- O que foi...? - Angel me olhou assustado, com seus grandes olhos azuis, sua boca parou aberta num grande O.
Balancei a cabeça, freneticamente. Os air-bags explodiram em nossos rostos, bloqueando minha visão.
Abri a porta, o álcool, misturado a esse impacto contra o invisível, me deixaram um bocado tonta.
Tentando permanecer fixa ao chão - ou começar a me fixar -, fechei os olhos e senti o silêncio da rua e meus pés afundando em um mar inexistente.
Abri os olhos, num sobressalto, e encontrei o que havíamos atropelado. Um lobo cinzento estava caído à um metro e meio do Nissan vermelho de Angel - ele ama vermelho.
- Um lobo - murmurei o visível.
- Quê?
- Um lobo, Angel, nós matamos um lobo! - pus as mãos em frente aos olhos, não consigo ver mais a cena fúnebre a minha frente. A mancha de sangue no asfalto me deixou atônita. Sangue. Sangue. Muito sangue.
Ouvi o barulho da porta do motorista abrindo-se e dos passos de Angel no asfalto úmido.
- Não o matamos... - sussurrou ele, após cinco segundos do mais desconcertante silêncio. - Ele está respirando.
A voz de Angel ecoou por minha mente, como uma música POP:
Ele está respirando.
Respirando.
Respirando.
- Está machucado, talvez uma pata fraturada ou uma costela quebrada.
Machucado.
Machucado.
Quebrada.
- Ele vai ficar bem.
Bem.
Ele não vai ficar bem.
- Vamos, a natureza cuida disso.
- A natureza cuida disso? - repeti, abrindo os olhos e baixando as mãos. - Nós fizemos isso, Angie, nós temos que cuidar dele.
Angel passou uma mão pálida pelos cabelos tão vermelhos quanto o carro.
- O que você vai fazer? - ele olhou para a mancha de sangue espalhada no chão, como uma pincelada irregular. Sua paixão por vermelho talvez tenha achado aquilo até mesmo belo. - E não me chama de Angie. É Angel. An-gel.
Rolei os olhos.
- O que eu vou fazer? O que nós faremos! - puxei meu casaco e a mochila de An-gel pela janela do carro, e caminhei em direção ao lobo, sentindo meus saltos se desfazerem a cada passo.
- Cerise, não mexe nele! Pode ser pior - Angel se permitiu dar dois passos largos em minha direção.
- Cala a boca, Ethan! - grunhi, me abaixando à frente do animal. Tendo plena consciência de que o nome "Ethan", sendo dito em meio a uma estrada, causaria um grande estardalhaço na situação, que já não está lá essa maravilha.
Angel deu mais um pesado passo, apontando-me um dedo branco como neve.
- Não me chame de Ethan! - ele gritou.
- Ethan - sorri.
Abri a mochila e vasculhei em cada um dos bolsos, até encontrar, em meio a CDs e pequenos pacotes transparentes com pílulas e seringas, a garrafa de água.
Ethan vociferou, reclamando o quão importante é usar seu nome de guerra.
- Ethan é um nome que eu não escolhi, portanto não é meu! - deu voltas no mesmo lugar.
Molhei o casaco com a água e, cuidadosamente, limpei o pescoço e o rosto manchados de sangue do lobo, segurando o grito em minha garganta.
Observei bem a pelagem úmida - não há ferimentos em seu rosto, muito menos do pescoço. Analisei o animal, minuciosamente: patas no lugar, orelhas caídas, calda felpuda e intacta.
- Do outro lado - a voz do Angel encheu-se ao soar solitária, me deixando, ligeiramente, sobressaltada. - Na pata dianteira. Há um corte. Pode ver. É superficial. Eu sei que é.
Sem olhar para Angel, porém me perguntando como ele pode ter tanta certeza disso, reuni forças inexistentes para erguer a cabeça do lobo.
O sangue gotejou minha calça e atravessou o tecido, tocando o joelho.
Engoli seco.
Lancei um olhar significativo para Angel, e ele captou a mensagem silenciosa: preciso de ajuda para erguer o lobo.
Juntos, erguemos o lobo e o deitamos novamente, com o lado do corte virado para cima.
Um estilhaço de vidro estava fundo na pele.
Minhas mãos tremeram.
- Angie, Angie... Você... - gaguejei.
- Espere... Ele não vai sentir nada - Angel pegou sua mochila e dela retirou duas seringas embaladas num pacotinho plástico.
- O que você vai fazer? - segurei sua mão antes que ele pudesse abrir a embalagem.
- Nada. Isso é sedativo. Vai mantê-lo dormindo enquanto você... nós limpamos tudo isso - ele olhou para o carro e para o lobo e para mim. - Ele vai ficar bem. Não dá para confiar em mim só uma vez nessa sua vidinha?
Balancei a cabeça negativamente, mas permiti que ele fizesse o que queria fazer.
Ele vai ficar bem, repeti mentalmente.
Vai ficar bem.
Angel abriu os pacotinhos e, com cuidado, destampou as seringas revelado agulhas finas e de aparência malévola.
Ficar bem.
- Estão esterilizadas - advertiu.
Bem.
Ele enfiou a agulha próximo ao corte. O lobo se moveu sob minhas mãos. Angel enfiou a segunda seringa.
O lobo ficou imóvel. Sua pulsação quase sumiu.
Angel puxou o caco de vidro ensanguentado e o jogou longe. O vidro tilintou em algum lugar atrás de mim.
Silêncio.
- Angel? - chamei. - Ele... Ele está morrendo?
Angel emitiu um grunhido.
- N-não. Ele está sedado. As injeções estão causando efeito.
Silêncio.
Ele está sedado, tentei me convencer.
Esta sedado.
Sedado.
O corpo frio do lobo cinzento moveu-se sob minhas mãos, moveu-se violentamente sob minhas mãos.
- Angel!
Angel me olhou com seus grandes olhos azuis arregalados, escancarados.
- Merda, é uma convulsão!
Angel segurou o lobo pela lombar enquanto eu tentava manter a cabeça do bicho no chão. Espuma e sangue mancharam os pelos ao redor de seu focinho.Eu gritei. Acho que gritei. Com certeza gritei:- Angel! Ele está morrendo! Chame alguém! Por favor...Ele me olhou como se eu fosse um cachorrinho desobediente. Seus cabelos, agora revoltosos, vermelhos como tinta de caneta, me deixaram ainda mais atônita.- Meu tio, Eddie, ele é veterinário, eu acho que ele...- LIGUE AGORA! - gritei erguendo as mãos no ar. - LIGUE!Angel correu até o carro, em busca de seu celular - acho.Os lábios finos do lobo tremem incessantemente. É como se o pobre animal fosse se desfazer em minhas mãos. Seus pelos estão sem vida... Ele sofre com a falta iminente dela.- Não morre, tá? - sussurrei. - Por favor, não morre.Os ol
Meu corpo está se liquefazendo, transformando-se em um bocado de massa branca e gosmenta.O solo sob meu corpo balança e se move, vozes sussurram e dedos quentes me tocam de vez em quando.Todo o meu corpo parece envolto em uma grossa camada de dor.Tenho fome e cede, e um frio doentio que expreme meus ossos - apesar de eu não saber se ainda existem ossos no meio de toda essa massa.- Ele está morrendo... Morrendo... Morrendo... Morrendo... - disse uma voz. Não sei se a voz repetiu a mesma palavras tantas vezes, ou se estava só ecoando. Ela parece distante, como um assobio de passarinhos migrando.O mundo dá voltas.Me sinto dentro de um grande redemoinho, girando e girando, me chocando contra pedras de gelo que me tornam ainda mais gosmento.Eu estou morrendo?O Adeus dará adeus...Tudo fic
O corpo do garoto que era lobo, chacoalhava e emitia ruídos nos bancos de trás. Vez ou outra ouvíamos o barulho do trincar de dentes e gritos sufocados por uma boca cheia de sangue.O assoalho do Nissan agora está repleto do líquido escarlate e espesso.- Ele está manchando meu carro - Angel reclamou baixinho, batendo no volante com as duas mãos.Sei que ele não está realmente preocupado com a mancha que o sangue vai deixar, ou quão terrível ficará o assoalho de seu carro novo. Angel está com tanto medo quanto eu, ainda mais porque decidimos levar o garoto que era lobo para o pequeno cubículo onde ele mora.Meus pais claramente não receberiam muito bem um garoto desnudo, que, por sinal, costumava ser um lobo cinzento e grande. Aliás, minha casa está cheia, os filhos do tio Herman vieram de Salem para passar o verão, somado a meus dois irmãos isso quer dizer que todos os cômodos estarão superlotados. 
Minhas patas arrastaram no chão terroso e o humano sussurrou algo em meu ouvido. Eu não entendia...O mundo piscou em cores sortidas. Um arco-íris de cores tão próximas, levando-me, arrastando-me...Sinos badalaram em minha mente bagunçada, eles parecem me chamar. Venha. Venha, jovem Adeus...Morrer.Morrer.Morrer.Será isso o que meu corpo está fazendo? Será a morte quem sussurra em meus ouvidos?Morte.Morte.Morte.Sinto ela me arrastando sobre as pedras no chão, sinto minha pele ficando no caminho.O que ela diz?O mundo piscou em cores mortas.Vazio.Foi assim que me senti antes de o mundo não ter mais cores.
Do armário de Angel, tirei uma camisa branca, toda abarrotada, e calças de moletom – o garoto lobo terá que se contentar só com isso, não me atrevo a vasculhar entre as cuecas de Angie.Angel levou o garoto para o banheiro e o deitou na banheira, permitindo que a água quente fizesse todo o trabalho.— E o que faremos? — perguntou-me Angie, passando as mãos nervosas nos vastos cabelos vermelhos.— Nada. Você o veste e dá algo para comer, o pobre garoto lobo pode estar com fome, não é? — entreguei-lhe as roupas que peguei no armário. — E... eu vou ligar para casa e avisar que não morri, só quase matei lobo que acabou se transformando num garoto, ou algo mais real que isso, como...— Vampiros no Oregon? Furar um dedo e dormir por sem anos?— É, algo assim.Angel piscou algumas vezes, sério e meio anestesiado.— Ok, eu vou pegar alguns biscoitos
Humanos.Humanos.Humanos.Tudo cheira à eles.Imagens coladas nas paredes. Vaga-lumes coloridos nas janelas. Lençóis e roupas.Reclamei baixinho, contorcendo-me sob as cobertas. Minhas costelas estremeceram de encontro a carne. Alisei meu corpo com patas pálidas.Pelo.Onde está meu pelo?Eles roubaram meu pelo lupino e me deram fios finos e invisíveis.Minha pele é da cor de nuvens e romã.Não consigo uivar.Onde está minha voz?Lobos.Lobos.Lobos.Onde estão os lobos?Onde está a floresta?Eu quero minhas árvores de volta, quero chuva e até mesmo a lama que gruda no pelo.Mãos e
Eu poderia fazer alguma coisa para ajudá-lo. O pobre garoto - que era lobo - está naquela cama há dois dias, contorcendo-se, grunhido e chorando.Me sentei aos teus pés todas aquelas noites, rezando - mesmo sem saber - para que ele se erga o mais rápido possível.Angel me trouxe pão com fatias de presunto e tentou me animar cantando sua música mais desafinada.Nada deu certo.Estou vendo meu feito definhando à quinze centímetros de mim. Ele não fala, ele não come, não diz que tem sede ou se está com frio.Angel limpou os lençóis e lhe deu banho, enquanto eu preparava mais uma refeição que jaz, imaculada, sobre a mesa.Mamãe deixou mil e uma mensagens, papai ligou outras mil, meus primos chegaram até bem próximo da casa de Angie, mas nenhum entrou.Apenas Gary, quem um dia já fora meu melhor amigo, entrou aqui. Eu o ouvi reclamar p
Minhas patas são humanas, meu corpo inteiro, tudo... Humano. Estou vestido igual a eles, estou sorrindo como eles fazem, estou comendo e bebendo o mesmo que eles.Seria eu... um deles?Aquele homem costumava me pedir para voltar... Será que era para isso que eu deveria voltar? Deveria voltar a ser como ele?Acho que estou voltando. De maneira lenta e dolorosa, difícil. Mas estou voltando. Voltando a ser um Adeus com pernas e braços. E isso não parece bom para mim. Ainda existe um animal aqui dentro, gritando, arranhando, mordendo, uivando “volte, volte, volte!”. Para quem devo voltar?O que eu sou?A resposta está fundo de mais para ser alcançada com as patas, fundo de mais... Nesse meio tempo, talvez, eu já esteja louco o suficiente para a resposta não afetar nada mais em meu ser.