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Capítulo 1 | Lobo

O solo sob minhas patas é frio e feio e grudento. Folhas estão jogadas sob poças de lama – folhas sujas de lama sempre agarram no pelo.

Uma fina garoa cai, delicadamente, sobre mim e sobre tudo, erguendo no ar um odor terroso e almiscarado. 

Luzes dançam, não tão longe, como uma festa de vaga-lumes vermelhos e amarelos. Uma festa, extremamente quieta, de vaga-lumes vermelhos e amerelos, distantes e rechonchudos. 

Cheiro de fumaça, algo podre e rosas selvagens preenche todo o ar, se misturando com o cheiro da terra, me fazendo sentir uma certa sensação claustrofóbica. A urgência de me afastar do local quase, quase, me fez ir embora. Mas algo – não sei se nas luzes, ou na cacofonia de vozes que se aproxima lentamente – me fez seguir em frente.

Em poucos instantes, os vaga-lumes vermelhos dão lugar à lâmpadas redondas, presas em varais de fios verdes e brancos, retorcidos, trançados, saindo de uma casa e se enroscando em três árvores, formando um triângulo luminoso que, vez ou outra, balança e ameaça sair voando noite à fora. 

Um homem corpulento remexe-se, para um lado e para o outro, ao som de uma cantoria estridente. Sua voz enraivecida provoca instantes de tenção e torna a cantoria, que pula de caixas pretas acopladas à um automóvel cinza, mais insuportável e não identificável. 

Mais vozes voam da casa cor de areia, vozes doces e calmas. 

Me forço a marchar até a árvore mais próxima, que possa me esconder e ainda me manter perto dos humanos barulhentos – numa distância segura e estratégica. 

– Darla! Trás o molho, querida! – diz o homem corpulento. Ele tira suculentos discos de carne de uma pequena caixa de isopor e os coloca, com o auxílio de uma espátula, sobre uma chapa lisa e alta em uma mesa quadrada de pernas finas e bambas. 

A carne reclamou, baixinho, e soltou uma torrente de fumaça cheirosa.

O homem coloca mais e mais carnes sobre a chapa. O cheiro está se tornando irresistível – tanto para mim, quanto para algumas outras espécies selvagens.

A porta amarela se abre e dela sai uma bonita mulher alva, de cabelos cor de caramelo, envolta num vestido azulado com pequenas papoulas tão vermelhas quanto sangue fresco. A mulher, que ri e canta a todo o tempo, entrega ao homem um pequeno vasilhame cheio de folhas de alface, bolotas verdes que parecem azeitonas – são azeitonas – e um vidro vermelho.

O homem lhe dá um beijo no rosto e volta a trabalhar com as carnes e cebolas. 

– Cerise? – a mulher chama, mas nada além de ar atravessa a porta. – Será que você poderia baixar o som dessa coisa? – ela aponta para as caixas negras e pulsates no veículo. 

O homem torceu o nariz, mas apertou alguma coisa e o barulhão se transformou em uma conversa: Lembra de quando eu te disse "Essa é a última vez que você vai me ver"? Lembra de quando eu te deixei em prantos?"

– Cerise? Traga os garotos... – disse a mulher. 

O silêncio criou uma expectativa: Quem são os próximos humanos a cruzar a porta amarela? 

O suspense foi quebrado por uma algazarra de vozes fininhas e ainda mais estridentes que a voz das caixas no automóvel.

Dois meninos correram ao redor das árvores, enquanto um observava o humano corpulento organizar carnes e alfaces sobre pães redondos. 

Um humano, de aparência jovem, com uma massa escura e encaracolada de cabelos, que foram arrastados para frente dos olhos verdes como folhas vivas de primavera, atravessou a porta amarela. Ele se sentou à mesa, ao lado da mulher com vestido de papoulas. 

O homem corpulento voltou a aumentar o volume da música e as crianças começaram a rir do modo como ele dançava e servia hambúrgueres ao mesmo tempo.

Todos parecem extremamente felizes, menos a mulher com vestido de papoulas. Ela parece estar preocupada, inquieta, rindo de maneira nervosa. 

– Onde está Cerise? – perguntou a mulher. 

– Ela já vem – disse o rapaz de olhos verdes. 

A música seguiu solitária, sem voz alguma para acompanhar os acordes. O cheiro da carne deixou de ser uma novidade para a noite, já não garoa mais, o cheiro da terra molhada tornou-se frágil próximo ao pesado odor da fumaça. 

Me sentei no chão úmido, baixando as orelhas. Parece que nada mais vai acontecer na noite humana.

Quando eu ia desistindo de assistir aquele jantar barulhento e quieto, a porta abriu. Deixei todos os sentidos em alerta. Pernas cobertas por calças apertadas e negras como a noite e uma blusa curta de lã, se puseram fora da casa cor de areia. A massa caramelizada, com muitas mechas coloridas em azul, roxo e rosa, caem em grandes cachos pesados sobre os ombros eretos. Lábios pigmentados de vermelho, olhos terrosos, cheios de maquiagem, e pulsos repletos de pulseiras prateadas compõe uma bonita moça. Observei-a enquanto ela seguia andando para a mesa e arrastava consigo um humano jovem de cabelos vermelhos. O cheiro inebriante de cigarros e álcool misturou-se aos demais odores. 

A moça de cabelos coloridos se sentou em frente à humana de vestido de papoulas. A mulher pareceu irritada. 

— Eu disse para não beber! — reclamou o homem corpulento. – E quem é esse pivete? – ele apontou com um grande garfo para o rapaz de cabelos vermelhos. 

– Vocês nunca entendem nada! – a moça reclamou e voltou a se erguer passando novamente pela porta amarela da casa cor de areia, levando consigo o rapaz de madeixas vermelhas. 

A humana de vestido de papoulas correu atrás da moça, mas o homem corpulento a interceptou antes de ela cruzar a porta. 

Todos pareceram tristes. 

Algo dentro de mim reclamou e pediu para sair. Implorei para o que quer que esteja aqui dentro, saísse, pulasse para fora e me deixasse perseguir a humana rebelde. 

O que quer que seja não me ouviu. 

Corri entre arbustos, escondido dos humanos, tentando ficar o mais longe possível das casas. O cheiro de muitas comidas sendo preparadas de uma única vez tomou conta do ar a medida que eu me afastava da casa cor de areia. 

Avistei a moça dentro de um carro vermelho que, pelas janelas abertas, deixava o odor amargo de álcool fazer torvelinhos invisíveis no ar. 

Não sei o porquê de estar perseguindo a moça rebelde e o rapaz de cabelos sangrentos. Aliás, não sei por que a coisa dentro de mim está me impulsionando tanto à continuar seguindo. 

Acelerei, parando no meio de uma rua estreita e mal iluminada. Os faróis do carro me olharam como se fossem dois olhos furiosos. 

O carro chiou ao estar tão próximo de mim, os pneus mancharam o asfalto. Os jovens no interior do veículo gritaram, assustados, e  tudo o que se passou a seguir foi uma mancha vermelha antes da escuridão.

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