O solo sob minhas patas é frio e feio e grudento. Folhas estão jogadas sob poças de lama – folhas sujas de lama sempre agarram no pelo.
Uma fina garoa cai, delicadamente, sobre mim e sobre tudo, erguendo no ar um odor terroso e almiscarado.
Luzes dançam, não tão longe, como uma festa de vaga-lumes vermelhos e amarelos. Uma festa, extremamente quieta, de vaga-lumes vermelhos e amerelos, distantes e rechonchudos.
Cheiro de fumaça, algo podre e rosas selvagens preenche todo o ar, se misturando com o cheiro da terra, me fazendo sentir uma certa sensação claustrofóbica. A urgência de me afastar do local quase, quase, me fez ir embora. Mas algo – não sei se nas luzes, ou na cacofonia de vozes que se aproxima lentamente – me fez seguir em frente.
Em poucos instantes, os vaga-lumes vermelhos dão lugar à lâmpadas redondas, presas em varais de fios verdes e brancos, retorcidos, trançados, saindo de uma casa e se enroscando em três árvores, formando um triângulo luminoso que, vez ou outra, balança e ameaça sair voando noite à fora.
Um homem corpulento remexe-se, para um lado e para o outro, ao som de uma cantoria estridente. Sua voz enraivecida provoca instantes de tenção e torna a cantoria, que pula de caixas pretas acopladas à um automóvel cinza, mais insuportável e não identificável.
Mais vozes voam da casa cor de areia, vozes doces e calmas.
Me forço a marchar até a árvore mais próxima, que possa me esconder e ainda me manter perto dos humanos barulhentos – numa distância segura e estratégica.
– Darla! Trás o molho, querida! – diz o homem corpulento. Ele tira suculentos discos de carne de uma pequena caixa de isopor e os coloca, com o auxílio de uma espátula, sobre uma chapa lisa e alta em uma mesa quadrada de pernas finas e bambas.
A carne reclamou, baixinho, e soltou uma torrente de fumaça cheirosa.
O homem coloca mais e mais carnes sobre a chapa. O cheiro está se tornando irresistível – tanto para mim, quanto para algumas outras espécies selvagens.
A porta amarela se abre e dela sai uma bonita mulher alva, de cabelos cor de caramelo, envolta num vestido azulado com pequenas papoulas tão vermelhas quanto sangue fresco. A mulher, que ri e canta a todo o tempo, entrega ao homem um pequeno vasilhame cheio de folhas de alface, bolotas verdes que parecem azeitonas – são azeitonas – e um vidro vermelho.
O homem lhe dá um beijo no rosto e volta a trabalhar com as carnes e cebolas.
– Cerise? – a mulher chama, mas nada além de ar atravessa a porta. – Será que você poderia baixar o som dessa coisa? – ela aponta para as caixas negras e pulsates no veículo.
O homem torceu o nariz, mas apertou alguma coisa e o barulhão se transformou em uma conversa: Lembra de quando eu te disse "Essa é a última vez que você vai me ver"? Lembra de quando eu te deixei em prantos?"
– Cerise? Traga os garotos... – disse a mulher.
O silêncio criou uma expectativa: Quem são os próximos humanos a cruzar a porta amarela?
O suspense foi quebrado por uma algazarra de vozes fininhas e ainda mais estridentes que a voz das caixas no automóvel.
Dois meninos correram ao redor das árvores, enquanto um observava o humano corpulento organizar carnes e alfaces sobre pães redondos.
Um humano, de aparência jovem, com uma massa escura e encaracolada de cabelos, que foram arrastados para frente dos olhos verdes como folhas vivas de primavera, atravessou a porta amarela. Ele se sentou à mesa, ao lado da mulher com vestido de papoulas.
O homem corpulento voltou a aumentar o volume da música e as crianças começaram a rir do modo como ele dançava e servia hambúrgueres ao mesmo tempo.
Todos parecem extremamente felizes, menos a mulher com vestido de papoulas. Ela parece estar preocupada, inquieta, rindo de maneira nervosa.
– Onde está Cerise? – perguntou a mulher.
– Ela já vem – disse o rapaz de olhos verdes.
A música seguiu solitária, sem voz alguma para acompanhar os acordes. O cheiro da carne deixou de ser uma novidade para a noite, já não garoa mais, o cheiro da terra molhada tornou-se frágil próximo ao pesado odor da fumaça.
Me sentei no chão úmido, baixando as orelhas. Parece que nada mais vai acontecer na noite humana.
Quando eu ia desistindo de assistir aquele jantar barulhento e quieto, a porta abriu. Deixei todos os sentidos em alerta. Pernas cobertas por calças apertadas e negras como a noite e uma blusa curta de lã, se puseram fora da casa cor de areia. A massa caramelizada, com muitas mechas coloridas em azul, roxo e rosa, caem em grandes cachos pesados sobre os ombros eretos. Lábios pigmentados de vermelho, olhos terrosos, cheios de maquiagem, e pulsos repletos de pulseiras prateadas compõe uma bonita moça. Observei-a enquanto ela seguia andando para a mesa e arrastava consigo um humano jovem de cabelos vermelhos. O cheiro inebriante de cigarros e álcool misturou-se aos demais odores.
A moça de cabelos coloridos se sentou em frente à humana de vestido de papoulas. A mulher pareceu irritada.
— Eu disse para não beber! — reclamou o homem corpulento. – E quem é esse pivete? – ele apontou com um grande garfo para o rapaz de cabelos vermelhos.
– Vocês nunca entendem nada! – a moça reclamou e voltou a se erguer passando novamente pela porta amarela da casa cor de areia, levando consigo o rapaz de madeixas vermelhas.
A humana de vestido de papoulas correu atrás da moça, mas o homem corpulento a interceptou antes de ela cruzar a porta.
Todos pareceram tristes.
Algo dentro de mim reclamou e pediu para sair. Implorei para o que quer que esteja aqui dentro, saísse, pulasse para fora e me deixasse perseguir a humana rebelde.
O que quer que seja não me ouviu.
Corri entre arbustos, escondido dos humanos, tentando ficar o mais longe possível das casas. O cheiro de muitas comidas sendo preparadas de uma única vez tomou conta do ar a medida que eu me afastava da casa cor de areia.
Avistei a moça dentro de um carro vermelho que, pelas janelas abertas, deixava o odor amargo de álcool fazer torvelinhos invisíveis no ar.
Não sei o porquê de estar perseguindo a moça rebelde e o rapaz de cabelos sangrentos. Aliás, não sei por que a coisa dentro de mim está me impulsionando tanto à continuar seguindo.
Acelerei, parando no meio de uma rua estreita e mal iluminada. Os faróis do carro me olharam como se fossem dois olhos furiosos.
O carro chiou ao estar tão próximo de mim, os pneus mancharam o asfalto. Os jovens no interior do veículo gritaram, assustados, e tudo o que se passou a seguir foi uma mancha vermelha antes da escuridão.
- O que foi...? - Angel me olhou assustado, com seus grandes olhos azuis, sua boca parou aberta num grande O.Balancei a cabeça, freneticamente. Os air-bags explodiram em nossos rostos, bloqueando minha visão.Abri a porta, o álcool, misturado a esse impacto contra o invisível, me deixaram um bocado tonta.Tentando permanecer fixa ao chão - ou começar a me fixar -, fechei os olhos e senti o silêncio da rua e meus pés afundando em um mar inexistente.Abri os olhos, num sobressalto, e encontrei o que havíamos atropelado. Um lobo cinzento estava caído à um metro e meio do Nissan vermelho de Angel - ele ama vermelho.- Um lobo - murmurei o visível.- Quê?- Um lobo, Angel, nós matamos um lobo! - pus as mãos em frente aos olhos, não consigo ver mais a cena fúnebre a minha frente. A mancha de sangue no asfalto me deixou atônita. Sangue. Sangue. Muito sangue.
Angel segurou o lobo pela lombar enquanto eu tentava manter a cabeça do bicho no chão. Espuma e sangue mancharam os pelos ao redor de seu focinho.Eu gritei. Acho que gritei. Com certeza gritei:- Angel! Ele está morrendo! Chame alguém! Por favor...Ele me olhou como se eu fosse um cachorrinho desobediente. Seus cabelos, agora revoltosos, vermelhos como tinta de caneta, me deixaram ainda mais atônita.- Meu tio, Eddie, ele é veterinário, eu acho que ele...- LIGUE AGORA! - gritei erguendo as mãos no ar. - LIGUE!Angel correu até o carro, em busca de seu celular - acho.Os lábios finos do lobo tremem incessantemente. É como se o pobre animal fosse se desfazer em minhas mãos. Seus pelos estão sem vida... Ele sofre com a falta iminente dela.- Não morre, tá? - sussurrei. - Por favor, não morre.Os ol
Meu corpo está se liquefazendo, transformando-se em um bocado de massa branca e gosmenta.O solo sob meu corpo balança e se move, vozes sussurram e dedos quentes me tocam de vez em quando.Todo o meu corpo parece envolto em uma grossa camada de dor.Tenho fome e cede, e um frio doentio que expreme meus ossos - apesar de eu não saber se ainda existem ossos no meio de toda essa massa.- Ele está morrendo... Morrendo... Morrendo... Morrendo... - disse uma voz. Não sei se a voz repetiu a mesma palavras tantas vezes, ou se estava só ecoando. Ela parece distante, como um assobio de passarinhos migrando.O mundo dá voltas.Me sinto dentro de um grande redemoinho, girando e girando, me chocando contra pedras de gelo que me tornam ainda mais gosmento.Eu estou morrendo?O Adeus dará adeus...Tudo fic
O corpo do garoto que era lobo, chacoalhava e emitia ruídos nos bancos de trás. Vez ou outra ouvíamos o barulho do trincar de dentes e gritos sufocados por uma boca cheia de sangue.O assoalho do Nissan agora está repleto do líquido escarlate e espesso.- Ele está manchando meu carro - Angel reclamou baixinho, batendo no volante com as duas mãos.Sei que ele não está realmente preocupado com a mancha que o sangue vai deixar, ou quão terrível ficará o assoalho de seu carro novo. Angel está com tanto medo quanto eu, ainda mais porque decidimos levar o garoto que era lobo para o pequeno cubículo onde ele mora.Meus pais claramente não receberiam muito bem um garoto desnudo, que, por sinal, costumava ser um lobo cinzento e grande. Aliás, minha casa está cheia, os filhos do tio Herman vieram de Salem para passar o verão, somado a meus dois irmãos isso quer dizer que todos os cômodos estarão superlotados. 
Minhas patas arrastaram no chão terroso e o humano sussurrou algo em meu ouvido. Eu não entendia...O mundo piscou em cores sortidas. Um arco-íris de cores tão próximas, levando-me, arrastando-me...Sinos badalaram em minha mente bagunçada, eles parecem me chamar. Venha. Venha, jovem Adeus...Morrer.Morrer.Morrer.Será isso o que meu corpo está fazendo? Será a morte quem sussurra em meus ouvidos?Morte.Morte.Morte.Sinto ela me arrastando sobre as pedras no chão, sinto minha pele ficando no caminho.O que ela diz?O mundo piscou em cores mortas.Vazio.Foi assim que me senti antes de o mundo não ter mais cores.
Do armário de Angel, tirei uma camisa branca, toda abarrotada, e calças de moletom – o garoto lobo terá que se contentar só com isso, não me atrevo a vasculhar entre as cuecas de Angie.Angel levou o garoto para o banheiro e o deitou na banheira, permitindo que a água quente fizesse todo o trabalho.— E o que faremos? — perguntou-me Angie, passando as mãos nervosas nos vastos cabelos vermelhos.— Nada. Você o veste e dá algo para comer, o pobre garoto lobo pode estar com fome, não é? — entreguei-lhe as roupas que peguei no armário. — E... eu vou ligar para casa e avisar que não morri, só quase matei lobo que acabou se transformando num garoto, ou algo mais real que isso, como...— Vampiros no Oregon? Furar um dedo e dormir por sem anos?— É, algo assim.Angel piscou algumas vezes, sério e meio anestesiado.— Ok, eu vou pegar alguns biscoitos
Humanos.Humanos.Humanos.Tudo cheira à eles.Imagens coladas nas paredes. Vaga-lumes coloridos nas janelas. Lençóis e roupas.Reclamei baixinho, contorcendo-me sob as cobertas. Minhas costelas estremeceram de encontro a carne. Alisei meu corpo com patas pálidas.Pelo.Onde está meu pelo?Eles roubaram meu pelo lupino e me deram fios finos e invisíveis.Minha pele é da cor de nuvens e romã.Não consigo uivar.Onde está minha voz?Lobos.Lobos.Lobos.Onde estão os lobos?Onde está a floresta?Eu quero minhas árvores de volta, quero chuva e até mesmo a lama que gruda no pelo.Mãos e
Eu poderia fazer alguma coisa para ajudá-lo. O pobre garoto - que era lobo - está naquela cama há dois dias, contorcendo-se, grunhido e chorando.Me sentei aos teus pés todas aquelas noites, rezando - mesmo sem saber - para que ele se erga o mais rápido possível.Angel me trouxe pão com fatias de presunto e tentou me animar cantando sua música mais desafinada.Nada deu certo.Estou vendo meu feito definhando à quinze centímetros de mim. Ele não fala, ele não come, não diz que tem sede ou se está com frio.Angel limpou os lençóis e lhe deu banho, enquanto eu preparava mais uma refeição que jaz, imaculada, sobre a mesa.Mamãe deixou mil e uma mensagens, papai ligou outras mil, meus primos chegaram até bem próximo da casa de Angie, mas nenhum entrou.Apenas Gary, quem um dia já fora meu melhor amigo, entrou aqui. Eu o ouvi reclamar p