O corpo do garoto que era lobo, chacoalhava e emitia ruídos nos bancos de trás. Vez ou outra ouvíamos o barulho do trincar de dentes e gritos sufocados por uma boca cheia de sangue.
O assoalho do Nissan agora está repleto do líquido escarlate e espesso.
- Ele está manchando meu carro - Angel reclamou baixinho, batendo no volante com as duas mãos.
Sei que ele não está realmente preocupado com a mancha que o sangue vai deixar, ou quão terrível ficará o assoalho de seu carro novo. Angel está com tanto medo quanto eu, ainda mais porque decidimos levar o garoto que era lobo para o pequeno cubículo onde ele mora.
Meus pais claramente não receberiam muito bem um garoto desnudo, que, por sinal, costumava ser um lobo cinzento e grande. Aliás, minha casa está cheia, os filhos do tio Herman vieram de Salem para passar o verão, somado a meus dois irmãos isso quer dizer que todos os cômodos estarão superlotados. 
Minhas patas arrastaram no chão terroso e o humano sussurrou algo em meu ouvido. Eu não entendia...O mundo piscou em cores sortidas. Um arco-íris de cores tão próximas, levando-me, arrastando-me...Sinos badalaram em minha mente bagunçada, eles parecem me chamar. Venha. Venha, jovem Adeus...Morrer.Morrer.Morrer.Será isso o que meu corpo está fazendo? Será a morte quem sussurra em meus ouvidos?Morte.Morte.Morte.Sinto ela me arrastando sobre as pedras no chão, sinto minha pele ficando no caminho.O que ela diz?O mundo piscou em cores mortas.Vazio.Foi assim que me senti antes de o mundo não ter mais cores.
Do armário de Angel, tirei uma camisa branca, toda abarrotada, e calças de moletom – o garoto lobo terá que se contentar só com isso, não me atrevo a vasculhar entre as cuecas de Angie.Angel levou o garoto para o banheiro e o deitou na banheira, permitindo que a água quente fizesse todo o trabalho.— E o que faremos? — perguntou-me Angie, passando as mãos nervosas nos vastos cabelos vermelhos.— Nada. Você o veste e dá algo para comer, o pobre garoto lobo pode estar com fome, não é? — entreguei-lhe as roupas que peguei no armário. — E... eu vou ligar para casa e avisar que não morri, só quase matei lobo que acabou se transformando num garoto, ou algo mais real que isso, como...— Vampiros no Oregon? Furar um dedo e dormir por sem anos?— É, algo assim.Angel piscou algumas vezes, sério e meio anestesiado.— Ok, eu vou pegar alguns biscoitos
Humanos.Humanos.Humanos.Tudo cheira à eles.Imagens coladas nas paredes. Vaga-lumes coloridos nas janelas. Lençóis e roupas.Reclamei baixinho, contorcendo-me sob as cobertas. Minhas costelas estremeceram de encontro a carne. Alisei meu corpo com patas pálidas.Pelo.Onde está meu pelo?Eles roubaram meu pelo lupino e me deram fios finos e invisíveis.Minha pele é da cor de nuvens e romã.Não consigo uivar.Onde está minha voz?Lobos.Lobos.Lobos.Onde estão os lobos?Onde está a floresta?Eu quero minhas árvores de volta, quero chuva e até mesmo a lama que gruda no pelo.Mãos e
Eu poderia fazer alguma coisa para ajudá-lo. O pobre garoto - que era lobo - está naquela cama há dois dias, contorcendo-se, grunhido e chorando.Me sentei aos teus pés todas aquelas noites, rezando - mesmo sem saber - para que ele se erga o mais rápido possível.Angel me trouxe pão com fatias de presunto e tentou me animar cantando sua música mais desafinada.Nada deu certo.Estou vendo meu feito definhando à quinze centímetros de mim. Ele não fala, ele não come, não diz que tem sede ou se está com frio.Angel limpou os lençóis e lhe deu banho, enquanto eu preparava mais uma refeição que jaz, imaculada, sobre a mesa.Mamãe deixou mil e uma mensagens, papai ligou outras mil, meus primos chegaram até bem próximo da casa de Angie, mas nenhum entrou.Apenas Gary, quem um dia já fora meu melhor amigo, entrou aqui. Eu o ouvi reclamar p
Minhas patas são humanas, meu corpo inteiro, tudo... Humano. Estou vestido igual a eles, estou sorrindo como eles fazem, estou comendo e bebendo o mesmo que eles.Seria eu... um deles?Aquele homem costumava me pedir para voltar... Será que era para isso que eu deveria voltar? Deveria voltar a ser como ele?Acho que estou voltando. De maneira lenta e dolorosa, difícil. Mas estou voltando. Voltando a ser um Adeus com pernas e braços. E isso não parece bom para mim. Ainda existe um animal aqui dentro, gritando, arranhando, mordendo, uivando “volte, volte, volte!”. Para quem devo voltar?O que eu sou?A resposta está fundo de mais para ser alcançada com as patas, fundo de mais... Nesse meio tempo, talvez, eu já esteja louco o suficiente para a resposta não afetar nada mais em meu ser.
O garoto baixou a cabeça sobre o prato de sopa, iria beber, como um cachorro. Mas eu não o deixei fazê-lo.Sentei-me bem a sua frente, com um de seus joelhos tocando a lateral da minha coxa, e dei-lhe de comer.Colher por colher, ele comeu sem reclamar. Mas logo estava cansado, outra vez, caindo para os lados como se o houvessem drogado novamente.Angie e eu deixamos que o garoto dormisse o quanto fosse preciso, pensando, vagamente, que seu sono poderia nunca mais acabar. Torcendo para estar errada.Os dias se arrastaram bem de vagar.Ele não acordou, por dois dias inteiros.
Sinto-me derretendo, como a neve no início da primavera. É como se meu corpo estivesse sendo aquecido por um sol latente e a chuva estivesse lavando o que restou e empurrando tudo para um rio sobressalente.Sinto os olhos em minha pele liquefeita, minhas veias a mostra, minhas patas tentam fixar-se em qualquer coisa. O derretimento também as atingiu, elas só não conseguem lidar com esse fato.Mãos afagam meu pelo, testam meu peso, me carregam de lá para cá em baldes pequenos e me remodelam em outro molde.Então, sou estável outra vez, mas já não sou o mesmo de antes.Tenho dedos e unhas, cabelos e pantorrilhas, joelhos, nariz e lábios. Sou comprido e visto roupas, uso perfumes e shampoo.Corro sobre duas pernas, mal ouço o vento ao meu redor, luzes não são sinais de perigo, vozes, também não.Eu falo, eu canto, eu danço e não sou capaz de rasgar a pelagem de um cervo com os de
Ele abriu os olhos, olhos cinzentos e caídos, um pouco misteriosos, também, e passeou com eles por todo o quarto. Angie estava deitado ao seu lado, ronronando e sussurrando palavras partidas que deveriam ser secretas, e isso lhe pareceu de grande incômodo.Afastando-se lentamente, o garoto que era lobo acabou encolhido no canto da cama, com umas das pernas quase tocando o chão.– Quer sair? – levantei-me do tapete e estendi uma mão, rezando baixinho para que ele não a mordesse. – Eu posso te ajudar.O Mogli olhou para meus dedos e imitou meu movimento, erguendo a mão e oferecendo-a para mim. A segurei, com caltela, não quero um lobo enfurecido me mostrando seus caninos. O ajudei a levantar, mostrando-lhe os movimentos não tão certos que é preciso fazer para levantar-se de uma cama. Uma perna, depois a outra, ele seguiu os passos, e, apoiando-se cabeceira, conseguiu ficar de pé.As roupas lhe parecem um erro, e