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Capítulo 3 | Moça

Angel segurou o lobo pela lombar enquanto eu tentava manter a cabeça do bicho no chão. Espuma e sangue mancharam os pelos ao redor de seu focinho. 

Eu gritei. Acho que gritei. Com certeza gritei:

- Angel! Ele está morrendo! Chame alguém! Por favor... 

Ele me olhou como se eu fosse um cachorrinho desobediente. Seus cabelos, agora revoltosos, vermelhos como tinta de caneta, me deixaram ainda mais atônita.

- Meu tio, Eddie, ele é veterinário, eu acho que ele... 

- LIGUE AGORA! - gritei erguendo as mãos no ar. - LIGUE! 

Angel correu até o carro, em busca de seu celular - acho. 

Os lábios finos do lobo tremem incessantemente. É como se o pobre animal fosse se desfazer em minhas mãos. Seus pelos estão sem vida... Ele sofre com a falta iminente dela.

- Não morre, tá? - sussurrei. - Por favor, não morre. 

Os olhos do lobo se abriram, olhos vazios e cinzentos como fumaça. Vizios e cinzentos como a falta de vida. 

Seu corpo se contraiu, as patas se uniram ao corpo felpudo, a calda balançou de um modo estranho e também se encolheu. 

O lobo uivou, baixinho. Um uivo dolorido e cheio de medo... 

- Anda Angie! - pedi aos berros. 

- Porra, estou tentando! 

O lobo tremeu como uma britadeira, parecia querer criar um terremoto com o próprio corpo.

- ANGEL! 

O animal se encolheu mais e mais, tentando fugir para dentro de si mesmo. Os pelos, em todo o seu corpo, parecem menores, diminuindo, diminuindo, diminuindo... 

Ele gritou. Um grito gutural. Um grito quase humano. 

Seu focinho sumiu, dando lugar a um perfeito nariz redondinho e humano, as orelhas tornaram-se pálidas e diminutas, as presas sumiram, a calda sumiu, as patas engrossaram até se parecerem com pernas humanas, brancas como papel. 

O pelo se perdeu completamente na pele lisa, cabelos desiguais e muito negros cresceram e cobriram seus olhos e rosto. Dedos finos e palmas ocuparam as patas... 

Meu corpo se chacoalhou, e, boquiaberta, deixei-me cair sentada sobre o asfalto molhado. 

Um garoto. Um garoto até que bonito e pálido, de cabelos longos e... 

Ele era um lobo. 

Era um lobo. 

Um lobo cinza. 

Um lobo grande e cinza. 

Agora ele é um garoto. 

Um garoto branco, com os nós dos dedos azuis e os pulsos translúcidos mostrando veias coloridas. 

Mas ele é um lobo! 

- Isso é um sonho. Um sonho horrível e catastrófico... Um sonho maquiavélico... Oh meu Deus! Estou enlouquecendo! 

A demência tomou conta dos meus sentidos, mas eu a afastei inspirando e expirando como um peixe fora d'água. 

Passei os dedos nos cabelos molhados do rapaz, retirando-os de frente do rosto alvo e doce. Os lábios estão azuis e a pele, fria e branca como neve.

O lobo não está morrendo... O garoto está. O garoto sob o lobo está morrendo! 

- ANGIE! RÁPIDO! - gritei o mais alto que pude, ajeitando o casaco sobre o corpo magro do garoto lobo. 

Ele ergueu uma mão e olhou para o chão, olhou para o garoto que era um lobo. 

O celular, entre seus dedos, caiu e tilintou. 

O garoto ainda tem as marcas das injeções e o talho profundo na costela, sangrando, sangrando... 

- ANGIE! 

Angel enfim se moveu e caminhou até o garoto que era lobo, com os olhos arregalados. 

- O que...? 

- É, eu sei, ele foi alvo de uma bruxaria e o feitiço passou. Ele pode ser a própria Cinderella! - disse, tentando acreditar nas minhas palavras inacreditáveis. 

- O-onde está o... O lobo? - gaguejou. 

Obriguei-me a levantar, retirando as botas de saltos altíssimos. 

- Ele é o lobo!

- Oh. 

- Vem, me ajuda, vamos levá-lo para o carro... 

Angie nada disse, se agachou e pegou o garoto magro nos braços de maneira desajeitada. O casaco caiu de sobre o rapaz, revelado todo o corpo desnudo e trêmulo.

Senti minha pele queimar, porém foi preciso ignorar. Peguei o casaco e a mochila do Angel, jogando as seringas e os CDs espalhados, lá dentro. Segurei minhas botas conta o corpo e joguei o restante da água sobre o sangue no asfalto. 

Angie acomodou o rapaz nos bancos de trás. Os air-bags se esvaziaram e caíram como lenços manchados sobre o volante. 

- O que faremos agora? - perguntou Angel. Ele tentava esconder a demasia. Mas tudo estava bem na sua cara, no modo como seus olhos estão rasos, banhados em lágrimas, de medo, em como seus lábios tremem, na maneira como ele passa as mãos nos cabelos.

Sentei no banco do passageiro, olhando por sobre o ombro para o belo garoto definhando nos bancos de trás. Seu rosto transmite serenidade, apesar de haver sangue em seus lábios e queixo e de lágrimas perambularem sobre suas bochechas. A boca entreaberta parece clamar por ajuda. 

Ajuda. 

- Eu não sei. 

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