Papai me levou até a ponte, me deixou ver o rio sob ela. Esta manhã, bem cedo, arrumamos nossas poucas coisas e deixamos o hotel.
– Vamos para casa – ele disse, extremamente animado.
Eu concordei – apesar de parecer que ainda não devo ir, que há algo que preciso fazer, pessoas a quem preciso dizer adeus. Devem ser apenas os lobos, ou os cervos, ou os coelhos, ou as árvores. Talvez todos eles. Afinal, não recordo de muito mais que isso. O lobo tem roubado a maioria das memórias. Talvez isso o acalme. Mas não tem me deixado muito satisfeito.
Há dias em que acordo com medo de esquecer quem sou agora, então recebo lampejos de memórias antigas, que podem pertencer ao lobo, não a mim. São borrões coloridos, manchados de vermelho, olhos felizes, um garoto meio triste que não sabe o que está fazendo e uma garota seguindo seus passos, um pouco atordoada, mas seguindo ainda assim. Não sei seus nomes, eles só falam sobre despedidas e des
Angie e eu decidimos que vamos procurar pelo garoto-lobo uma última vez. Acordamos cedo, Angie umas duas horas mais que eu. Ele rondou a mata, contou os lobos e fotografou quantos pôde. Nenhum era ele.Contamos com a possibilidade de ele ter voltado a sua forma humana, Adeus. Então precisamos voltar aos hospitais, perguntar a toda Astoria se preciso, mas precisamos encontrá-lo. De certa forma, somos os culpados por essa bagunça toda. Se Angie não o tivesse atropelado e drogado, talvez ele fosse apenas um lobo agora, são e salvo e selvagem e livre e completamente desconhecido para nós. Se eu não tivesse chamado o Angie para me buscar aquela noite, talvez ele não tivesse batido o carro no Mogli e nada disso teria acontecido. Então somos os culpados e não podemos deixá-lo assim. Pronto, está decidido.Descrevemos sua forma humana às infermeiras. Uma delas pareceu saber de algo, então esperamos que seu paciente estivesse calmo.– Hã, Lu
Nós chegamos no pequeno hotel em frente à praça, a gerente nós disse que Joe não estava lá, que tinha saído a pouco e que falou com "o menino" sobre passar na cidade e voltar para casa.Isso significa que eles terão de passar pela ponte, isso significa que precisamos correr. E foi o que fizemos. Pisei firme no acelerador até encontrar o carro. Então é só pará-los e encontrar o Mogli e daí por diante a coisa de desenrola sozinha.Pegamos todos os atalhos possíveis e cortamos a cidade ao meio. Chegamos a ponte e nós deparamos com um bloqueio. Cerise saiu primeiro e perguntou a um casal o que estava acontecendo.– Um lobo – foi o que ela disse. Um lobo. E saiu correndo.Um lobo.Não pode ser o nosso. Não pode ser.Cerise se enfiou em qualquer passagem que conseguia, obrigando os motoristas a avançarem ainda mais devagar. Os policiais pediam calma em tons cada vez mais altos.
Ele se debatia em convulsões intermitentes. Os olhos ainda abertos, os dedos frios.– Filho...? Filho!Seu corpo pendeu para o lado e acalmou-se, mas as mãos ainda não haviam aceitado e continuavam a se debaterem.O garoto se cabelos vermelhos me ofereceu uma carona até o hospital. Hospital. Não quero mais ouvir essa palavra. Chega deles. Chega... Essa tem que ser a última vez.E nós fomos ao hospital (droga) e meu filho foi atendido com rapidez por uma enfermeira de riso frouxo. Então, o garoto de cabelo vermelho e uma garota de cabelo colorido me contaram uma história. Uma história sobre um lobo que fora atropelado e transformou-se em meu filho.A história pareceu durar uma eternidade, até que visitas foram aceitas e eu pude finalmente vê-lo, meu filho grande demais para ser tratado como uma criança, que se transforma em lobo de vez em quando e tem amigos estranhos com cabelos estranhos e contam h
As máquinas outra vez, sempre as máquinas e seus bips vulgares. Eu sei que estão aí, não precisam gritar sempre, não precisam berrar em meus ouvidos.– Zach? – vozes diminutas soaram longe, muito longe, e ao mesmo tempo bem aqui, em meus ouvidos.– Esse é seu nome? Zach? – Cerise olhava para mim com seus grandes olhos castalhos. A massa de cabelo cacheados e colorido cobrindo boa parte do rosto. Ela parece feliz, talvez apenas um pouco triste.– É, desde que me lembro – que não faz muito tempo. – Zachary McPherson, muito prazer.– McPherson? – Angel brotou em minha visão, ainda meio turva e agora, com toda aquela coisa vermelha em sua cabeça, um pouco mais. – Como aquela loja de artigos esportivos em Salem?– É – tentei encontrar meu pai na sala, ele estava em um canto, meio distante, os olhos cheios de lágrimas. – É a loja do tio Kurt. Eu fui lá uma vez, mas era muito pequeno, não lembr
– Não vai dar muito trabalho? – perguntei, prendendo o cinto.– Não, não vai – Joe checou os retrovisores (como se mais alguém pudesse mexer naquela lata velha). – Você está muito velho para entrar na escola do bairro. As crianças iriam caçoar de você.Ele checou o porta luvas, suas aspirinas e minhas fritas estavam ali. Além de repelente, um sinalizador, documentos do carro e um guia de TV.– Eu sei, mas... Existe Internet e meios mais fáceis de fazer isso – apontei para o celular em sua mão. Ele me passou o aparelho junto há um risinho amarelo.– Então você não quer vê-los? – aquele olhar travesso manchou toda a silhueta de pai superprotetor que ele esbanjava há somente um segundo atrás.– Quero, quero sim. Só não quero dar muito trabalho – talvez eu seja o superprotetor.– Esse não é o papel dos filhos? Dar trabalho?– Aaaah, você me entendeu!
Ele ainda era uma criança quando fora "infectado". Seu pai, Joe, levou-o à médicos e padres.Ele não estava doente, muito menos possuído.Irmã Merit chamou a infecção de Provação Divina. Joe não acreditava em Deus, pouco menos em qualquer outra divindade.Joe viu-se obrigado a curar o filho à sua própria maneira.Primeiro comprou uma fazenda em Klamath, no Oregon. Deixou ele estabilizar-se, familiarizar-se com o local. Comprou remédios - caixas e mais caixas, perfeitamente lacradas, de remédios inúteis.Quando completou onze anos, seu filho se transformou.Joe não entendeu. Horrorizou-se. Temia perder o controle sobre a situação. Mas, surpreendentemente, acima de qualquer coisa, Joe não queria perdê-lo.Joe criou um cercado, amplo o bastante para seu filho correr, viver... Porém, deixou alto o suficiente para ele não escapar. Fez também, dentro do
Eu não sabia o que fazer.Estava - ou era - escuro, para onde quer que eu tenha ido.Eu não sabia o que fazer.Cheirei o chão. Eu queria voltar. Queria voltar para aquele homem que cuidava de mim. Queria voltar a ser aquele para quem ele olhava através dos meus olhos.Eu não sabia o que fazer.Não sabia o que era.O que sou?Eles, os humanos, as criaturas que andam sobre as patas traseiras e nos olham com medo, costumavam me chamar de... Eu não consigo lembrar. Eu deveria lembrar? Acho que sim.Lembro de quando aquele homem me pegou em seus braços e chorou olhando para meus olhos, ele estava vendo alguém ali, nos meus olhos, alguém que estava sob mim, sob minha pele. Não era eu a quem ele via. Ele chamou-me... Filho.Olhei ao meu redor. Era tudo branco. Parecia algum lugar onde eu já estivera antes. Era apertado, u
O solo sob minhas patas é frio e feio e grudento. Folhas estão jogadas sob poças de lama – folhas sujas de lama sempre agarram no pelo.Uma fina garoa cai, delicadamente, sobre mim e sobre tudo, erguendo no ar um odor terroso e almiscarado.Luzes dançam, não tão longe, como uma festa de vaga-lumes vermelhos e amarelos. Uma festa, extremamente quieta, de vaga-lumes vermelhos e amerelos, distantes e rechonchudos.Cheiro de fumaça, algo podre e rosas selvagens preenche todo o ar, se misturando com o cheiro da terra, me fazendo sentir uma certa sensação claustrofóbica. A urgência de me afastar do local quase, quase, me fez ir embora. Mas algo – não sei se nas luzes, ou na cacofonia de vozes que se aproxima lentamente – me fez seguir em frente.Em poucos instantes, os vaga-lumes vermelhos dão lugar à lâmpadas redondas, presas em varais de fios verdes e brancos, retorcidos, trançados, saindo de uma casa e se e