Os dias se transformaram em semanas, e as cartas entre Clara e Daniel continuavam a trafegar entre a cidade e o campo. Daniel, sempre um pouco vago e enigmático, falava sobre o céu estrelado, o cheiro da terra molhada e os sons da natureza, mas evitava detalhes pessoais. Ele mencionava sua paixão por escrever ficção científica, mas nunca contava como era seu dia a dia ou como lidava com os desafios da vida. Ainda assim, havia um entusiasmo genuíno em suas palavras, algo que Clara não conseguia ignorar.
Clara, por outro lado, estava dividida entre a curiosidade e o medo. A falta de informações concretas sobre Daniel a deixava inquieta. Ela começou a criar teorias na cabeça — talvez ele fosse um foragido, alguém escondido do mundo. Afinal, Carlos, o irmão de Daniel, sempre parecia inventar desculpas quando ela perguntava sobre visitá-lo ou sobre o endereço que ele passara. Descobriu, por meio de uma pesquisa discreta, que o endereço não era de uma casa, mas de uma agência de correios. E, para piorar, Daniel nunca enviara uma foto. Tudo isso alimentava suas suspeitas.
Um dia, durante um almoço com sua tia, Clara decidiu compartilhar um pouco sobre a situação, sem mencionar os detalhes mais preocupantes.
— Tia, estou trocando cartas com um homem do campo. Ele parece interessante, mas é muito reservado. — Já viu uma foto dele? — perguntou a tia, levantando uma sobrancelha. Clara hesitou. — Ele nunca pediu, mas eu já enviei uma minha. — Ah, então ele sabe como você é. E você? Sabe como ele é? Clara ficou em silêncio. A verdade era que não sabia. E isso a incomodava mais do que ela gostaria de admitir.Naquela noite, Clara decidiu enviar uma foto para Daniel. Escolheu uma em que estava sorrindo, com um livro na mão, em frente à estante de sua sala. Era uma foto simples, mas que mostrava um pouco de quem ela era. Ao escrever a carta que acompanharia a foto, ela tentou manter o tom leve, mas não pôde evitar uma pequena provocação:
"Agora você sabe como eu sou. E eu? Quando vou saber como você é?"No campo, Daniel recebeu a carta com a foto de Clara e ficou paralisado. Ela era bonita — mais do que ele imaginara. Seu coração acelerou, mas logo a euforia deu lugar ao pânico. Ele sabia que precisava enviar uma foto de volta, mas como? Como ela reagiria ao descobrir que ele era cadeirante? Ele não queria que a conexão que estavam construindo se perdesse por causa de preconceitos ou julgamentos.
Enquanto isso, Carlos notou a mudança no irmão. Daniel estava mais animado, mais disposto a sair de casa e até cumprimentava as pessoas na rua com um sorriso. Mas, ao ver a foto de Clara, Carlos percebeu que algo estava preocupando Daniel.
— E aí, irmão, o que tem aí? — perguntou, pegando a foto das mãos de Daniel antes que ele pudesse escondê-la. — É ela — respondeu Daniel, tentando disfarçar a ansiedade. — Nossa, ela é bonita, hein? — Carlos riu. — E você? Já mandou uma foto sua? Daniel olhou para o irmão, sem saber o que dizer. Carlos percebeu a hesitação e decidiu não pressionar, mas não pôde evitar um comentário: — Cuidado, irmão. Ela é escritora, né? Esses artistas vivem criando histórias. Quem sabe ela não tá inventando tudo isso só pra ter uma boa trama de romance?Daniel não respondeu, mas a dúvida ficou pairando no ar. Ele sabia que Carlos tinha um ponto. Afinal, os escritores eram criativos, e Clara poderia estar apenas buscando inspiração. Mas, ao mesmo tempo, ele não queria acreditar que tudo aquilo fosse uma farsa.
Enquanto isso, na cidade, Clara continuava a escrever para Daniel, tentando manter a leveza nas cartas. Ela falava sobre seu trabalho como escritora, sobre como os leitores sempre esperavam histórias de romance genéricas, mas ela queria criar algo mais profundo, mais real. Daniel, por sua vez, respondia com histórias sobre o campo, sobre como ele se inspirava na natureza para criar suas ficções científicas. A troca de ideias era rica, mas o segredo de Daniel continuava pairando entre eles, como uma sombra silenciosa.
Daniel passou dias pensando em como tirar uma foto que parecesse natural, sem revelar sua condição. Ele não queria que Clara descobrisse pela foto que ele era cadeirante — pelo menos não ainda. A ideia de enviar uma imagem que escondesse sua realidade o consumia, mas ele sabia que não poderia adiar para sempre. Finalmente, ele teve um plano.
— Carlos, vamos dar uma volta hoje — disse Daniel, em um tom casual.
— Uma volta? Aonde? — perguntou o irmão, levantando uma sobrancelha. — Tem um prédio na cidade que eu quero visitar. Carlos ficou confuso. — Um prédio? Pra quê? Você tá pensando em mandar currículo? Se for isso, eu mesmo posso enviar pra você. — Não é isso — respondeu Daniel, evitando o olhar do irmão. — Só quero dar uma olhada.Carlos não entendeu, mas concordou em levá-lo. No caminho, Daniel ficou quieto, ensaiando mentalmente como pediria para o irmão tirar a foto. Quando chegaram ao prédio, ele posicionou a cadeira de rodas de frente para a construção, em um ângulo que escondia as rodas.
— Tira uma foto minha aqui — pediu Daniel, tentando parecer descontraído. — Uma foto? — Carlos riu. — Agora você tá querendo ser modelo? — É só uma foto, Carlos. Faz isso pra mim.Carlos pegou o celular e tirou a foto, ainda sem entender o motivo. Daniel olhou a imagem e aprovou. Era uma foto de perfil, com um ângulo próximo que não revelava sua cadeira de rodas. Ele parecia apenas um homem sorrindo, com um prédio ao fundo. Era o que ele precisava.
Naquela noite, Daniel escreveu uma carta para Clara, anexando a foto. Ele tentou manter o tom leve, mas não pôde evitar uma pontada de culpa. Ele sabia que estava escondendo algo importante, mas justificava para si mesmo que era apenas para ganhar tempo. Quando nos conhecermos melhor, eu conto tudo, pensou, tentando se convencer de que estava fazendo a coisa certa.
Enquanto isso, na cidade, Clara recebeu a carta e abriu o envelope com expectativa. Quando viu a foto de Daniel, ela sorriu. Ele era mais jovem do que ela imaginara, com um rosto simpático e um sorriso tímido. A foto não revelava muito, mas era o suficiente para ela sentir que estava se conectando com uma pessoa real, não apenas com palavras no papel.
No entanto, algo ainda a incomodava. A falta de detalhes sobre a vida de Daniel continuava a alimentar suas dúvidas. Ela decidiu não pressioná-lo, mas a curiosidade estava lá, latente.
No campo, Carlos começou a perceber que algo estava acontecendo. Um dia, enquanto ajudava Daniel com as tarefas da casa, ele decidiu cutucar o irmão.
— Então, essa Clara... Ela deve ser uma pessoa muito boa, né? — comentou, tentando parecer casual. — O que você quer dizer? — perguntou Daniel, desconfiado. — Ah, sei lá. Namorar um cadeirante sem preconceito... Isso é raro. Daniel ficou em silêncio por um momento, sentindo um nó na garganta. — A gente não tá namorando, Carlos. E ela... ela já sabe. — Sabe o quê? — perguntou Carlos, franzindo a testa. — Sabe que eu sou cadeirante — mentiu Daniel, evitando o olhar do irmão.Carlos não disse mais nada, mas Daniel sabia que o irmão não estava convencido. A verdade era que Clara não sabia de nada — nem sobre sua deficiência, nem sobre sua situação financeira. Ele estava mentindo para ambos, e isso o consumia.
Enquanto isso, Clara continuava a escrever para Daniel, cada vez mais envolvida pela conexão que estavam construindo. Ela falava sobre seus livros, sobre como os leitores esperavam finais felizes, mas ela queria criar histórias reais, com personagens complexos e imperfeitos. Daniel respondia com histórias sobre o campo, sobre como ele se inspirava na natureza para criar mundos distantes em suas ficções científicas.
A troca de cartas era rica e cheia de significado, mas o segredo de Daniel continuava pairando entre eles, como uma sombra silenciosa. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que contar a verdade. Mas, até lá, ele seguiria vivendo naquele equilíbrio frágil entre a esperança e o medo.
Carlos observava o irmão há semanas. Notava como Daniel ficava mais quieto, mais introspectivo, especialmente depois de enviar a foto para Clara. Ele percebia que algo estava errado, mas não sabia exatamente o quê. Até que, em uma noite tranquila durante o jantar, ele decidiu abordar o assunto diretamente.— Daniel, vamos conversar — disse Carlos, colocando o garfo no prato e olhando fixamente para o irmão.— Sobre o quê? — respondeu Daniel, evitando o olhar de Carlos.— Sobre essa história com a Clara. Você tá mentindo pra ela, não tá?Daniel ficou em silêncio, sentindo o peso da pergunta. Ele sabia que não poderia fugir disso para sempre.— Eu... eu não menti exatamente. Só não contei tudo.— Não contar tudo é o mesmo que mentir, irmão — disse Carlos, com um tom de preocupação. — Você tá vivendo numa fantasia. E quanto antes você contar a verdade, melhor. Imagina se ela se espanta no dia que vocês se encontrarem?Daniel olhou para o prato, sentindo um nó na garganta. Ele sabia que C
Os anos se passaram, e o mundo ao redor de Daniel mudou. Um conflito em um país distante, chamado Virelia, havia estourado, e soldados foram enviados para lutar em uma guerra que parecia não ter fim. Quando os soldados retornaram, muitos estavam feridos, mutilados e traumatizados. A população ficou revoltada com o governo, que parecia não se importar com o sofrimento daqueles que haviam lutado por sua pátria. Protestos tomaram as ruas, e a pressão popular cresceu.Foi então que o governo, em uma tentativa de acalmar os ânimos, criou um programa de reabilitação para deficientes. O programa oferecia tratamento médico, terapia física e psicológica, além de oportunidades de emprego e integração social. O objetivo era ajudar não apenas os soldados feridos, mas todos os deficientes que viviam à margem da sociedade.No abrigo, as notícias sobre o programa se espalharam rapidamente. Seu Antônio, sempre atento às oportunidades, foi um dos primeiros a se inscrever. Ele também não perdeu tempo e
O restaurante era aconchegante, com uma iluminação suave que criava uma atmosfera íntima. Daniel chegou primeiro, ajustando o nó da gravata e olhando discretamente para o relógio. Ele estava nervoso, mas tentava disfarçar, passando os dedos pela borda do copo d'água que o garçom acabara de servir. Quando Clara entrou, ele fez um gesto discreto com a mão, cumprimentando-a com um sorriso. Ela sorriu de volta, notando a cadeira de rodas, mas não comentou. Sentou-se à mesa, e os dois trocaram um aperto de mão firme.— Obrigada por aceitar o jantar — disse Clara, acomodando-se na cadeira.— É um prazer — respondeu Daniel, com um sorriso breve. — Acho que discutir o livro em um ambiente mais descontraído pode ser produtivo.A conversa começou de forma profissional. Clara falou sobre as revisões que achava necessárias para que o livro se encaixasse melhor no mercado, enquanto Daniel anotava alguns pontos em um pequeno bloco de notas. Ele concordava com a cabeça, fazendo observações pontuais,
Clara acordou com o sol batendo suavemente na janela do seu pequeno apartamento no centro da cidade. Ela esticou os braços, bocejou e olhou para o relógio. Ainda era cedo, mas ela já estava acostumada a acordar com as primeiras luzes do dia. Era o seu momento de silêncio, antes que a agitação da rotina tomasse conta.Vestindo um roupão macio, ela desceu para pegar o jornal na portaria. O elevador estava quebrado — de novo —, então ela desceu as escadas, resmungando baixinho sobre o prédio antigo e cheio de problemas. Na portaria, o zelador, Sr. Carlos, já tinha separado o jornal para ela, como fazia todas as manhãs.— Bom dia, dona Clara! — cumprimentou ele, com um sorriso largo.— Bom dia, Carlos. O elevador... — ela começou, mas ele já sabia.— Já chamei o técnico. Hoje mesmo ele vem, pode confiar!Clara sorriu, agradeceu e voltou para o apartamento com o jornal debaixo do braço. Enquanto preparava seu café, ela folheou as páginas, passando rapidamente pelas manchetes políticas e ec