Guilherme saiu.- O que quer a essa hora, Humberto?- Amor, fui despedido da fundação, pela Renata. Ela também me expulsou do apartamento. Estou na rua.Guilherme olhou para as malas no chão. Humberto olhou bem para o outro, só de roupão e de cabelo molhado. Tinha o semblante de alguém que estava numa festinha particular, com muita bebida.- Será que eu poderia ficar com você, só até arrumar um lugar? Quebra o meu galho.Guilherme apertou os lábios.- Infelizmente, meu caro, não vai dar. Quem quebra galho é macaco gordo. Minha tia vem do Paraná, com meus dois sobrinhos. O meu tio Lauro faleceu e ela quer vir pra cá. Terei que acolher
A ambulância chegou a praça. Apollo estava impaciente, olhando os paramédicos colocarem Humberto na maca. O colete cervical foi colocado com cuidado. Humberto estava desacordado.- O senhor conhece a vítima?Perguntou um policial a Apollo.- Conheço, sim. O nome dele é Humberto e trabalhou comigo, numa fundação de ajuda a refugiados. Não estou mais lá, ele sim. Ocupa um cargo alto e importante, de coordenar a fundação no território nacional.Disse Apollo, sem saber que Renata o havia despedido.- Por favor, levem-no para o hospital Redenção. Tenho o convênio e sou colaborador deles, desde a fundação. Pagarei todas as despesas hospitalares do meu amigo. Tenho que levar esses remédios a minha noiva. Logo em seguida, irei para o hospital. Vou guardar as malas no meu carro, pra devolver a ele depois.Apollo entregou seu cartão médico ao enfermeiro. - Podemos confiar no senhor? Não está mentindo pra pegar as malas dele?- De jeito nenhum, policial. Esse rapaz esteve comigo, recentemente
- Acho que a gente se falou mais nessas horas, aqui no hospital, do que no nosso tempo na Hermann.- É verdade, Humberto. - Você devia me achar muito chato.- Essa era a sua visão. Nós somos o que somos. Você nunca foi chato, ao contrário. Era alegre e comunicativo. As pessoas nos enxergam de um modo, nós também as vemos de outro modo. Essa visão pode mudar, logicamente. Para melhor ou pra pior de acordo com o conhecimento do outro. Sempre o achei muito capaz, uma pessoa agradável e zelosa para com os refugiados. - Legal, Apollo. É bom ouvir isso. Realmente, a minha visão sobre você mudou muito.- É o que falei sobre o conhecimento. Eu conheci o Humberto da fundação. Por isso, a minha visão é baseada na sua atuação na fundação.- Entendi. Apollo verificou as horas no celular.- São dez para as onze da noite. Eu tenho que ir.- Achei que ia dormir aqui, de acompanhante?- Gostaria mas não posso. Jheniffer está com uma alergia forte, estava tremendo até. Imagina, uma pessoa jovem,
Apollo deixou o corpo cair na poltrona de acompanhante do hospital.- Não creio.Humberto se manteve sério.- Pode acreditar, Apollo. Só estou lhe contando porquê você foi muito bom comigo, quando estava no fundo do poço, onde estou agora. Eu estou lascado, quebrado, valendo menos que uma moeda de um real. Perdi o cargo na fundação, o teto, o companheiro, o chão, tudo. Estava a um passo da morte mas você me resgatou.Humberto começou a chorar.- Eu fiz tanto mal a você. É um tapa na cara que a vida está me dando pois, aquele a quem fiz tanta coisa ruim, me estende a mão. Me salva, paga as despesas do hospital e me dá um quarto de hotel.- O que você me fez de ruim?- Talvez não tenha feito, diretamente mas ajudei a fazer, indiretamente. Colaborei com as falcatruas da Bianca, levado pela influência da Renata, que me apunhalou pelas costas. Pensava que ela era a minha melhor amiga.- Isso é muito sério, Humberto.- Eu juro. Após a decepção com o Guilherme, pensei em me jogar de um viadu
Apollo e Humberto chegaram ao hotel, no Itaim.- É um lugar luxuoso, Apollo. Estarei feliz em qualquer pensão, meu anjo.- Não é um cinco estrelas. Me passe seu telefone pessoal, pra mantermos contato. - Certo.- Seu telefone é a sua chave pix?- Não, é o meu número de CPF.- Perfeito. Deixarei três semanas de hospedagem pagas. Terá cinco mil na sua conta, caso precise comprar alguma coisa.- Puxa, Apollo. Nem sei como agradecer e retribuir.- Já está fazendo isso, Humberto. Confiando em mim e me abrindo os olhos. O que me contou não tem preço.- O que eu poderia fazer, se você salvou a minha vida? Estou envergonhado. Como administrador da fundação, eu devia ser o exemplo. Diz tudo ao contrário das palestras de médicos, psicólogos e assistentes sociais que eram voluntários na fundação.- Eu entendo, Humberto. O bom padre não é aquele que sabe pregar, falar bonito, cantar ou ser carismático. É bom ser assim mas o fundamental é viver aquilo que prega. Ser cristão é ser seguidor do Cris