— Papai, papai... — a criança correu por toda a casa, sem cuidado algum, quase se batendo nas pilhas de livros ao longo corredor. Suas mãos estavam apertadas em forma de concha, esticadas para cima para que não batesse em nada.
— Na cozinha! — uma voz masculina soou do outro lado da parta.
— Pode abrir pra mim? Minhas mãos...
O homem robusto, alto e barbudo abriu a porta como foi pedido e a criança correu para lhe mostrar o que trazia em meio às palmas curvadas.
— Olha o que eu achei — ele separou os dedos bem devagar, revelando o que havia naquela pequena redoma. Pequenas e finas patas se ergueram para a luz, buscando uma forma fácil de escapar. — Ele se chama Timothy!
— O que temos aqui? Um escaravelho! — o homem pegou o besouro das pequeninas mãos do garoto e o colocou no chão. Enquanto observavam, agachados, as voltas que o escaravelho dava em volta de si mesmo, buscando um caminho p
As convulsões voltaram.Mogli uiva sobre a cama, febril e instável. Seus dedos tremem, seus olhos lacrimejam, seus dentes batem uns conta os outros.É uma guerra.Cerise chora enquanto testa sua temperatura, ela troca os lençóis a cada cinco minutos, e chora enquanto os troca. Ela me pergunta o que fazer...Eu não sei.O garoto que era lobo parece prestes a rebobinar a fita, ele quer voltar à seus pelos negros e unhas afiadas.Eu não sei.Cerise grita, é a sétima vez que o faz. Está desesperada, estou desesperado.As convulsões param. Ele não responde...— Mogli! — é a oitava vez.Mogli uiva, mas ainda não está completo, ainda não voltou ao lobo que era. Ele ainda é um de nós, ainda é um humano. Mas, até quando?
Dedos percorrem meus dedos, braços invadem meus braços, pés caminham com os meus pés.A sinto voltar... Aquela agonia, a dor, aquele outro ser que reside em mim. Está mais forte agora, forte e feroz.Dentes rasgam a pele, unhas arrancam o que está por baixo... Eu preciso pará-lo, preciso continuar assim. Preciso encontrar Joe, preciso entender quem ele é, reter respostas para isso, para quem eu sou, para o que me tornei. Não quero perder-me ainda, não quero perdê-los, Cerise e Angie, não quero ter que deixá-los... Ainda não.As mordidas cessão.Ainda estou aqui, ainda sou o eu com pele e pernas. Mas, até quando?
Ele acordou. Seus olhos cinzentos estão ainda mais nebulosos, sua pele, quase translúcida. Ele estica os braços para as luzes de Natal ao redor da janela do Angie, murmura palavras inaudíveis e sorri.É bom vê-lo em sua carne e humanidade, no entanto, a sensação de que isso está prestes a acabar grita em meus ouvidos, afastando a esperança que ainda deposito nele.Sentando-se, agora, o garoto que era lobo repete a mesma frase para seus próprios dedos:— Volte para casa. Volte para casa...— Ih — Angie se escondeu atrás de mim, fingindo estar assustado com a nova situação do Mogli. — A sanidade dele foi embora e não disse quando volta.— Cala essa boca, Angie! — afastei-me. — Ele pode estar lembrando de alguma coisa. Algo relacionado aquele tal Joe, ou de sua vida antes da "transformação".Angie me seguiu pelo quarto e, quando me sentei na cama, ele finalmente aquietou-se
A dor dos ossos se refazendo, se moldando em outra forma, os pelos surgindo, os cabelos voltando ao interior da pele. Sinto a vida que fiz, a vida que Angel e Cerise fizeram para mim, escorrer por entre meus dedos de transformando em garras.Os olhos chorosos de Cerise e os cheios de medo de Angel me causam calafrios.Estou de volta, de volta ao que sempre fui (ao menos até onde as lembranças me levam). O rosto de Joe se desfazendo em minha mente. Há um outro rosto em meus últimos lampejos, um rosto esculpido em lama e emoldurado em ouro e carvalho.— Adeus... — uma voz sussurra em meus ouvidos, tão real que chego a sentir o calor da respiração eriçar os pelos bem próximos à nuca.Sorriria, se ainda fosse possível.
Dedos agarram meu corpo amolecido, me carregam e levam para onde não consigo ouvir seus soluços e desespero.A humana de cabelos coloridos parece extremamente frágil, pronta para se partir. O vermelho é taciturno, do tipo que fecha os olhos e respira fundo para que as lágrimas não venham, e elas o obedecem meio frustradas.O ar frio que entra por uma pequenina janela me trás odores a muito não sentidos. Cheiro de terra molhada e flores, de fumaça e folhas secas amassadas, cheiro de comida fresca e pássaros que caíram de seus galhos antes do seu primeiro bater de asas, cheiro de pegadas frescas e pelo molhado, cheiro de alcateias afundando na floresta, cheiro de lobos solitários que costumavam ser outra coisa aprisionados em si mesmos.Luzes ao longe me chamam baixinho, meu corpo ainda está amolecido, ao sinto as patas.A porta fora trancada, um choro se perdeu do outro lado.
Com os braços trêmulos, carregamos o lobo para a despensa. Angie havia forrado o chão com uma toalha e guardado o futon para um quando o lobo deixasse de ser lobo.Os olhos do Adeus de acompanharam o movimento de nossas pernas e quadris, enquanto suas patas amolecidas de mantinham paradas entre nossos dedos.Cheguei a pensar em deixá-lo do lado de fora, ele acordaria mais tarde e simplesmente correria para longe. Mas segui os planos de Angie. Segurei firme, o lobo e as lágrimas, e o deixamos na dispensa.— A janela fica aberta, se ele for um lobo por completo, encontrará um jeito de sair, se ainda tiver um pouquinho do nosso Mogli, estará aí amanhã.Angie falava como o vento, em sopros. O rosto inexpressivo, os olhos vazios, os lábios levemente trêmulos.Assim que fechamos a porta, algo dentro de mim estalou, mas foi Angie quem começou a chorar. Minhas lágrimas vieram cinco segundos depois, quando o
Chorei. Algo estava muito errado. Os dedos de Mogli vieram a minha mente, dedos pálidos e veias azuis. Os lábios também, rachados, um pouco cheios e levemente corados. Os cabelos negros escorregando para dentro da banheira enquanto eu os cortava, tentando dar forma, manter tudo na mesma proporção. As laterais ficaram mais baixas do que eu gostaria, e, mesmo curtos, ainda cairiam sobre seus olhos, cinzas, nebulosos, tristes e doces.Estamos perdendo o que fizemos voltar.Não me atropele dessa vez... Talvez, se eu o fizesse, as coisas voltassem ao normal. Eu poderia sair, comprar cervejas e encher o velho cantil de latão com algo ácido, que derretesse a garota como sulfúrico. Poderia ligar o som do Nissan até que os alto-falantes explodissem. Acordaria dois dias depois, com a boca amarga e a visão turva, com fome e mal cheiro. Não lembraria de nada, do CD que havia se repetido até cansar, das danças sobre o sofá, de como a mesa foi parar entre duas ro
Acordei. O rosto amassado contra a porta, os pés descalços e frios, a sonolência ainda mantendo os olhos meio fechados. Cerise estava no corredor, agarrada a um travesseiro e mastigando alguns fios roxos de seu cabelo.Levantei.A porta a minha frente pedia para ser aberta, enquanto meus dedos suplicavam para esperar.Segurei a maçaneta, firme. Respirei fundo. Acalme-se, acalme-se, acalme-se. Girei a maçaneta, os olhos fechados. Acalme-se, acalme-se, acalme-se.Sob as cobertas que Cerise jogou sobre o corpo amolecido e sobre a tolha azul e manchada com todas as cores que já pintamos os cabelos, o vazio sussurrava para mim, dizendo que não havia mais nada a ser feito.