O garoto baixou a cabeça sobre o prato de sopa, iria beber, como um cachorro. Mas eu não o deixei fazê-lo.
Sentei-me bem a sua frente, com um de seus joelhos tocando a lateral da minha coxa, e dei-lhe de comer.
Colher por colher, ele comeu sem reclamar. Mas logo estava cansado, outra vez, caindo para os lados como se o houvessem drogado novamente.
Angie e eu deixamos que o garoto dormisse o quanto fosse preciso, pensando, vagamente, que seu sono poderia nunca mais acabar. Torcendo para estar errada.
Os dias se arrastaram bem de vagar.
Ele não acordou, por dois dias inteiros.
Sinto-me derretendo, como a neve no início da primavera. É como se meu corpo estivesse sendo aquecido por um sol latente e a chuva estivesse lavando o que restou e empurrando tudo para um rio sobressalente.Sinto os olhos em minha pele liquefeita, minhas veias a mostra, minhas patas tentam fixar-se em qualquer coisa. O derretimento também as atingiu, elas só não conseguem lidar com esse fato.Mãos afagam meu pelo, testam meu peso, me carregam de lá para cá em baldes pequenos e me remodelam em outro molde.Então, sou estável outra vez, mas já não sou o mesmo de antes.Tenho dedos e unhas, cabelos e pantorrilhas, joelhos, nariz e lábios. Sou comprido e visto roupas, uso perfumes e shampoo.Corro sobre duas pernas, mal ouço o vento ao meu redor, luzes não são sinais de perigo, vozes, também não.Eu falo, eu canto, eu danço e não sou capaz de rasgar a pelagem de um cervo com os de
Ele abriu os olhos, olhos cinzentos e caídos, um pouco misteriosos, também, e passeou com eles por todo o quarto. Angie estava deitado ao seu lado, ronronando e sussurrando palavras partidas que deveriam ser secretas, e isso lhe pareceu de grande incômodo.Afastando-se lentamente, o garoto que era lobo acabou encolhido no canto da cama, com umas das pernas quase tocando o chão.– Quer sair? – levantei-me do tapete e estendi uma mão, rezando baixinho para que ele não a mordesse. – Eu posso te ajudar.O Mogli olhou para meus dedos e imitou meu movimento, erguendo a mão e oferecendo-a para mim. A segurei, com caltela, não quero um lobo enfurecido me mostrando seus caninos. O ajudei a levantar, mostrando-lhe os movimentos não tão certos que é preciso fazer para levantar-se de uma cama. Uma perna, depois a outra, ele seguiu os passos, e, apoiando-se cabeceira, conseguiu ficar de pé.As roupas lhe parecem um erro, e
O humano vermelho cortou meus cabelos, disse que quando eu parasse de me embaraçar neles, seria legal deixá-los crescer novamente.Ele me apresentou sua floresta, sua casa e caixas de cereal. Me explicou como fazer fogo com palitos e caixas minúsculos, como fazer a barba mesmo sem ter uma e como usar uma faca para autodefesa.Falou sobre livros, filmes e canais de TV. Mostrou-me seu carro, onde apertar para fazer barulho e onde nunca encostar caso uma senhora lenta esteja atravessando a rua.Explicou a eficácia de alguns remédios, a inutilidade de outros e o que não se fazer com eles em caso de solidão, desejo por morte ou coração partido.Ajudou a amarrar os cadarços e a fazer mágica com eles.Depois, me levou para dar uma volta, mostrou-me os limites da cidade, o rio e os lugares onde encontrar comida boa e barata em tempos de crise.Quando voltamos, a moça estava lá, nos olhando
O céu de Astoria estave livre de nuvens durante toda a noite, como se quisesse estar limpo para dar as boas vindas ao novo humano.Mogli não nos disse nada desde o "maluca" estremecido e arranhado de ontem. Mas, ao menos ele anda agora, come sem enfiar a cara toda no prato, bebe sem por a língua para fora e, embora ainda precise de um pouco de ajuda e monitoramento, é capaz de tomar um banho mais ou menos decente - mesmo que sabonete ainda lhe pareça suculento e sempre acabe com shampoo nas orelhas.Cerise e eu optamos por deixá-lo abrir-se para nós e não fazer perguntas que com certeza o faria sair correndo durante a madrugada. Todavia, ainda me é doloroso ter que tratá-lo como um cãozinho abandonado. Talvez possamos lhe dar um nome, ou um apelido melhor que Mogli - apesar de esse se encaixar perfeitamente, ao menos até que sua memória humana, caso ele tenha mesmo uma, volte. Ele também não parece muito feliz com isso. As vezes, o vejo observar a n
Cerise arrumou a dispensa — que sempre fora vazia — com lençóis amarrados de um jeito cômico, alguns dos quadros da sala e o futon dos tempos das vagas esqueléticas. Deu um jeito de trazer alguns dos móveis velhos do porão sem que sua mãe soubesse, além de coisas inúteis que um ex-lobo jamais usaria, mas dão um ar jovial e vivo ao local.Mogli olhou tudo com olhos gulosos, fez questão de tocar as paredes e tudo o que, agora, lhe pertence.Ele gostou das cortinas de lençol, da janela pequena e baixa, de todos os tons de vermelho e lilás que conseguimos colar naquelas paredes verdes.Bem depois de todas as luzes terem sido apagadas, ouvi passos em frente a porta. Ao abrir, o vi parado lá, em frente a janela da cozinha, olhando para a noite e todas aquelas árvores robustas.Fui a seu encontro.— Não consegue dormir?Ele não respondeu, apenas suspirou um pouco e tocou seu próprio
O garoto que era lobo deitou-se na grama, os olhos sempre voltados para o céu. As nuvens do fim de tarde mancham o horizonte de rosa e laranja enquanto os últimos pássaros se recolhem em silêncio.– Eu queria ter sido um pássaro – disse Angie, abrindo os braços e a chacoalhando os dedos. — Se tivesse o mesmo poder que você e pudesse esconder, escolheria ser um pássaro.– Não é um poder – indagou o garoto, sentando-se.– E o que é? Uma doença? Uma maldição?– Angie, não pergunte essas coisas! – interferi. Ele me ouviu, baixou os braços e encostou-se em uma das pilastra da varanda.– Que tipo de pássaro você seria, Vermelho? – o garoto voltou a deitar-se, sentindo-se incomodado apenas com a abrupta chegada da noite.– Vermelho? – Angie fingiu estar irritado, apontando um de seus dedos pálidos para o Mogli. – É assim que você me chama?Mogli manteve-s
— Papai, papai... — a criança correu por toda a casa, sem cuidado algum, quase se batendo nas pilhas de livros ao longo corredor. Suas mãos estavam apertadas em forma de concha, esticadas para cima para que não batesse em nada.— Na cozinha! — uma voz masculina soou do outro lado da parta.— Pode abrir pra mim? Minhas mãos...O homem robusto, alto e barbudo abriu a porta como foi pedido e a criança correu para lhe mostrar o que trazia em meio às palmas curvadas.— Olha o que eu achei — ele separou os dedos bem devagar, revelando o que havia naquela pequena redoma. Pequenas e finas patas se ergueram para a luz, buscando uma forma fácil de escapar. — Ele se chama Timothy!— O que temos aqui? Um escaravelho! — o homem pegou o besouro das pequeninas mãos do garoto e o colocou no chão. Enquanto observavam, agachados, as voltas que o escaravelho dava em volta de si mesmo, buscando um caminho p
As convulsões voltaram.Mogli uiva sobre a cama, febril e instável. Seus dedos tremem, seus olhos lacrimejam, seus dentes batem uns conta os outros.É uma guerra.Cerise chora enquanto testa sua temperatura, ela troca os lençóis a cada cinco minutos, e chora enquanto os troca. Ela me pergunta o que fazer...Eu não sei.O garoto que era lobo parece prestes a rebobinar a fita, ele quer voltar à seus pelos negros e unhas afiadas.Eu não sei.Cerise grita, é a sétima vez que o faz. Está desesperada, estou desesperado.As convulsões param. Ele não responde...— Mogli! — é a oitava vez.Mogli uiva, mas ainda não está completo, ainda não voltou ao lobo que era. Ele ainda é um de nós, ainda é um humano. Mas, até quando?