Angel segurou o lobo pela lombar enquanto eu tentava manter a cabeça do bicho no chão. Espuma e sangue mancharam os pelos ao redor de seu focinho.
Eu gritei. Acho que gritei. Com certeza gritei:
- Angel! Ele está morrendo! Chame alguém! Por favor...
Ele me olhou como se eu fosse um cachorrinho desobediente. Seus cabelos, agora revoltosos, vermelhos como tinta de caneta, me deixaram ainda mais atônita.
- Meu tio, Eddie, ele é veterinário, eu acho que ele...
- LIGUE AGORA! - gritei erguendo as mãos no ar. - LIGUE!
Angel correu até o carro, em busca de seu celular - acho.
Os lábios finos do lobo tremem incessantemente. É como se o pobre animal fosse se desfazer em minhas mãos. Seus pelos estão sem vida... Ele sofre com a falta iminente dela.
- Não morre, tá? - sussurrei. - Por favor, não morre.
Os olhos do lobo se abriram, olhos vazios e cinzentos como fumaça. Vizios e cinzentos como a falta de vida.
Seu corpo se contraiu, as patas se uniram ao corpo felpudo, a calda balançou de um modo estranho e também se encolheu.
O lobo uivou, baixinho. Um uivo dolorido e cheio de medo...
- Anda Angie! - pedi aos berros.
- Porra, estou tentando!
O lobo tremeu como uma britadeira, parecia querer criar um terremoto com o próprio corpo.
- ANGEL!
O animal se encolheu mais e mais, tentando fugir para dentro de si mesmo. Os pelos, em todo o seu corpo, parecem menores, diminuindo, diminuindo, diminuindo...
Ele gritou. Um grito gutural. Um grito quase humano.
Seu focinho sumiu, dando lugar a um perfeito nariz redondinho e humano, as orelhas tornaram-se pálidas e diminutas, as presas sumiram, a calda sumiu, as patas engrossaram até se parecerem com pernas humanas, brancas como papel.
O pelo se perdeu completamente na pele lisa, cabelos desiguais e muito negros cresceram e cobriram seus olhos e rosto. Dedos finos e palmas ocuparam as patas...
Meu corpo se chacoalhou, e, boquiaberta, deixei-me cair sentada sobre o asfalto molhado.
Um garoto. Um garoto até que bonito e pálido, de cabelos longos e...
Ele era um lobo.
Era um lobo.
Um lobo cinza.
Um lobo grande e cinza.
Agora ele é um garoto.
Um garoto branco, com os nós dos dedos azuis e os pulsos translúcidos mostrando veias coloridas.
Mas ele é um lobo!
- Isso é um sonho. Um sonho horrível e catastrófico... Um sonho maquiavélico... Oh meu Deus! Estou enlouquecendo!
A demência tomou conta dos meus sentidos, mas eu a afastei inspirando e expirando como um peixe fora d'água.
Passei os dedos nos cabelos molhados do rapaz, retirando-os de frente do rosto alvo e doce. Os lábios estão azuis e a pele, fria e branca como neve.
O lobo não está morrendo... O garoto está. O garoto sob o lobo está morrendo!
- ANGIE! RÁPIDO! - gritei o mais alto que pude, ajeitando o casaco sobre o corpo magro do garoto lobo.
Ele ergueu uma mão e olhou para o chão, olhou para o garoto que era um lobo.
O celular, entre seus dedos, caiu e tilintou.
O garoto ainda tem as marcas das injeções e o talho profundo na costela, sangrando, sangrando...
- ANGIE!
Angel enfim se moveu e caminhou até o garoto que era lobo, com os olhos arregalados.
- O que...?
- É, eu sei, ele foi alvo de uma bruxaria e o feitiço passou. Ele pode ser a própria Cinderella! - disse, tentando acreditar nas minhas palavras inacreditáveis.
- O-onde está o... O lobo? - gaguejou.
Obriguei-me a levantar, retirando as botas de saltos altíssimos.
- Ele é o lobo!
- Oh.
- Vem, me ajuda, vamos levá-lo para o carro...
Angie nada disse, se agachou e pegou o garoto magro nos braços de maneira desajeitada. O casaco caiu de sobre o rapaz, revelado todo o corpo desnudo e trêmulo.
Senti minha pele queimar, porém foi preciso ignorar. Peguei o casaco e a mochila do Angel, jogando as seringas e os CDs espalhados, lá dentro. Segurei minhas botas conta o corpo e joguei o restante da água sobre o sangue no asfalto.
Angie acomodou o rapaz nos bancos de trás. Os air-bags se esvaziaram e caíram como lenços manchados sobre o volante.
- O que faremos agora? - perguntou Angel. Ele tentava esconder a demasia. Mas tudo estava bem na sua cara, no modo como seus olhos estão rasos, banhados em lágrimas, de medo, em como seus lábios tremem, na maneira como ele passa as mãos nos cabelos.
Sentei no banco do passageiro, olhando por sobre o ombro para o belo garoto definhando nos bancos de trás. Seu rosto transmite serenidade, apesar de haver sangue em seus lábios e queixo e de lágrimas perambularem sobre suas bochechas. A boca entreaberta parece clamar por ajuda.
Ajuda.
- Eu não sei.
Meu corpo está se liquefazendo, transformando-se em um bocado de massa branca e gosmenta.O solo sob meu corpo balança e se move, vozes sussurram e dedos quentes me tocam de vez em quando.Todo o meu corpo parece envolto em uma grossa camada de dor.Tenho fome e cede, e um frio doentio que expreme meus ossos - apesar de eu não saber se ainda existem ossos no meio de toda essa massa.- Ele está morrendo... Morrendo... Morrendo... Morrendo... - disse uma voz. Não sei se a voz repetiu a mesma palavras tantas vezes, ou se estava só ecoando. Ela parece distante, como um assobio de passarinhos migrando.O mundo dá voltas.Me sinto dentro de um grande redemoinho, girando e girando, me chocando contra pedras de gelo que me tornam ainda mais gosmento.Eu estou morrendo?O Adeus dará adeus...Tudo fic
O corpo do garoto que era lobo, chacoalhava e emitia ruídos nos bancos de trás. Vez ou outra ouvíamos o barulho do trincar de dentes e gritos sufocados por uma boca cheia de sangue.O assoalho do Nissan agora está repleto do líquido escarlate e espesso.- Ele está manchando meu carro - Angel reclamou baixinho, batendo no volante com as duas mãos.Sei que ele não está realmente preocupado com a mancha que o sangue vai deixar, ou quão terrível ficará o assoalho de seu carro novo. Angel está com tanto medo quanto eu, ainda mais porque decidimos levar o garoto que era lobo para o pequeno cubículo onde ele mora.Meus pais claramente não receberiam muito bem um garoto desnudo, que, por sinal, costumava ser um lobo cinzento e grande. Aliás, minha casa está cheia, os filhos do tio Herman vieram de Salem para passar o verão, somado a meus dois irmãos isso quer dizer que todos os cômodos estarão superlotados. 
Minhas patas arrastaram no chão terroso e o humano sussurrou algo em meu ouvido. Eu não entendia...O mundo piscou em cores sortidas. Um arco-íris de cores tão próximas, levando-me, arrastando-me...Sinos badalaram em minha mente bagunçada, eles parecem me chamar. Venha. Venha, jovem Adeus...Morrer.Morrer.Morrer.Será isso o que meu corpo está fazendo? Será a morte quem sussurra em meus ouvidos?Morte.Morte.Morte.Sinto ela me arrastando sobre as pedras no chão, sinto minha pele ficando no caminho.O que ela diz?O mundo piscou em cores mortas.Vazio.Foi assim que me senti antes de o mundo não ter mais cores.
Do armário de Angel, tirei uma camisa branca, toda abarrotada, e calças de moletom – o garoto lobo terá que se contentar só com isso, não me atrevo a vasculhar entre as cuecas de Angie.Angel levou o garoto para o banheiro e o deitou na banheira, permitindo que a água quente fizesse todo o trabalho.— E o que faremos? — perguntou-me Angie, passando as mãos nervosas nos vastos cabelos vermelhos.— Nada. Você o veste e dá algo para comer, o pobre garoto lobo pode estar com fome, não é? — entreguei-lhe as roupas que peguei no armário. — E... eu vou ligar para casa e avisar que não morri, só quase matei lobo que acabou se transformando num garoto, ou algo mais real que isso, como...— Vampiros no Oregon? Furar um dedo e dormir por sem anos?— É, algo assim.Angel piscou algumas vezes, sério e meio anestesiado.— Ok, eu vou pegar alguns biscoitos
Humanos.Humanos.Humanos.Tudo cheira à eles.Imagens coladas nas paredes. Vaga-lumes coloridos nas janelas. Lençóis e roupas.Reclamei baixinho, contorcendo-me sob as cobertas. Minhas costelas estremeceram de encontro a carne. Alisei meu corpo com patas pálidas.Pelo.Onde está meu pelo?Eles roubaram meu pelo lupino e me deram fios finos e invisíveis.Minha pele é da cor de nuvens e romã.Não consigo uivar.Onde está minha voz?Lobos.Lobos.Lobos.Onde estão os lobos?Onde está a floresta?Eu quero minhas árvores de volta, quero chuva e até mesmo a lama que gruda no pelo.Mãos e
Eu poderia fazer alguma coisa para ajudá-lo. O pobre garoto - que era lobo - está naquela cama há dois dias, contorcendo-se, grunhido e chorando.Me sentei aos teus pés todas aquelas noites, rezando - mesmo sem saber - para que ele se erga o mais rápido possível.Angel me trouxe pão com fatias de presunto e tentou me animar cantando sua música mais desafinada.Nada deu certo.Estou vendo meu feito definhando à quinze centímetros de mim. Ele não fala, ele não come, não diz que tem sede ou se está com frio.Angel limpou os lençóis e lhe deu banho, enquanto eu preparava mais uma refeição que jaz, imaculada, sobre a mesa.Mamãe deixou mil e uma mensagens, papai ligou outras mil, meus primos chegaram até bem próximo da casa de Angie, mas nenhum entrou.Apenas Gary, quem um dia já fora meu melhor amigo, entrou aqui. Eu o ouvi reclamar p
Minhas patas são humanas, meu corpo inteiro, tudo... Humano. Estou vestido igual a eles, estou sorrindo como eles fazem, estou comendo e bebendo o mesmo que eles.Seria eu... um deles?Aquele homem costumava me pedir para voltar... Será que era para isso que eu deveria voltar? Deveria voltar a ser como ele?Acho que estou voltando. De maneira lenta e dolorosa, difícil. Mas estou voltando. Voltando a ser um Adeus com pernas e braços. E isso não parece bom para mim. Ainda existe um animal aqui dentro, gritando, arranhando, mordendo, uivando “volte, volte, volte!”. Para quem devo voltar?O que eu sou?A resposta está fundo de mais para ser alcançada com as patas, fundo de mais... Nesse meio tempo, talvez, eu já esteja louco o suficiente para a resposta não afetar nada mais em meu ser.
O garoto baixou a cabeça sobre o prato de sopa, iria beber, como um cachorro. Mas eu não o deixei fazê-lo.Sentei-me bem a sua frente, com um de seus joelhos tocando a lateral da minha coxa, e dei-lhe de comer.Colher por colher, ele comeu sem reclamar. Mas logo estava cansado, outra vez, caindo para os lados como se o houvessem drogado novamente.Angie e eu deixamos que o garoto dormisse o quanto fosse preciso, pensando, vagamente, que seu sono poderia nunca mais acabar. Torcendo para estar errada.Os dias se arrastaram bem de vagar.Ele não acordou, por dois dias inteiros.