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Capítulo 3: A Verdade Entre as Linhas

Carlos observava o irmão há semanas. Notava como Daniel ficava mais quieto, mais introspectivo, especialmente depois de enviar a foto para Clara. Ele percebia que algo estava errado, mas não sabia exatamente o quê. Até que, em uma noite tranquila durante o jantar, ele decidiu abordar o assunto diretamente.

— Daniel, vamos conversar — disse Carlos, colocando o garfo no prato e olhando fixamente para o irmão.

— Sobre o quê? — respondeu Daniel, evitando o olhar de Carlos.

— Sobre essa história com a Clara. Você tá mentindo pra ela, não tá?

Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Ele sabia que não poderia fugir disso para sempre.

— Eu... eu não menti exatamente. Só não contei tudo.

— Não contar tudo é o mesmo que mentir, irmão — disse Carlos, com um tom de preocupação. — Você tá vivendo numa fantasia. E quanto antes você contar a verdade, melhor. Imagina se ela se espanta no dia que vocês se encontrarem?

Daniel olhou para o prato, sentindo um nó na garganta. Ele sabia que Carlos estava certo, mas a ideia de perder Clara era insuportável.

— Eu só... não quero que ela me veja como um coitado.

— Ela não vai te ver como um coitado se você for sincero desde o início — respondeu Carlos, com um tom mais suave. — Mas se você continuar escondendo, aí sim ela pode se sentir traída.

Aquelas palavras ecoaram na mente de Daniel durante a noite inteira. Ele não conseguiu dormir, ficou acordado, pensando em como lidaria com a situação. Finalmente, no meio da madrugada, ele decidiu escrever a carta. Pegou uma folha de papel e começou a despejar seu coração, tentando explicar por que havia escondido a verdade. Ele falou sobre o medo de ser julgado, sobre como a vida no campo era simples e humilde, e sobre como ele não queria que isso afastasse Clara. No final, ele deixou claro que entenderia se ela decidisse chamá-lo apenas de amigo.

Enquanto escrevia, as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Cada palavra parecia uma despedida, como se ele estivesse se preparando para perder a única conexão verdadeira que tinha feito em anos. Quando terminou, ele olhou para a carta, hesitante. Talvez seja melhor deixar no mistério, pensou, segurando o envelope com as mãos trêmulas. Mas, no fundo, ele sabia que Carlos estava certo. A verdade precisava ser dita.

O dia amanheceu, e Daniel passou as horas seguintes em silêncio, olhando para a carta que havia escrito. Ele não tinha coragem de enviá-la, mas também não conseguia descartá-la. Ficou sentado na cadeira de rodas, olhando pela janela, enquanto o sol atravessava o céu. A noite chegou, e Carlos, percebendo o estado do irmão, decidiu perguntar.

— E aí, Daniel, tá tudo bem? — perguntou, sentando-se ao lado dele.

— Já escrevi a carta — respondeu Daniel, com a voz embargada.

— E vai enviar?

— Não sei. Talvez seja melhor não enviar.

— Daniel, você não pode fugir disso. Se ela realmente gosta de você, vai entender. E se não entender... bem, pelo menos você foi honesto.

Daniel olhou para o irmão, sentindo uma mistura de medo e alívio. Ele sabia que Carlos estava certo. Pegou o envelope, olhou para ele por um momento e, finalmente, decidiu que era hora de enviar a carta.

Enquanto isso, na cidade, Clara continuava sua rotina, sem saber da tempestade que se aproximava. Ela estava ansiosa pela próxima carta de Daniel, mas também preocupada com o silêncio prolongado. O que ela não sabia era que a próxima carta que receberia mudaria tudo.

Clara recebeu a carta de Daniel em uma manhã comum. Ela estava sentada em sua escrivaninha, com uma xícara de café ao lado, quando o envelope chegou. Ao reconhecer a letra de Daniel, ela abriu-o com um sorriso, mas logo o sorriso desapareceu. As palavras na carta eram sinceras, dolorosamente sinceras. Ele contava sobre sua condição, sobre a cadeira de rodas, sobre a vida humilde no campo e sobre o medo que sentia de ser julgado. Ele pedia desculpas por ter escondido a verdade e dizia que entenderia se ela decidisse chamá-lo apenas de amigo.

Clara ficou paralisada, segurando a carta com as mãos trêmulas. Ela não sabia como reagir. Antes que pudesse processar tudo, no entanto, o telefone tocou. Era sua tia, com uma voz desesperada:

— Clara, é o seu tio... Ele foi baleado. Ele... ele não resistiu.

O mundo de Clara desmoronou naquele instante. A carta de Daniel foi esquecida em meio ao caos que se seguiu. Ela correu para o hospital, onde encontrou sua tia em lágrimas. Nos dias que se seguiram, ela mergulhou no apoio à família, nos preparativos do funeral e na dor da perda. A carta de Daniel ficou esquecida em cima da escrivaninha, sem resposta.

No campo, Daniel esperava. Dias se transformaram em semanas, e o silêncio de Clara era ensurdecedor. Ele tentou se convencer de que ela estava ocupada, que talvez ainda não tivesse lido a carta, mas no fundo ele sabia a verdade. Ela não queria mais falar com ele.

Carlos percebeu a mudança no irmão. Daniel voltou à sua rotina antiga, isolando-se cada vez mais. Ele passava horas escrevendo ficção científica, criando mundos onde ele poderia ser qualquer coisa, menos ele mesmo. Uma noite, durante o jantar, Carlos tentou consolá-lo.

— Pelo menos você chamou a atenção de uma escritora famosa, né? — disse Carlos, tentando aliviar o clima. — E quando as coisas melhorarem, eu te levo pra uma casa noturna. Você vai ver, outras oportunidades vão aparecer.

Daniel olhou para o irmão, com um sorriso triste.

— Tá tudo bem, Carlos. Outras oportunidades vão aparecer, sim.

Mas, no fundo, ele não acreditava nisso. Quando Carlos saiu para trabalhar no campo, Daniel ficou sozinho em casa. Foi então que as lágrimas vieram. Ele chorou como não chorava há anos, sentindo o peso da culpa e da rejeição.

— Que burrice a minha — sussurrou, segurando o rosto nas mãos. — Por que eu pensei que poderia ser diferente?

Ele se culpa por ter criado expectativas, por ter acreditado que alguém como Clara poderia se interessar por alguém como ele. A vida no campo, a cadeira de rodas, a pobreza — tudo parecia uma maldição que ele carregava. Ele imaginou como seria se tivesse outra vida, uma realidade onde ele pudesse andar, onde não precisasse esconder quem era. Mas logo se repreendeu.

— Pessoas como eu não podem sentir amor — disse em voz baixa, como se estivesse fazendo uma promessa a si mesmo. — Se sentir, só vão encontrar dor.

O acidente aconteceu em um dia comum. Carlos estava trabalhando no campo, como sempre fazia, quando uma das máquinas quebrou. Ele tentou consertá-la sozinho, mas algo deu errado. A máquina tombou, e ele ficou preso debaixo dela. Quando o encontraram, já era tarde demais. Carlos foi levado às pressas para o hospital, mas os ferimentos eram graves. Ele sobreviveu, mas ficou em coma, e os médicos não sabiam dizer se ele acordaria.

Com Carlos hospitalizado, Daniel não tinha mais ninguém para cuidar dele. A família era pequena, e os parentes distantes não podiam ajudá-lo. Ele foi levado para um abrigo de deficientes, um lugar que ele nunca imaginara que iria parar. O abrigo era limpo e organizado, mas era frio, impessoal. As pessoas lá eram amáveis, mas cada um estava mergulhado em seu próprio mundo de dores e limitações. Daniel se isolou ainda mais, sentindo-se como um estranho em um lugar que deveria ser seu refúgio.

Dias se passaram, e Daniel mal falava com alguém. Ele passava horas olhando pela janela, observando o movimento do lado de fora, mas sem realmente ver. Até que um dia, um homem velho se aproximou dele. Ele era cego, com olhos nublados que pareciam enxergar além do que a visão permitia.

— Você é novo aqui, né? — perguntou o velho, com uma voz calma e serena.

Daniel olhou para ele, surpreso. — Sim. Faz algumas semanas.

— Eu sou o Seu Antônio. E você?

— Daniel.

— Prazer, Daniel. Você parece quieto demais. Tá sofrendo por algo?

Daniel hesitou, mas algo na voz do Seu Antônio o fez abrir-se. Ele contou sobre Carlos, sobre o acidente, sobre a carta que enviou para Clara e o silêncio que se seguiu. Falou sobre como se sentia culpado, como achava que pessoas como ele não deveriam sonhar com amor ou felicidade.

O Seu Antônio ouviu tudo em silêncio, acenando de vez em quando. Quando Daniel terminou, o velho sorriu.

— Você tá errado, sabia? — disse ele, com uma voz firme. — Tudo é possível, sim. Mas não do jeito que a gente imagina. O mundo é duro, Daniel. Ele tenta nos cegar, nos fazer acreditar que não somos capazes. Mas sonhar... sonhar é o que nos mantém vivos.

Daniel olhou para o velho, confuso.

— Mas e se no final a gente não conseguir nada?

— E daí? — respondeu Seu Antônio, com um sorriso tranquilo. — O importante é tentar. Sonhar não é sobre o final, é sobre o caminho. E quem sabe? Às vezes, milagres acontecem.

Aquela conversa ficou ecoando na mente de Daniel nos dias seguintes. Ele não sabia se acreditava em milagres, mas as palavras do Seu Antônio o fizeram pensar. Talvez ele não devesse desistir tão fácil. Talvez ainda houvesse esperança.

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