Com os braços trêmulos, carregamos o lobo para a despensa. Angie havia forrado o chão com uma toalha e guardado o futon para um quando o lobo deixasse de ser lobo.
Os olhos do Adeus de acompanharam o movimento de nossas pernas e quadris, enquanto suas patas amolecidas de mantinham paradas entre nossos dedos.
Cheguei a pensar em deixá-lo do lado de fora, ele acordaria mais tarde e simplesmente correria para longe. Mas segui os planos de Angie. Segurei firme, o lobo e as lágrimas, e o deixamos na dispensa.
— A janela fica aberta, se ele for um lobo por completo, encontrará um jeito de sair, se ainda tiver um pouquinho do nosso Mogli, estará aí amanhã.
Angie falava como o vento, em sopros. O rosto inexpressivo, os olhos vazios, os lábios levemente trêmulos.
Assim que fechamos a porta, algo dentro de mim estalou, mas foi Angie quem começou a chorar. Minhas lágrimas vieram cinco segundos depois, quando o
Chorei. Algo estava muito errado. Os dedos de Mogli vieram a minha mente, dedos pálidos e veias azuis. Os lábios também, rachados, um pouco cheios e levemente corados. Os cabelos negros escorregando para dentro da banheira enquanto eu os cortava, tentando dar forma, manter tudo na mesma proporção. As laterais ficaram mais baixas do que eu gostaria, e, mesmo curtos, ainda cairiam sobre seus olhos, cinzas, nebulosos, tristes e doces.Estamos perdendo o que fizemos voltar.Não me atropele dessa vez... Talvez, se eu o fizesse, as coisas voltassem ao normal. Eu poderia sair, comprar cervejas e encher o velho cantil de latão com algo ácido, que derretesse a garota como sulfúrico. Poderia ligar o som do Nissan até que os alto-falantes explodissem. Acordaria dois dias depois, com a boca amarga e a visão turva, com fome e mal cheiro. Não lembraria de nada, do CD que havia se repetido até cansar, das danças sobre o sofá, de como a mesa foi parar entre duas ro
Acordei. O rosto amassado contra a porta, os pés descalços e frios, a sonolência ainda mantendo os olhos meio fechados. Cerise estava no corredor, agarrada a um travesseiro e mastigando alguns fios roxos de seu cabelo.Levantei.A porta a minha frente pedia para ser aberta, enquanto meus dedos suplicavam para esperar.Segurei a maçaneta, firme. Respirei fundo. Acalme-se, acalme-se, acalme-se. Girei a maçaneta, os olhos fechados. Acalme-se, acalme-se, acalme-se.Sob as cobertas que Cerise jogou sobre o corpo amolecido e sobre a tolha azul e manchada com todas as cores que já pintamos os cabelos, o vazio sussurrava para mim, dizendo que não havia mais nada a ser feito.
A casa agora me parece um aglomerado de humanos, tudo cheira a humanos e perigo e mortes que só acontecem dentro de suas mentes pensantes e agressivamente tristes.Por alguma razão, ainda penso como eles, ainda quero agir como me ensinaram e aparar os pelos. Meus humanos possuem nome e um rosto que me faz querer voltar à eles, e isso é ruim, muito, bem pior que folhas e lama agarrados aos pelos.Me despedi da casa, dos humanos e de todas as luzes coloridas. Eles irão ficar bem sem um Mogli — seja lá o que isso for. Irão ficar bem sem mim. Irão ficar bem. Eu sei.
Angie pegou toda a carne congelada que estava em sua geladeira, além de lençóis velhos e uma toalha grossa. Um garoto cheio de piercings e branco como papel trouxe uma caixa com seringas, agulhas e minúsculos vidros de adrenalina e morfina.— O que pretende fazer com isso? — perguntei. Angie não respondeu, invés disso, arrastou um engradado de redbull sobre a mesa. — Angie?Após jogar tudo nos bancos de trás do Nissan e lavar o rosto três vezes em cinco minutos, Angie me jogou a chave de casa.— Você vem? — perguntou já abrindo a porta do carro.— Quer mesmo caçar um lobo por aí? — sentei-me no banco do carona. — Nós não sabemos se ele ainda é ele, se lembra de nós. — Angie rodou a chave na ignição. O motor despertou é ronronou. — E se ele nos atacar?— Não vai.— Tem mesmo certeza disso?— Não, mas... — ele largou o volante e deixou-se afundar no estofa
O dia se esvai no horizonte, manchando as bordas com cores solares enquanto o frio da noite se instala ao redor das minhas patas sujas e úmidas.Sinto o cheiro de bolo e café, de algo podre e de carne fresca. Ouço o barulho do vento chacoalhando os galhos mais altos das árvores e arrastando as folhas mais secas do chão. O assobio dos últimos pássaros, o bater de suas asas e o galopar dos predadores noturnos.As primeiras estrelas brilham fracamente, o grande sol se despede rápido de mais.Estou aqui novamente, floresta. E sinto que jamais sai rei.
Deitei sobre todas as roupas que havia jogado na cama. Alguns botões estão sendo pressionados contra minha pele, sinto o ardor se alastrar.Cerise voltou para casa quando seus pais bateram em minha porta ameaçando derrubá-la.São quase três da manhã, o sono não vem, Cerise não liga, Mogli não uiva lá fora, me convidando para a noite.O frio se arrasta para dentro do quarto usando as brechas da janela mal fechada como um convite.Me sinto perdido, e talvez esteja.Jamais senti isso, essa dor no peito que infla até quase explodir. Talvez seja isso o que chamam de amor, ou o que nomearam loucura.
Precisei ir embora quando meus pais ameaçaram demolir a casa de Angie. Ouvi seus gritos por meia hora e só então me foi permitido deitar.São quase quatro da manhã. O sono não vem, Angie não me manda uma mensagem e o Mogli não uiva lá fora, me convidando para a noite.Me sinto perdida, bem, talvez esteja.Há uma dor no peito, uma dor que infla e segue inflando até que eu sinta que irei explodir.Acho que isso é aquilo que chamam de amor, paixão. Ou talvez, apenas um pouco de loucura.Sinto falta dos olhos cinzentos, das veias azuladas em contraste com a pele pálida, das palavras que demoravam a sair e entre seus finos lábios as vezes azuis, as vezes corados...Talvez eu devesse ter deixado Angie agir como queria, tê-lo deixado trazer o Adeus de volta. Talvez eu devesse ter ido junto, tê-lo ajudado a mobilizar e carregar o lobo para sua casa. Talvez nos pudéssemos trazê-lo de conta,
A chuva veio quando eu já estava fundo na floresta, fundo de mais para voltar para o carro, para casa, para meus lençóis quentes, roupas secas e o aquecedor.O uivar dos lobos parece alto conforme a chuva ganha forças, mas não chegarei nem perto deles se continuar nesse ritmo trepidante. Ou, talvez, os mosquitos persistentes me levem até eles em troca de um pouquinho mais de sangue.Não vejo nada, nem mesmo com a luz da lanterna. Meu celular ficou no carro, portanto não tem como pedir ajuda caso eu me perca — um pouco mais. E acho que ninguém me encontraria antes de ser tarde de mais.— Mogli — chamei. Sei que é inútil, sei que ele é um lobo e que não irá me entender, sei que minha voz está muito fraca, que o frio irá me matar se eu continuar. Mesmo assim, o fiz, repetidas vezes, chamei e clamei e chorei esse nome todas as vezes que achei desnecessário.Encostei-me em uma árvore qualquer no caminho e escorreguei até