Os anos se passaram, e o mundo ao redor de Daniel mudou. Um conflito em um país distante, chamado Virelia, havia estourado, e soldados foram enviados para lutar em uma guerra que parecia não ter fim. Quando os soldados retornaram, muitos estavam feridos, mutilados e traumatizados. A população ficou revoltada com o governo, que parecia não se importar com o sofrimento daqueles que haviam lutado por sua pátria. Protestos tomaram as ruas, e a pressão popular cresceu.
Foi então que o governo, em uma tentativa de acalmar os ânimos, criou um programa de reabilitação para deficientes. O programa oferecia tratamento médico, terapia física e psicológica, além de oportunidades de emprego e integração social. O objetivo era ajudar não apenas os soldados feridos, mas todos os deficientes que viviam à margem da sociedade.
No abrigo, as notícias sobre o programa se espalharam rapidamente. Seu Antônio, sempre atento às oportunidades, foi um dos primeiros a se inscrever. Ele também não perdeu tempo em falar sobre isso com Daniel.
— Daniel, você ouviu falar do programa de reabilitação? — perguntou o velho, sentando-se ao lado dele.
Daniel, que estava escrevendo mais uma de suas histórias trágicas, mal levantou a cabeça. — Ouvi. Mas não é pra mim. — Como não é pra você? — Seu Antônio franziu a testa. — É exatamente pra você. Pra gente como a gente. — Eu tô bem aqui — respondeu Daniel, com um tom de resignação. — Escrevo minhas histórias, vivo minha vida. Não preciso de mais nada.Seu Antônio suspirou, percebendo a resistência no tom de voz do jovem.
— Daniel, você tá vivendo no passado. Escrevendo essas histórias tristes, se escondendo do mundo. Isso não é vida. — E o que você quer que eu faça? — Daniel finalmente ergueu a voz, com um brilho de raiva. — Que eu saia por aí, sorrindo e fingindo que tudo tá bem? — Não. Eu quero que você tente. Custa tentar? — Seu Antônio inclinou-se para frente, com uma expressão séria. — Olha só, Daniel. Já não tem como piorar mais do que tá. O que você tem a perder?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso das palavras do velho. Ele sabia que o Seu Antônio tinha razão, mas era difícil admitir. A vida no abrigo era monótona, sim, mas era segura. Ele não precisava enfrentar o mundo lá fora, não precisava lidar com a rejeição, com o preconceito, com a dor de tentar e falhar.
— E se der errado? — perguntou Daniel, em voz baixa.
— E se der certo? — respondeu Seu Antônio, com um sorriso. — Você já pensou nisso?Aquela pergunta ficou ecoando na mente de Daniel por dias. Ele não conseguia parar de pensar nas palavras do velho. Custa tentar? Talvez não. Talvez ele devesse dar uma chance ao programa, mesmo que só para provar a si mesmo que ainda era capaz de algo.
O Reencontro
Daniel finalmente decidiu se inscrever no programa de reabilitação. Com a ajuda de Seu Antônio, ele preencheu os formulários e, em questão de dias, foi aceito. O programa era mais do que ele esperava: oferecia terapia física, apoio psicológico e, o mais importante, oportunidades de trabalho. O governo, precisando de um garoto propaganda para mostrar o sucesso da iniciativa, logo se interessou por Daniel. Ele tinha uma história que poderia ser moldada para inspirar as pessoas.
Com a ajuda de um assessor, Daniel criou uma narrativa convincente: seu irmão, Carlos, teria sido atacado por bandidos que tentaram invadir sua casa, e ele, mesmo em uma cadeira de rodas, teria conseguido expulsá-los. A partir daí, a história era verdadeira — o acidente de Carlos, a luta de Daniel para seguir em frente. O governo abraçou a narrativa, usando-a para mostrar como o programa estava transformando vidas.
Daniel se destacou rapidamente. Sua habilidade para criar histórias e sua dedicação aos estudos impressionaram todos ao seu redor. Ele tirou notas altas nos cursos oferecidos pelo programa e recebeu várias ofertas de emprego. Entre todas as opções, ele escolheu trabalhar em uma grande distribuidora de livros, combinando sua paixão pela escrita com a oportunidade de ajudar outros autores. Além disso, ele foi convidado a participar de um programa governamental sobre novas tecnologias, onde discutia como a inovação poderia melhorar a vida de pessoas com deficiência.
A vida de Daniel mudou drasticamente. Ele tinha um escritório, uma secretária e uma rotina agitada. Mas, no fundo, ele ainda carregava a dor do passado — a carta que Clara nunca respondeu, o silêncio que o fez acreditar que o amor não era para pessoas como ele.
Um dia, enquanto trabalhava em seu escritório, sua secretária entrou e anunciou:
— Senhor Daniel, há uma mulher aqui para vê-lo. Ela quer discutir um acordo para publicar o livro dela. — Manda ela entrar — respondeu Daniel, sem levantar os olhos da mesa.A porta se abriu, e Clara entrou. Ela estava diferente — mais madura, mas com o mesmo olhar que ele lembrava das cartas. Daniel a reconheceu imediatamente, mas decidiu fingir que não a conhecia.
— Boa tarde, sou Clara — ela se apresentou, com um sorriso profissional. — Boa tarde, Clara. Sou Daniel. Como posso ajudá-la?Clara observou-o atentamente, como se estivesse tentando decifrar algo. Ela parecia reconhecê-lo, mas não disse nada. Em vez disso, começou a explicar sobre seu livro, um romance que falava sobre conexões inesperadas e segundas chances. Daniel ouviu com atenção, mas sua mente estava longe. Ele se perguntava se ela realmente não o reconhecera ou se estava apenas evitando o assunto.
Enquanto Clara falava, Daniel notou que ela carregava uma bolsa com um livro que ele reconheceu — era um dos seus, publicado sob um pseudônimo. Ele sentiu um nó na garganta, mas manteve a compostura.
— Seu livro parece interessante — disse ele, finalmente. — Vou analisar a proposta e entro em contato em breve.Clara agradeceu e saiu, mas antes de fechar a porta, ela parou por um instante, como se quisesse dizer algo. No final, ela apenas sorriu e foi embora. Daniel ficou sozinho no escritório, com o coração acelerado e a mente cheia de perguntas. Será que ela sabia quem ele era? E, se sabia, por que não disse nada?
Clara voltou para casa, agora em um bairro mais calmo, longe do centro da cidade. O encontro com Daniel a deixou inquieta. Ela sabia que era ele — não havia dúvida. A gentileza no olhar, a voz suave, até mesmo a maneira como ele se expressava eram as mesmas das cartas que ela guardava em uma caixa no fundo do armário. Mas algo nele era diferente. Havia uma melancolia, uma profundidade que ela não conseguia decifrar.
Sentada na varanda, com uma xícara de chá nas mãos, ela olhou para o horizonte e murmurou em voz baixa:
— Ele me reconheceu? A pergunta ecoou em sua mente, sem resposta. Ela se perguntou se deveria continuar conversando com ele depois de tanto tempo. Afinal, o passado entre eles estava cheio de silêncios e perguntas não respondidas. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro dela dizia que aquela era uma segunda chance — para ambos.Enquanto isso, Daniel estava em seu escritório, com uma cópia dos primeiros capítulos do livro de Clara em suas mãos. Ele começou a ler, e logo foi transportado de volta ao passado. A letra no papel era diferente, mas o estilo, o jeito de construir as frases, o destaque que ela dava em certas palavras para chamar a atenção — tudo isso era familiar. Era como se ele estivesse lendo uma das cartas que ela lhe enviara anos atrás.
As memórias vieram à tona: as noites em que ele esperava ansioso por uma resposta, a emoção de receber uma nova carta, a dor do silêncio que se seguiu. Ele sentiu um nó na garganta e precisou parar por um momento, respirando fundo para se recompor.
— Clara... — sussurrou, como se o nome dela pudesse trazer de volta tudo o que ele havia perdido.Mas Daniel sabia que não podia se deixar levar pelas emoções. Ele voltou ao seu estado profissional, analisando o livro tecnicamente. A escrita de Clara era impressionante — envolvente, emocional e cheia de nuances. Ele percebeu que seria um desperdício de talento dispensá-la. Além disso, havia algo na história que o tocava profundamente, como se ela estivesse escrevendo sobre eles, sobre o que poderiam ter sido.
Ele pegou o telefone e ligou para a secretária.
— Marque uma reunião com a Clara. Quero discutir a publicação do livro dela.O restaurante era aconchegante, com uma iluminação suave que criava uma atmosfera íntima. Daniel chegou primeiro, ajustando o nó da gravata e olhando discretamente para o relógio. Ele estava nervoso, mas tentava disfarçar, passando os dedos pela borda do copo d'água que o garçom acabara de servir. Quando Clara entrou, ele fez um gesto discreto com a mão, cumprimentando-a com um sorriso. Ela sorriu de volta, notando a cadeira de rodas, mas não comentou. Sentou-se à mesa, e os dois trocaram um aperto de mão firme.— Obrigada por aceitar o jantar — disse Clara, acomodando-se na cadeira.— É um prazer — respondeu Daniel, com um sorriso breve. — Acho que discutir o livro em um ambiente mais descontraído pode ser produtivo.A conversa começou de forma profissional. Clara falou sobre as revisões que achava necessárias para que o livro se encaixasse melhor no mercado, enquanto Daniel anotava alguns pontos em um pequeno bloco de notas. Ele concordava com a cabeça, fazendo observações pontuais,
Clara acordou com o sol batendo suavemente na janela do seu pequeno apartamento no centro da cidade. Ela esticou os braços, bocejou e olhou para o relógio. Ainda era cedo, mas ela já estava acostumada a acordar com as primeiras luzes do dia. Era o seu momento de silêncio, antes que a agitação da rotina tomasse conta.Vestindo um roupão macio, ela desceu para pegar o jornal na portaria. O elevador estava quebrado — de novo —, então ela desceu as escadas, resmungando baixinho sobre o prédio antigo e cheio de problemas. Na portaria, o zelador, Sr. Carlos, já tinha separado o jornal para ela, como fazia todas as manhãs.— Bom dia, dona Clara! — cumprimentou ele, com um sorriso largo.— Bom dia, Carlos. O elevador... — ela começou, mas ele já sabia.— Já chamei o técnico. Hoje mesmo ele vem, pode confiar!Clara sorriu, agradeceu e voltou para o apartamento com o jornal debaixo do braço. Enquanto preparava seu café, ela folheou as páginas, passando rapidamente pelas manchetes políticas e ec
Os dias se transformaram em semanas, e as cartas entre Clara e Daniel continuavam a trafegar entre a cidade e o campo. Daniel, sempre um pouco vago e enigmático, falava sobre o céu estrelado, o cheiro da terra molhada e os sons da natureza, mas evitava detalhes pessoais. Ele mencionava sua paixão por escrever ficção científica, mas nunca contava como era seu dia a dia ou como lidava com os desafios da vida. Ainda assim, havia um entusiasmo genuíno em suas palavras, algo que Clara não conseguia ignorar.Clara, por outro lado, estava dividida entre a curiosidade e o medo. A falta de informações concretas sobre Daniel a deixava inquieta. Ela começou a criar teorias na cabeça — talvez ele fosse um foragido, alguém escondido do mundo. Afinal, Carlos, o irmão de Daniel, sempre parecia inventar desculpas quando ela perguntava sobre visitá-lo ou sobre o endereço que ele passara. Descobriu, por meio de uma pesquisa discreta, que o endereço não era de uma casa, mas de uma agência de correios. E
Carlos observava o irmão há semanas. Notava como Daniel ficava mais quieto, mais introspectivo, especialmente depois de enviar a foto para Clara. Ele percebia que algo estava errado, mas não sabia exatamente o quê. Até que, em uma noite tranquila durante o jantar, ele decidiu abordar o assunto diretamente.— Daniel, vamos conversar — disse Carlos, colocando o garfo no prato e olhando fixamente para o irmão.— Sobre o quê? — respondeu Daniel, evitando o olhar de Carlos.— Sobre essa história com a Clara. Você tá mentindo pra ela, não tá?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Ele sabia que não poderia fugir disso para sempre.— Eu... eu não menti exatamente. Só não contei tudo.— Não contar tudo é o mesmo que mentir, irmão — disse Carlos, com um tom de preocupação. — Você tá vivendo numa fantasia. E quanto antes você contar a verdade, melhor. Imagina se ela se espanta no dia que vocês se encontrarem?Daniel olhou para o prato, sentindo um nó na garganta. Ele sabia que C