A chuva veio quando eu já estava fundo na floresta, fundo de mais para voltar para o carro, para casa, para meus lençóis quentes, roupas secas e o aquecedor.
O uivar dos lobos parece alto conforme a chuva ganha forças, mas não chegarei nem perto deles se continuar nesse ritmo trepidante. Ou, talvez, os mosquitos persistentes me levem até eles em troca de um pouquinho mais de sangue.
Não vejo nada, nem mesmo com a luz da lanterna. Meu celular ficou no carro, portanto não tem como pedir ajuda caso eu me perca — um pouco mais. E acho que ninguém me encontraria antes de ser tarde de mais.
— Mogli — chamei. Sei que é inútil, sei que ele é um lobo e que não irá me entender, sei que minha voz está muito fraca, que o frio irá me matar se eu continuar. Mesmo assim, o fiz, repetidas vezes, chamei e clamei e chorei esse nome todas as vezes que achei desnecessário.
Encostei-me em uma árvore qualquer no caminho e escorreguei até
Três passos e meio e eu afundo novamente, mas esperar não é mais uma opção.Eu poderia ter começado uma busca antes que as chuvas recomeçassem, mas não posso passar mais um inverno pensando em como ele está, se sua nova pele o protege do frio, do vento, dos raios e trovões, da neve e do granizo.Ele sempre fora muito frágil, meio descuidado e extremamente curioso. Essas coisas não são nada boas quando juntas — se fossem, estariam nos menus de sorveterias famosas.Lembro de seus nove anos, de quando ele corria no quintal e sumiu num piscar de olhos. Procuramos em todos os lugares, dentro e fora de casa. Fomos ao seu lugar preferido, o parque com as macieiras e o carrinho de sorvete eternamente estacionado, ao lago com os patos negros e ao estacionamento abandonado. Ele não estava em lugar algum.Quando voltamos, chorosos, arquitetando maneiras de salvá-lo de monstros perversos e árvores gigantes, criando nomes
“Siga em frente”, é o que grita meus ossos enquanto meu corpo se liquefaz ao seu redor.Sou homem e fera, ao mesmo tempo. Inteiro e metade, como um copo meio cheio... Ou meio vazio.A chuva me leva para longe da alcateia. Os lobos uivam, me chamando para a caçada.Há um lua encoberta no céu cinzento, os odores de todos que conheci manchando a floresta com saudades.O homem, sob minha pelagem, pede passagem com seus dedos cumpridos e olhos cansados. Ele me parece triste, como se quisesse desfazer todos os nossos passos até aqui e voltar ao que era. Ele chama por seus pais, por seus amigos, mas não quer abandonar a vida que construiu comigo.Talvez eu deva ir, de uma vez, e deixá-lo ocupar todo esse lugar. Por isso, deixe-me ser a fera até que a chuva desista de cair. Então, será tudo seu... até que me chame ou tra vez.
Longe, os lobos me chamam. Parecem saber o que quero, parecem entender o que sinto. Eles me guiam até a próxima cidade. Me arrastam para a tempestade. Mas... Nenhum deles é o certo.Quando eles se afastam e a chuva torna o chão instável, sigo adiante. Não quero pensar em desistir estando tão longe de casa. Quero voltar apenas se ele vir comigo.Adentro mais um solto, com as botas cheias e as meias molhadas. O soluçar de alguém me desvia e embaraça. Agachado numa poça, com o rosto enfiado entre as mãos, um garoto estremece dentro si próprio.— Por favor... — sussurra baixinho, algo em sua voz e faz querer entender toda a sua história até esse ponto úmido e sujo, mesmo sabendo que não deveria.— Ei, garoto — chamo. — Você está bem?Seu rosto se ergue e ele me encara por alguns segundos. O cabelo, pintado de um vermelho vivo e sanguíneo, escorre por suas bochechas. Demorei um pouco até perceber que são
Sigo o Adeus até o lugar onde o vi pela primeira vez. A casa de Cerise não fica tão longe, assim como todas as outras casas de Astoria. Árvores ao longo do caminho me mantém à penumbra enquanto, trôpego, desmorono de vez em quando.Um garoto caminhou ao meu lado por alguns instantes. Sei que seu sobrenome rima com meleca, mas não sei qual dos dois ele é. Seu irmão tem os mesmos traços exagerados, íris de um verde alaranjado e quadris que são mais femininos do que o normal em homens grandes como esse, com músculos até o cérebro. Ele virou uma esquina tão contrária a minha que me deixou motivado a seguí-lo tamanha minha afeição pelo caminho que agora percorro. Talvez, descobrir que está amando alguém faça com que você sinta mais medo que o normal, tanto medo que prefere não fazê-lo.Todos os romances que li — todos os dois — tiveram esse mesmo efeito lamacento sobre os personagens, onde os pés do amante afundam sem parar e o amado sequer move um dedo
A chuva parou.O sol já acusava a noite de ter lhe roubado algumas de suas horas preciosas. Ainda há nuvens muito escuras no céu, é possível ver algumas estrelas...O carro do papai está encharcado, não só por fora. Minha ideia de perseguir um lobo por entre quilômetros de floresta e ruas lamacentas não foi em nada legal.Vi alguns lobos, sim. Dois deles encararam os faróis da caminhonete como se fossem olhos famintos, então correram e esconderam-se. Nenhum deles era o meu. Todo o resto do percurso foram subidas e descidas, lama e folhas secas, pegadas humanas e humanos molhados.Nem sinal de Mogli.Nem sinal de Adeus.Quando desisti de procurar, estava longe de Astoria. Por alguma razão, após dirigir até a casa de Angie e encontrá-la completamente vazia, pensei que o veria na cidade. Ele sempre diz que os melhores peixes são vendidos à luz da lua, e, às terças-feiras, Angie acorda
São nove da manhã. Os lobos se foram, a chuva se foi, o tempo se foi... Não há rastros, não há pegadas, não há sequer uma pista de onde eles se escondem. Não sobrou nada, nada, nada.É outono, agora. Os dias serão menores, as noites virão mais cedo, e sei que o sol não irá ficar se eu medir que o faça. Talvez tenha mais sorte amanhã, após oito longas horas de sono, ou nove, ou dez, após encontrar um hotel barato e ao menos um prato de comida caseira, com bastante tempero e um grande pedaço de carne mal passada.
Arrastei-me entre as árvores, seguindo, moribundo, o chamado dos lobos. Estamos bem fundo, numa mata densa e, agora, ensolarada. Há cervos pastando em algum lugar à frente, há pássaros cantando enquanto constroem seus ninhos.Os lobos me encaram, alguns mostram seus dentes, outros me cheiram e lambem. Um outro, branco, de olhos claros como água, observa de longe sua matilha recrutar um estranho.Eles vieram caçar.Espalharam e alinharam-se, cada um em seu posto. Precisam manter a calma, precisam saber a hora certa de atacar... O lobo que toma minha pele parece não saber o que fazer. O homem que reside meu corpo está assustado e tão próximo das beiradas que sinto teu cheiro me rodear.Animais menores pulam e rastejam entre nós e nosso objetivo. Algumas lobas os pegam com facilidade e entregam aos filhotes, outras não perdem o foco.O céu é azul como nenhum outro, é como se a primavera estivesse
Os lobos uivam na campina à frente, ouço suas presas chorando antes de receber o fim não tão glorioso. Escondido entre arbustos espinhosos e árvores frondosas, mantenho-me o mais perto possível.Eles são muitos e estão espalhados por toda uma clareira, os filhotes alimentam-se de coelhos e ratos enquanto suas mães observam cada centímetro vago entre eles a floresta densa. Um dos lobos, branco e maior que todos os outros, observa tudo e todos de cima de uma rocha. Este parece o alfa, o manda-chuva. Ele com certeza também é mais rápido e astuto que os demais. Me mover talvez seja um risco muito maior do que imaginei.Nenhum deles parece o meu.Observo a caçada lenta se alastrar por horas e horas. Cada cervo abatido emite um som fúnebre antes de sua partida. Um dos lobos foge, talvez esteja assustado, talvez seja um ômega e tenha sido expulso, talvez tenha sentido um cheiro humano rondando sua família.Mantenho a carab