Clara acordou com o sol batendo suavemente na janela do seu pequeno apartamento no centro da cidade. Ela esticou os braços, bocejou e olhou para o relógio. Ainda era cedo, mas ela já estava acostumada a acordar com as primeiras luzes do dia. Era o seu momento de silêncio, antes que a agitação da rotina tomasse conta.
Vestindo um roupão macio, ela desceu para pegar o jornal na portaria. O elevador estava quebrado — de novo —, então ela desceu as escadas, resmungando baixinho sobre o prédio antigo e cheio de problemas. Na portaria, o zelador, Sr. Carlos, já tinha separado o jornal para ela, como fazia todas as manhãs.
— Bom dia, dona Clara! — cumprimentou ele, com um sorriso largo.
— Bom dia, Carlos. O elevador... — ela começou, mas ele já sabia. — Já chamei o técnico. Hoje mesmo ele vem, pode confiar!Clara sorriu, agradeceu e voltou para o apartamento com o jornal debaixo do braço. Enquanto preparava seu café, ela folheou as páginas, passando rapidamente pelas manchetes políticas e econômicas. De repente, algo chamou sua atenção. Num cantinho discreto, quase escondido, havia um pequeno quadro intitulado "Cartas do Coração". Era uma seção onde as pessoas compartilhavam mensagens, desabafos ou até mesmo pedidos de conselhos.
Um texto em particular a fez parar. A letra era firme, mas suave, e as palavras pareciam carregadas de uma sinceridade rara. O homem — pelo menos ela presumia que fosse um homem — escrevia sobre o céu estrelado do campo, o cheiro da terra molhada depois da chuva e a sensação de paz que sentia ao observar a natureza. Era tudo meio genérico, sim, mas havia algo naquela carta que a tocou. Talvez fosse a simplicidade, ou a maneira como ele descrevia coisas que ela, na correria da cidade, nem sequer percebia mais.
Sem pensar muito, Clara pegou uma caneta e um pedaço de papel. Ela não sabia explicar por quê, mas sentiu que precisava responder. Escreveu algumas linhas, falando sobre como a carta dele a fez parar por um momento em sua rotina agitada. Ela não se alongou muito — afinal, era só uma resposta casual, certo? —, mas assinou com seu nome e endereço antes de dobrar o papel e colocá-lo em um envelope.
No correio, enquanto postava a carta, ela sentiu um frio na barriga. O que estou fazendo?, pensou. Mas logo se convenceu de que era apenas uma curiosidade passageira. Afinal, quantas chances havia de ele realmente responder?
Os dias seguintes foram uma loucura. Clara estava no meio do lançamento do seu novo livro, e a agenda estava cheia de eventos, entrevistas e sessões de autógrafos. Em uma livraria no centro da cidade, ela se sentou atrás de uma mesa, cercada por pilhas de livros. Os fãs formavam uma fila que parecia não ter fim. Alguns traziam presentes, outros pediam selfies, e muitos só queriam dizer o quanto suas histórias tinham tocado suas vidas.
— Clara, você é minha inspiração! — disse uma jovem, com os olhos brilhando.
— Obrigada! — respondeu Clara, sorrindo e assinando o livro com uma dedicatória especial.Era gratificante, mas também cansativo. No final do dia, ela voltou para casa exausta, mas com um sorriso no rosto. Enquanto preparava um chá, ela olhou para a mesa de trabalho, onde uma pilha de cartas de fãs aguardava para ser lida. De repente, lembrou da carta que havia enviado alguns dias antes. Será que ele respondeu?, pensou, sentindo uma pontada de curiosidade.
Mas não havia tempo para isso. Ela tinha prazos a cumprir, textos para revisar e uma nova história para começar. A vida de Clara era assim: cheia, intensa e sempre em movimento. A carta era só um pequeno detalhe, algo que provavelmente não levaria a lugar nenhum.
Ou será que levaria?
Enquanto Clara se preparava para mais um dia agitado na cidade, no campo, Daniel acordava com o canto dos pássaros. O sol ainda estava se levantando, pintando o horizonte com tons de laranja e rosa. Ele se alongou na cama, como fazia todas as manhãs, antes de se posicionar cuidadosamente na cadeira de rodas. O movimento era quase automático, parte de uma rotina que ele já dominava há anos.
No pequeno canto da cozinha, ele preparou seu café forte — o leite tinha acabado, mas ele não se importava. O café puro era suficiente para acordar seus sentidos. Enquanto tomava o primeiro gole, ele olhou pela janela, observando o campo que se estendia até onde a vista alcançava. Era um cenário que ele conhecia de cor, mas que nunca deixava de admirar.
De volta ao quarto, Daniel se sentou à mesa de trabalho, onde pilhas de papéis e livros se misturavam. Ele pegou uma caneta e começou a escrever. Era uma ficção científica, sua paixão secreta. Nas histórias que criava, ele viajava para mundos distantes, onde as limitações físicas não existiam. Ali, ele podia ser um explorador, um herói, qualquer coisa que sua imaginação permitisse.
O dia passava devagar, como de costume. Até que, no final da tarde, o som de passos pesados interrompeu o silêncio. Era Carlos, seu irmão mais velho, que sempre aparecia sem avisar.
— Chegou uma carta pra você — anunciou Carlos, segurando o envelope com uma expressão curiosa.
— Carta? — Daniel franziu a testa, tentando adivinhar quem poderia ter escrito. — Político cobrando alguma coisa? Ou outra dívida? — Não, não. É uma mulher — respondeu Carlos, com um sorriso maroto.Daniel olhou para o irmão, desconfiado. Ele pegou a carta e examinou o envelope. O nome "Clara" estava escrito em uma letra delicada, e o endereço era da cidade.
— Alguém daqui do campo? — perguntou, ainda tentando entender. — Essa gente nem tem tempo de ler jornal, Daniel. Deve ser alguém da cidade — respondeu Carlos, encolhendo os ombros.Daniel abriu a carta com cuidado, como se temesse que ela pudesse desaparecer a qualquer momento. Enquanto lia as palavras de Clara, um sorriso tímido surgiu em seu rosto. Ela falava sobre como a carta dele a fez parar por um momento, como se o mundo tivesse desacelerado. Era uma mensagem simples, mas sincera.
Carlos observava o irmão com interesse.
— E aí, o que ela diz? — Nada demais — respondeu Daniel, tentando disfarçar a emoção. — Só uma resposta. — Uma resposta, hein? — Carlos riu. — Vai escrever de volta?Daniel não respondeu imediatamente. Ele olhou para a carta novamente, sentindo uma mistura de curiosidade e hesitação. Escrever para uma mulher da cidade era algo completamente fora da sua realidade. Mas, ao mesmo tempo, havia algo naquelas palavras que o intrigava.
Sentado à mesa, ele pegou uma folha de papel e começou a escrever. As palavras saíam meio emboladas, como se ele estivesse tentando se equilibrar entre a sinceridade e o medo de parecer desinteressante. Ele falou sobre o campo, sobre como o silêncio da noite era diferente da agitação da cidade, e sobre as histórias que ele gostava de criar. No final, ele assinou com seu nome e endereço, mas deixou de fora qualquer menção à sua cadeira de rodas. Por enquanto, pensou.
— Pronto — disse ele, entregando a carta para Carlos. — Pode mandar.
— Vai ver essa moça da cidade acaba vindo te visitar — brincou Carlos, com um sorriso malicioso. — Não exagera — respondeu Daniel, mas não pôde evitar um sorriso tímido.Enquanto Carlos saía para levar a carta ao correio, Daniel ficou olhando pela janela, imaginando quem seria aquela Clara. Será que ela responderia de novo? Ou aquela seria apenas uma troca de palavras passageira, como tantas outras coisas na vida?
Clara estava sentada em sua escrivaninha, cercada por pilhas de livros, cadernos e xícaras de café vazias. A luz do abajur criava um círculo quente sobre a mesa, iluminando a carta que ela acabara de receber. Apesar da exaustão de um dia cheio de compromissos, ela não conseguiu resistir à tentação de abrir o envelope assim que chegou em casa.
A letra de Daniel era firme, mas as palavras pareciam hesitantes, como se ele estivesse tentando se equilibrar entre ser sincero e não revelar demais. Ele falava sobre o campo, sobre o silêncio da noite e sobre como gostava de escrever ficção científica. Mas, para Clara, havia algo intrigante naquela carta: ele não contava quase nada sobre si mesmo. Nada sobre sua rotina, sua família ou sua vida pessoal. Era como se ele estivesse escondendo algo — ou talvez apenas fosse reservado.
Ela sorriu, sentindo uma pontada de curiosidade. A maioria dos homens que ela conhecia adorava falar de si mesmos, mas Daniel era diferente. E isso a intrigava ainda mais. No entanto, ela não queria parecer intrometida. Decidiu fazer algumas perguntas leves, como quem ele costumava ser — ou o que fazia — e quais eram seus hobbies. No final da carta, ela mencionou que era escritora, esperando que isso pudesse criar uma conexão entre eles.
Enquanto escrevia, Clara parou por um momento, olhando para a janela. A cidade estava iluminada, com carros passando e pessoas caminhando apressadas. Era um mundo tão diferente daquele que Daniel descrevia em suas cartas. Ela se perguntou como seria viver em um lugar onde o tempo parecia passar mais devagar, onde o silêncio era quebrado apenas pelo canto dos pássaros e pelo vento nas árvores.
Ao terminar a carta, ela a dobrou com cuidado e colocou em um envelope. Antes de fechar, porém, ela hesitou. Será que estava sendo muito curiosa? Será que ele responderia? Ela não sabia, mas algo dentro dela dizia que valia a pena tentar.
Enquanto isso, no campo, Daniel estava sentado em sua cadeira de rodas, olhando para o horizonte. Ele tinha acabado de enviar sua resposta para Clara e agora se perguntava o que ela pensaria. Ele sabia que não tinha contado muito sobre si mesmo, mas não estava pronto para revelar tudo — pelo menos não ainda.
Carlos entrou no quarto, interrompendo seus pensamentos.
— E o que você escreveu? — Nada demais. Só respondi às perguntas dela. — Perguntas? — Carlos levantou uma sobrancelha. — Ela tá interessada, hein?Daniel não respondeu, mas um sorriso tímido surgiu em seu rosto. Ele não sabia o que esperar, mas uma coisa era certa: aquela troca de cartas estava começando a se tornar algo especial.
Os dias se transformaram em semanas, e as cartas entre Clara e Daniel continuavam a trafegar entre a cidade e o campo. Daniel, sempre um pouco vago e enigmático, falava sobre o céu estrelado, o cheiro da terra molhada e os sons da natureza, mas evitava detalhes pessoais. Ele mencionava sua paixão por escrever ficção científica, mas nunca contava como era seu dia a dia ou como lidava com os desafios da vida. Ainda assim, havia um entusiasmo genuíno em suas palavras, algo que Clara não conseguia ignorar.Clara, por outro lado, estava dividida entre a curiosidade e o medo. A falta de informações concretas sobre Daniel a deixava inquieta. Ela começou a criar teorias na cabeça — talvez ele fosse um foragido, alguém escondido do mundo. Afinal, Carlos, o irmão de Daniel, sempre parecia inventar desculpas quando ela perguntava sobre visitá-lo ou sobre o endereço que ele passara. Descobriu, por meio de uma pesquisa discreta, que o endereço não era de uma casa, mas de uma agência de correios. E
Carlos observava o irmão há semanas. Notava como Daniel ficava mais quieto, mais introspectivo, especialmente depois de enviar a foto para Clara. Ele percebia que algo estava errado, mas não sabia exatamente o quê. Até que, em uma noite tranquila durante o jantar, ele decidiu abordar o assunto diretamente.— Daniel, vamos conversar — disse Carlos, colocando o garfo no prato e olhando fixamente para o irmão.— Sobre o quê? — respondeu Daniel, evitando o olhar de Carlos.— Sobre essa história com a Clara. Você tá mentindo pra ela, não tá?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Ele sabia que não poderia fugir disso para sempre.— Eu... eu não menti exatamente. Só não contei tudo.— Não contar tudo é o mesmo que mentir, irmão — disse Carlos, com um tom de preocupação. — Você tá vivendo numa fantasia. E quanto antes você contar a verdade, melhor. Imagina se ela se espanta no dia que vocês se encontrarem?Daniel olhou para o prato, sentindo um nó na garganta. Ele sabia que C
Os anos se passaram, e o mundo ao redor de Daniel mudou. Um conflito em um país distante, chamado Virelia, havia estourado, e soldados foram enviados para lutar em uma guerra que parecia não ter fim. Quando os soldados retornaram, muitos estavam feridos, mutilados e traumatizados. A população ficou revoltada com o governo, que parecia não se importar com o sofrimento daqueles que haviam lutado por sua pátria. Protestos tomaram as ruas, e a pressão popular cresceu.Foi então que o governo, em uma tentativa de acalmar os ânimos, criou um programa de reabilitação para deficientes. O programa oferecia tratamento médico, terapia física e psicológica, além de oportunidades de emprego e integração social. O objetivo era ajudar não apenas os soldados feridos, mas todos os deficientes que viviam à margem da sociedade.No abrigo, as notícias sobre o programa se espalharam rapidamente. Seu Antônio, sempre atento às oportunidades, foi um dos primeiros a se inscrever. Ele também não perdeu tempo e
O restaurante era aconchegante, com uma iluminação suave que criava uma atmosfera íntima. Daniel chegou primeiro, ajustando o nó da gravata e olhando discretamente para o relógio. Ele estava nervoso, mas tentava disfarçar, passando os dedos pela borda do copo d'água que o garçom acabara de servir. Quando Clara entrou, ele fez um gesto discreto com a mão, cumprimentando-a com um sorriso. Ela sorriu de volta, notando a cadeira de rodas, mas não comentou. Sentou-se à mesa, e os dois trocaram um aperto de mão firme.— Obrigada por aceitar o jantar — disse Clara, acomodando-se na cadeira.— É um prazer — respondeu Daniel, com um sorriso breve. — Acho que discutir o livro em um ambiente mais descontraído pode ser produtivo.A conversa começou de forma profissional. Clara falou sobre as revisões que achava necessárias para que o livro se encaixasse melhor no mercado, enquanto Daniel anotava alguns pontos em um pequeno bloco de notas. Ele concordava com a cabeça, fazendo observações pontuais,