O restaurante era aconchegante, com uma iluminação suave que criava uma atmosfera íntima. Daniel chegou primeiro, ajustando o nó da gravata e olhando discretamente para o relógio. Ele estava nervoso, mas tentava disfarçar, passando os dedos pela borda do copo d'água que o garçom acabara de servir. Quando Clara entrou, ele fez um gesto discreto com a mão, cumprimentando-a com um sorriso. Ela sorriu de volta, notando a cadeira de rodas, mas não comentou. Sentou-se à mesa, e os dois trocaram um aperto de mão firme.
— Obrigada por aceitar o jantar — disse Clara, acomodando-se na cadeira.
— É um prazer — respondeu Daniel, com um sorriso breve. — Acho que discutir o livro em um ambiente mais descontraído pode ser produtivo.A conversa começou de forma profissional. Clara falou sobre as revisões que achava necessárias para que o livro se encaixasse melhor no mercado, enquanto Daniel anotava alguns pontos em um pequeno bloco de notas. Ele concordava com a cabeça, fazendo observações pontuais, mas sempre mantendo um tom formal. Clara, por sua vez, gesticulava com as mãos ao explicar suas ideias, como se estivesse desenhando as cenas no ar.
— Acho que o final precisa de mais impacto — disse ela, inclinando-se levemente para frente.
— Concordo — respondeu Daniel, olhando para as anotações. — Podemos trabalhar nisso.À medida que o jantar avançava, a conversa começou a fluir para assuntos mais pessoais. Clara, com um brilho nos olhos, mencionou a história de vida de Daniel — aquela que ele havia criado para o programa de reabilitação.
— Achei incrível como você enfrentou aqueles bandidos — disse ela, cortando um pedaço de bife. — Deve ter sido assustador.Daniel hesitou por um momento, olhando para o prato. Ele sabia que aquela história não era real, mas, como um bom contador de histórias, mergulhou nos detalhes.
— Foi sim — começou ele, com uma voz suave. — Mas, na hora, você não pensa. Só age.Ele descreveu a cena como se realmente tivesse vivido aquilo, gesticulando com as mãos para dar mais dramaticidade. Clara ouvia atentamente, com os olhos fixos nele, como se estivesse completamente imersa na narrativa. Quando ele terminou, ela sorriu, impressionada.
— Você deveria escrever um livro sobre isso — disse ela, brincando.Daniel riu, mas o som foi curto e contido. Ele brincou com o garfo no prato, evitando o olhar dela.
— Talvez um dia.A conversa continuou, e Clara começou a fazer perguntas mais pessoais, tentando quebrar a barreira que Daniel mantinha.
— Você sai muito? — perguntou ela, inclinando a cabeça para o lado. — Não muito — respondeu ele, erguendo os ombros. — Prefiro ficar no ambiente de trabalho.Clara arqueou uma sobrancelha, com um sorriso irônico.
— Se é para ser tão profissional, então não deveria ser um jantar casual, não é? Poderíamos estar no seu escritório.Daniel ficou sem resposta, olhando para ela com uma expressão surpresa. Ele abriu a boca para dizer algo, mas as palavras não saíram. Clara percebeu o desconforto e decidiu mudar de assunto.
— Você tem algum livro seu para eu ler? — perguntou ela, com um tom mais leve. — Apesar de ser dono de uma publicadora, nunca li nada escrito por você.Daniel olhou para ela, hesitante. Ele tinha vários textos guardados, mas nunca os havia mostrado para ninguém. A ideia de Clara lendo suas histórias o deixou nervoso, mas também intrigado.
— Tenho algumas coisas — admitiu ele, finalmente. — Mas não sei se são boas o suficiente.Clara sorriu, com um brilho nos olhos.
— Eu adoraria ler. Afinal, você já está lendo o meu.Daniel concordou com a cabeça, mas sua expressão era pensativa. Ele brincava com o anel no dedo, um gesto que Clara notou ser comum quando ele estava nervoso. Ela, por sua vez, cruzou os braços sobre a mesa, inclinando-se um pouco mais para frente, como se quisesse se aproximar dele.
O jantar terminou com um clima de tensão e curiosidade. Quando saíram do restaurante, Daniel segurou a porta para Clara, e ela agradeceu com um sorriso. Ele a acompanhou até o carro, mas antes que ela entrasse, ela parou e olhou para ele.
— Obrigada pela noite, Daniel. Foi... interessante.Ele sorriu, mas não disse nada. Assistiu ela entrar no carro e afastar-se, sentindo uma mistura de alívio e ansiedade. Ele sabia que aquela noite tinha mudado algo entre eles, mas não tinha certeza do quê.
Daniel estava em casa, sentado na sala, assistindo a alguns comerciais na televisão enquanto se preparava para ir ao trabalho. Ele gostava daqueles momentos de tranquilidade antes do dia começar. De repente, o som da campainha ecoou pela casa. Ele olhou para o monitor da câmera de segurança e viu um grupo de pessoas do lado de fora — cerca de 20, entre adultos, adolescentes e crianças. Eles pareciam animados, gesticulando e chamando por ele.
Daniel franziu a testa, confuso. Ele não reconhecia nenhum daqueles rostos, mas decidiu atender. Afinal, talvez fosse algo importante. Ele se dirigiu à porta e abriu, olhando para o grupo com uma expressão cautelosa.
— Posso ajudar? — perguntou ele, mantendo a voz calma.
Um homem mais velho, com um chapéu desgastado e um sorriso largo, deu um passo à frente.
— Daniel, meu sobrinho! Finalmente te encontramos! — disse ele, com um tom de alegria.Daniel olhou para o homem, ainda mais confuso.
— Desculpe, mas... quem é você?O homem riu, como se a pergunta fosse uma piada.
— Sou seu tio, rapaz! Seu tio José. — Ele abriu uma bolsa e tirou algumas fotos amareladas, mostrando-as para Daniel. — Olha aqui, essa é a sua mãe, esse é eu com o Carlos, e essa aqui... — ele apontou para uma foto de um bebê — é você, pequenininho.Daniel pegou as fotos, examinando-as com cuidado. Era realmente ele, ainda bebê, nos braços de uma mulher que ele mal conseguia lembrar — sua mãe. Ele sentiu um aperto no peito ao ver aquelas imagens, mas ainda estava desconfiado.
— Como vocês me encontraram? — perguntou ele, devolvendo as fotos.Uma mulher mais jovem, com um lenço colorido na cabeça, respondeu:
— Te vimos no jornal, Daniel. A história da sua coragem, de como você enfrentou aqueles bandidos... Foi assim que te reconhecemos.Daniel ficou em silêncio por um momento, processando aquela informação. Ele não sabia o que dizer. Enquanto isso, o grupo começou a se acomodar na varanda, como se já fizesse parte da casa. As crianças corriam pelo jardim, e os adultos conversavam animadamente entre si.
Daniel se lembrou de algo que Carlos sempre dizia: "Esses parentes só aparecem quando precisam de algo." Ele nunca tinha dado muita importância àquela frase, mas agora ela ecoava em sua mente. Carlos não gostava deles, e Daniel começava a entender o porquê.
— Tio José — chamou Daniel, com um tom mais firme. — Por que vocês estão aqui?
O homem olhou para ele, com uma expressão que misturava surpresa e desconforto.
— Ora, Daniel, somos família! Queremos te conhecer melhor, passar um tempo contigo. Além disso... — ele hesitou, olhando para os outros. — A gente tá passando por umas dificuldades, e você parece estar bem de vida agora.Daniel respirou fundo, sentindo o peso daquela situação. Ele não sabia se aquelas pessoas eram realmente sua família, mas uma coisa era certa: elas estavam ali por interesse. Ele olhou para o grupo, vendo as crianças brincando e os adultos conversando, e sentiu uma mistura de raiva e tristeza.
— Preciso ir ao trabalho — disse ele, finalmente. — Podemos conversar mais tarde.
O tio José pareceu querer protestar, mas acabou concordando com a cabeça.
— Claro, Daniel. A gente entende.Daniel fechou a porta e se afastou, sentindo-se esgotado. Ele não sabia o que fazer, mas uma coisa era certa: precisava descobrir a verdade sobre aquelas pessoas. E, mais importante, precisava descobrir o que Carlos pensaria disso tudo.
Daniel decidiu visitar Carlos no hospital. Seu irmão estava melhor, mas os médicos disseram que ele não poderia mais fazer trabalhos pesados devido às sequelas do acidente. Quando Daniel chegou, Carlos estava sentado na cama, assistindo a um programa de televisão. Ele sorriu ao ver o irmão, mas a expressão logo mudou quando Daniel mencionou os parentes.
— Eles apareceram lá em casa — disse Daniel, sentando-se ao lado da cama.
Carlos franziu a testa, e seu rosto ficou sério. — Quem apareceu? — Um tal de tio José e mais um monte de gente. Dizem que são nossos parentes.Carlos soltou um riso amargo.
— Esses parasitas! Só aparecem quando precisam de dinheiro. — Ele olhou para Daniel, com uma expressão de preocupação. — Você não deixou eles entrarem, né?Daniel hesitou.
— Eles estão lá. Trouxeram fotos, falaram da mãe...Carlos fechou os olhos, como se estivesse tentando controlar a raiva.
— Foi por culpa deles que a mãe morreu, Daniel. Ela ficou abandonada, sem ajuda de ninguém. E agora eles aparecem, só porque você tá no jornal?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso das palavras do irmão. Ele sabia que Carlos tinha razão, mas também sabia que expulsar aquelas pessoas poderia trazer problemas.
— Se eu expulsar eles, vão chamar a mídia, fazer um escândalo. E eu ainda dependo do governo, Carlos. Não posso arriscar.Carlos suspirou, olhando para o teto.
— Eu entendo, irmão. Mas cuidado com eles. Eles não são confiáveis.De volta à casa, Daniel encontrou o tio José e o resto do grupo se acomodando como se fossem donos do lugar. As crianças corriam pela sala, e os adultos conversavam animadamente na cozinha. O tio José se aproximou de Daniel, com um sorriso largo.
— Daniel, meu sobrinho! A gente tá precisando de um lugar pra ficar, só por uns dias. Você não se importa, né?Daniel olhou para o homem, sentindo uma mistura de raiva e resignação. Ele sabia que não tinha muita escolha.
— Tudo bem — disse ele, com um tom neutro. — Mas só por uns dias.O tio José agradeceu, mas Daniel mal ouviu. Ele se retirou para o escritório, fechando a porta atrás de si. Sentado à mesa, ele olhou para o computador, mas não conseguia se concentrar. Sua mente estava cheia de dúvidas e preocupações.
Ele pensou em Clara. Seria antiético convidá-la para sua casa, especialmente agora, com aquela situação familiar? Eles ainda não se conheciam tão bem, e ele não queria que ela se sentisse desconfortável. Mas, ao mesmo tempo, ele queria compartilhar um pouco de sua vida com ela, mostrar que estava tentando seguir em frente.
Daniel pegou o telefone, hesitando por um momento antes de enviar uma mensagem:
"Clara, gostaria de te convidar para jantar em casa. Se não for um incômodo, é claro."Ele esperou a resposta, sentindo um frio na barriga. Enquanto isso, o som das risadas e conversas dos parentes ecoava pelo corredor, lembrando-o de que sua vida estava longe de ser perfeita.
A resposta de Clara chegou rapidamente, surpreendendo Daniel.
"Adoraria ir. Que dia combina para você?"Ele leu a mensagem várias vezes, tentando decifrar o tom por trás das palavras. Era difícil saber se ela estava genuinamente interessada ou apenas sendo educada. Ele respondeu marcando o jantar para dois dias depois, dando a si mesmo tempo para organizar a casa e, de alguma forma, lidar com os parentes que agora ocupavam seu espaço.
Enquanto isso, Clara estava em seu apartamento, olhando para o telefone com uma expressão pensativa. Ela sabia que aceitar o convite de Daniel era arriscado, especialmente considerando sua situação atual. No fundo da gaveta de sua mesa de cabeceira, havia um anel de noivado que ela raramente usava. Seu noivado com Eduardo, um empresário bem-sucedido, era mais uma questão de conveniência do que de paixão. Eles se davam bem, mas Clara sentia que faltava algo — uma conexão mais profunda, algo que ela começava a sentir com Daniel, mesmo sem entender completamente por quê.
Eduardo estava viajando a trabalho, como sempre, e ela mal falava sobre ele com os outros. Era como se o noivado fosse um segredo que ela carregava, algo que preferia não discutir. Ela sabia que, em algum momento, teria que enfrentar essa realidade, mas, por enquanto, preferia focar no livro e na nova conexão que estava construindo com Daniel.
No dia do jantar, Daniel passou horas tentando organizar a casa. Os parentes, no entanto, pareciam não entender a importância daquele momento. As crianças corriam de um lado para o outro, e o tio José insistia em contar histórias embaraçosas sobre a infância de Daniel.
— Lembra quando você caiu naquele rio? — disse o tio José, rindo alto. — Quase morreu afogado!Daniel tentou ignorar, mas sentia a ansiedade aumentar a cada minuto. Quando Clara chegou, ele estava na porta, tentando parecer calmo.
— Bem-vinda — disse ele, com um sorriso tenso.Clara entrou, olhando ao redor com curiosidade. Ela notou a movimentação na casa, mas não comentou. Em vez disso, entregou a Daniel uma garrafa de vinho.
— Para o jantar — disse ela, com um sorriso.O jantar foi um desafio. Enquanto Daniel tentava manter uma conversa civilizada com Clara, os parentes interrompiam constantemente. O tio José fez questão de contar mais histórias, e as crianças corriam pela sala, rindo alto. Clara, no entanto, parecia lidar com a situação com graça, sorrindo e fazendo perguntas educadas.
— Sua família parece... animada — comentou ela, com um tom leve.
— Eles são... inesperados — respondeu Daniel, com um sorriso constrangido.À medida que a noite avançava, a conversa entre os dois fluiu naturalmente. Clara falou sobre sua infância, sobre como cresceu em uma família tradicional, onde as expectativas sempre pesavam sobre seus ombros.
— Meu pai sempre quis que eu seguisse os passos dele, mas eu escolhi um caminho diferente — disse ela, brincando com o copo de vinho.Daniel percebeu que ela evitava mencionar Eduardo, mas notou o anel discreto em sua mão. Ele não comentou, mas a informação ficou guardada em sua mente.
Os dias seguintes foram uma mistura de caos e descobertas. Daniel, que inicialmente via a presença dos parentes como um incômodo, começou a se acostumar com a movimentação na casa. As crianças, com sua energia contagiante, traziam uma alegria que ele não sentia há anos. O tio José, apesar de suas histórias embaraçosas, tinha um jeito caloroso que fazia Daniel se sentir menos sozinho.
Clara, por sua vez, tornou-se uma presença constante. O que começou como reuniões formais para discutir o livro dela logo se transformou em encontros mais pessoais. As conversas sobre revisões e mercado editorial deram lugar a histórias da infância, sonhos e até mesmo confissões mais íntimas.
Em uma tarde tranquila, Daniel estava sentado na varanda, aproveitando o sol. Clara chegou com um sorriso largo, carregando um violão que encontrou em um canto da sala.
— Você toca? — perguntou ela, entregando o instrumento a ele.Daniel olhou para o violão, surpreso.
— Faz tempo que não pego nisso — admitiu ele, passando os dedos pelas cordas.— Então está na hora de relembrar — disse Clara, sentando-se ao lado dele.
Ele hesitou por um momento, mas logo começou a tocar uma melodia suave. Clara fechou os olhos, balançando levemente a cabeça no ritmo da música. Quando ele terminou, ela abriu os olhos e sorriu.
— Você é incrível, sabia? — disse ela, com um brilho nos olhos.Daniel riu, sentindo um calor no rosto.
— Não é nada demais. Só um passatempo.— Um passatempo que você devia compartilhar mais — respondeu Clara, com um tom brincalhão.
Os dias passaram, e a conexão entre os dois se aprofundou. Em uma dessas tardes, Clara, em um momento de descontração, decidiu brincar com a cadeira de rodas de Daniel.
— Aposto que sou mais rápida que você — disse ela, com um sorriso malicioso.Daniel levantou uma sobrancelha, surpreso.
— Você tá falando sério?— Claro que sim! — respondeu Clara, já se movendo para trás da cadeira.
Ela começou a empurrar a cadeira, rindo enquanto corria pelo corredor. Daniel segurava os braços da cadeira, tentando manter o equilíbrio.
— Clara, cuidado! — disse ele, rindo também.Mas, em um momento de distração, Clara tropeçou e caiu no chão. Daniel parou a cadeira rapidamente, preocupado.
— Você tá bem? — perguntou ele, olhando para ela.Clara estava deitada no chão, rindo sem parar.
— Tô ótima! — disse ela, entre risos. — Só não sabia que era tão difícil empurrar essa coisa.Daniel riu, sentindo-se leve pela primeira vez em muito tempo. Ele estendeu a mão para ajudá-la a se levantar, e ela aceitou, ainda rindo. Quando ela ficou de pé, os dois se olharam por um momento, com sorrisos que lentamente se transformaram em expressões mais sérias.
— Obrigada — disse Clara, em voz baixa.
— Por quê? — perguntou Daniel, confuso. — Por me fazer rir assim. Faz tempo que não me sinto tão... livre.Daniel olhou para ela, sentindo uma conexão que ia além das palavras. Ele queria dizer algo, mas o momento foi interrompido pelo som das crianças correndo pela casa, chamando por ele.
— Daniel, vem cá! — gritou uma das crianças.
Ele olhou para Clara, com um sorriso de desculpas.
— Parece que sou necessário lá dentro.Clara sorriu, acenando com a cabeça.
— Vai lá. A gente continua isso depois.Os dias seguintes trouxeram uma dinâmica diferente para a casa de Daniel. O tio José, que no início pedia apenas ajuda para comprar material escolar ou remédios para as crianças, agora estendia a mão com frequência — sempre com um "é a última vez, sobrinho" ou "você é a nossa esperança". Daniel, acostumado a ceder, entregava o dinheiro sem questionar, mesmo quando notava que seu próprio orçamento apertava. A geladeira ficava vazia por mais tempo, e ele adiava a compra de um novo notebook para o trabalho.
Clara observava tudo com olhos atentos. Em uma tarde em que Daniel reclamou discretamente do preço alto de um livro técnico que precisava, ela aproveitou para abordar o assunto, passando os dedos pela xícara de café como se estivesse apenas comentando o tempo.
— Às vezes a gente abre mão do essencial por coisas que parecem urgentes, né? — disse ela, sem olhar para ele.Daniel ergueu as sobrancelhas, fingindo não entender.
— Como assim?Clara encarou-o então, com um meio-sorriso.
— Nada. Só pensando alto.Ele segurou o olhar dela por um segundo, como se tentasse decifrar uma mensagem oculta, mas acabou mudando de assunto.
A Festa e o Reencontro das Máscaras
Para distraí-lo, Clara convidou Daniel para uma festa casual em seu apartamento. "Só uns amigos próximos", garantiu. Ele hesitou — festas não eram seu ambiente —, mas aceitou, curiosamente atraído pela promessa de vê-la em um contexto diferente.
Chegando lá, Daniel se manteve inicialmente à margem, observando o grupo animado. Clara, porém, não o deixou isolado. Puxou-o para um canto, onde conversaram por horas sobre tudo e nada: livros mal traduzidos, o céu estrelado que ele descrevia nas cartas, até mesmo o absurdo de abacaxis em pizzas. Aos poucos, a postura rígida de Daniel afrouxou. Ele riu de piadas ruins, gesticulou ao contar histórias e, em um momento de espontaneidade rara, imitou o tio José bebendo cachaça.
Clara observava aquela transformação com um olhar doce. Sem pensar, esticou a mão e tocou seu rosto, passando o polegar sobre a covinha que aparecia quando ele ria.
— Agora você parece o Daniel das cartas — murmurou.O sorriso dele congelou.
— Daniel... das cartas?Ela piscou, como se só então percebesse o que dissera. Uma sombra passou pelo rosto de Daniel — a confirmação de que Clara sempre soube quem ele era. Mas antes que ele pudesse reagir, a melhor amiga de Clara surgiu com um prato de guloseimas, interrompendo o momento.
— Olha, tem brigadeiro de café! Quem prova primeiro?Clara, aliviada pela distração, agarrou um doce e enfiou na boca, exagerando o drama ao falar com a boca cheia:
— É a coisa mais divina que já provei!Daniel riu, mas seu olhar permaneceu inquieto. Enquanto a festa continuava ao redor, ele ficou ali, mastigando um brigadeiro sem sentir o gosto, tentando entender por que Clara mantivera aquele segredo — e o que mais ela escondia.
Clara acordou com o sol batendo suavemente na janela do seu pequeno apartamento no centro da cidade. Ela esticou os braços, bocejou e olhou para o relógio. Ainda era cedo, mas ela já estava acostumada a acordar com as primeiras luzes do dia. Era o seu momento de silêncio, antes que a agitação da rotina tomasse conta.Vestindo um roupão macio, ela desceu para pegar o jornal na portaria. O elevador estava quebrado — de novo —, então ela desceu as escadas, resmungando baixinho sobre o prédio antigo e cheio de problemas. Na portaria, o zelador, Sr. Carlos, já tinha separado o jornal para ela, como fazia todas as manhãs.— Bom dia, dona Clara! — cumprimentou ele, com um sorriso largo.— Bom dia, Carlos. O elevador... — ela começou, mas ele já sabia.— Já chamei o técnico. Hoje mesmo ele vem, pode confiar!Clara sorriu, agradeceu e voltou para o apartamento com o jornal debaixo do braço. Enquanto preparava seu café, ela folheou as páginas, passando rapidamente pelas manchetes políticas e ec
Os dias se transformaram em semanas, e as cartas entre Clara e Daniel continuavam a trafegar entre a cidade e o campo. Daniel, sempre um pouco vago e enigmático, falava sobre o céu estrelado, o cheiro da terra molhada e os sons da natureza, mas evitava detalhes pessoais. Ele mencionava sua paixão por escrever ficção científica, mas nunca contava como era seu dia a dia ou como lidava com os desafios da vida. Ainda assim, havia um entusiasmo genuíno em suas palavras, algo que Clara não conseguia ignorar.Clara, por outro lado, estava dividida entre a curiosidade e o medo. A falta de informações concretas sobre Daniel a deixava inquieta. Ela começou a criar teorias na cabeça — talvez ele fosse um foragido, alguém escondido do mundo. Afinal, Carlos, o irmão de Daniel, sempre parecia inventar desculpas quando ela perguntava sobre visitá-lo ou sobre o endereço que ele passara. Descobriu, por meio de uma pesquisa discreta, que o endereço não era de uma casa, mas de uma agência de correios. E
Carlos observava o irmão há semanas. Notava como Daniel ficava mais quieto, mais introspectivo, especialmente depois de enviar a foto para Clara. Ele percebia que algo estava errado, mas não sabia exatamente o quê. Até que, em uma noite tranquila durante o jantar, ele decidiu abordar o assunto diretamente.— Daniel, vamos conversar — disse Carlos, colocando o garfo no prato e olhando fixamente para o irmão.— Sobre o quê? — respondeu Daniel, evitando o olhar de Carlos.— Sobre essa história com a Clara. Você tá mentindo pra ela, não tá?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Ele sabia que não poderia fugir disso para sempre.— Eu... eu não menti exatamente. Só não contei tudo.— Não contar tudo é o mesmo que mentir, irmão — disse Carlos, com um tom de preocupação. — Você tá vivendo numa fantasia. E quanto antes você contar a verdade, melhor. Imagina se ela se espanta no dia que vocês se encontrarem?Daniel olhou para o prato, sentindo um nó na garganta. Ele sabia que C
Os anos se passaram, e o mundo ao redor de Daniel mudou. Um conflito em um país distante, chamado Virelia, havia estourado, e soldados foram enviados para lutar em uma guerra que parecia não ter fim. Quando os soldados retornaram, muitos estavam feridos, mutilados e traumatizados. A população ficou revoltada com o governo, que parecia não se importar com o sofrimento daqueles que haviam lutado por sua pátria. Protestos tomaram as ruas, e a pressão popular cresceu.Foi então que o governo, em uma tentativa de acalmar os ânimos, criou um programa de reabilitação para deficientes. O programa oferecia tratamento médico, terapia física e psicológica, além de oportunidades de emprego e integração social. O objetivo era ajudar não apenas os soldados feridos, mas todos os deficientes que viviam à margem da sociedade.No abrigo, as notícias sobre o programa se espalharam rapidamente. Seu Antônio, sempre atento às oportunidades, foi um dos primeiros a se inscrever. Ele também não perdeu tempo e