A chuva parou.
O sol já acusava a noite de ter lhe roubado algumas de suas horas preciosas. Ainda há nuvens muito escuras no céu, é possível ver algumas estrelas...
O carro do papai está encharcado, não só por fora. Minha ideia de perseguir um lobo por entre quilômetros de floresta e ruas lamacentas não foi em nada legal.
Vi alguns lobos, sim. Dois deles encararam os faróis da caminhonete como se fossem olhos famintos, então correram e esconderam-se. Nenhum deles era o meu. Todo o resto do percurso foram subidas e descidas, lama e folhas secas, pegadas humanas e humanos molhados.
Nem sinal de Mogli.
Nem sinal de Adeus.
Quando desisti de procurar, estava longe de Astoria. Por alguma razão, após dirigir até a casa de Angie e encontrá-la completamente vazia, pensei que o veria na cidade. Ele sempre diz que os melhores peixes são vendidos à luz da lua, e, às terças-feiras, Angie acorda
São nove da manhã. Os lobos se foram, a chuva se foi, o tempo se foi... Não há rastros, não há pegadas, não há sequer uma pista de onde eles se escondem. Não sobrou nada, nada, nada.É outono, agora. Os dias serão menores, as noites virão mais cedo, e sei que o sol não irá ficar se eu medir que o faça. Talvez tenha mais sorte amanhã, após oito longas horas de sono, ou nove, ou dez, após encontrar um hotel barato e ao menos um prato de comida caseira, com bastante tempero e um grande pedaço de carne mal passada.
Arrastei-me entre as árvores, seguindo, moribundo, o chamado dos lobos. Estamos bem fundo, numa mata densa e, agora, ensolarada. Há cervos pastando em algum lugar à frente, há pássaros cantando enquanto constroem seus ninhos.Os lobos me encaram, alguns mostram seus dentes, outros me cheiram e lambem. Um outro, branco, de olhos claros como água, observa de longe sua matilha recrutar um estranho.Eles vieram caçar.Espalharam e alinharam-se, cada um em seu posto. Precisam manter a calma, precisam saber a hora certa de atacar... O lobo que toma minha pele parece não saber o que fazer. O homem que reside meu corpo está assustado e tão próximo das beiradas que sinto teu cheiro me rodear.Animais menores pulam e rastejam entre nós e nosso objetivo. Algumas lobas os pegam com facilidade e entregam aos filhotes, outras não perdem o foco.O céu é azul como nenhum outro, é como se a primavera estivesse
Os lobos uivam na campina à frente, ouço suas presas chorando antes de receber o fim não tão glorioso. Escondido entre arbustos espinhosos e árvores frondosas, mantenho-me o mais perto possível.Eles são muitos e estão espalhados por toda uma clareira, os filhotes alimentam-se de coelhos e ratos enquanto suas mães observam cada centímetro vago entre eles a floresta densa. Um dos lobos, branco e maior que todos os outros, observa tudo e todos de cima de uma rocha. Este parece o alfa, o manda-chuva. Ele com certeza também é mais rápido e astuto que os demais. Me mover talvez seja um risco muito maior do que imaginei.Nenhum deles parece o meu.Observo a caçada lenta se alastrar por horas e horas. Cada cervo abatido emite um som fúnebre antes de sua partida. Um dos lobos foge, talvez esteja assustado, talvez seja um ômega e tenha sido expulso, talvez tenha sentido um cheiro humano rondando sua família.Mantenho a carab
Acordo.Seringas injetam um líquido transparente em linhas veias, pessoas caminham de lá para cá, vozes invisíveis sussurram nomes de remédios baratos e reclamam sobre estoques vazios. Crianças choram, velhos resmungam, mães perdem a paciência e pais dizem que vão embora.Cortinas verdes se estendem até o chão, cadeiras desconfortáveis e lençóis cheirando a água sanitária são arrastados pela sala.Alguém pergunta meu nome, não respondo de imediato. Alguém repete a pergunta e se zanga.— Angie — sussurro.Alguém anota e faz mais perguntas, alguém merece um soco na cara e amigos novos.— Dezoito — respondo. Talvez, eu esteja bêbado, ou sob efeito de qualquer outra droga. Talvez, tenha sido sequatrado e essa seja a papelada que tenho que assinar caso queira voltar para casa.Alguém anota e faz outra pergunta.— Tennessee.Talvez, eu te
Mais uma vez, sou arrastado e encapsulado em um carro. Serei levado para longe dos lobos, obrigado a ser quem agora comanda minha pelagem.Mais uma vez, a vista é interrompida por janelas e o tempo acelerado com gasolina.Mais uma vez, conhecerei humanos coloridos, ganharei lar e amigos, então serei levado embora por um outro eu que não suporta vidas assim.Mais uma vez, o mundo chacoalha sob meu corpo, os bancos de couro emitem barulhos estranhos e meus olhos se fecham.Mais uma vez, serei amado e procurado, perseguido e achado, serei morto por mim mesmo e renacerei como outro.Mais uma vez, as árvores rodeiam meu caminho torto e me julgam por estar deixando-as para trás.Mais uma vez, penso como eles.Mais uma vez, odeio e amo... eles.Mais uma vez, sou um deles .Até quando?
Angie ligou para mim às cinco da manhã. Disse que precisava voltar para casa e que não o deixaram dirigir seu carro - que não é seu.Ele me contou toda a história até chegarmos a sua casa. Contou sobre o Adeus e sobre persegui-lo na chuva, sobre o caçador estranho e que o carro pertence a ele, alertou sobre o perigo de haver caçadores em Astoria nesse momento, em como nosso homem-lobo corre perigo e todos sobre todas as formas como ele pode morrer.- O caçador tinha um rifle de caça, parecia o bastante para matar um elefante voador gigante de oito patas, se um desse existir - Angie tem falado sobre uma mitologia própria desde que atendi o celular. Todas as coisas que ele descreve parecem exageradamente piores do que realmente são.Talvez eu deva levá-lo ao hospital outra vez. Ele pode estar sobre efeito de uma droga forte, ou ter batido com a cabeça. Ninguém disse isso quando perguntei por ele na recepção, mas, talvez, pela quantida
Como sempre, Cerise foi a única pessoa a quem pude recorrer para sair do hospital. Era madrugada quando acordei e a enfermeira chata fez questão de manter-se no trabalho até ter alguém, quem quer que fosse, a minha procura.Fui liberado, levado para casa e contestado sobre meu estado. Dizer que sinto algo forte o suficiente a ponto de doer por um cara e já foi um lobo e que, visivelmente, está, ou estava, apaixonado por minha melhor amiga, e vice-versa, não seria a melhor resposta para nenhuma das perguntas que mal merecem atenção.Tranquei-me no quarto até que a voz de Cerise se calasse do outro lado da porta.Talvez estejamos calmos em relação ao Adeus, vendo que há um caçador na cidade. Mas, no momento, nossos próprios problemas egoístas, e ainda assim importantes a sua maneira, tomam conta de nossos corpos e nos impede de agir.Antes de adormecer, ainda pensando em pular a janela com uma mochila nas costas, pron
Adrenalina, foi o que o médico disse quando o garoto foi afastado de mim mais uma vez. Eles tiveram que reanimá-lo ainda na ambulância e quase o perderam três vezes. Se acontecer mais uma vez, talvez, jamais o encontrem.Eles perguntaram sobre o garoto, seu nome e o fazíamos tão longe da cidade. Eu poderia ter dito que ele saiu de casa quando ainda beirava os doze anos de idade, que vagou por esse mundo tênue em busca de uma resposta para sua maldição, eu poderia ter dito que, agora, sei a resposta para tudo, todos os detalhes e erros, todas as tangentes e pausas, poderia dizer que nenhum remédio irá curá-lo, que sua vida pode ter alcançado o ápice, que não adianta fazer perguntas obsoletas pois nada do que eu disser fará sentindo à seus ouvidos ignorantes.— O encontrei — disse com desânimo, segurando os fios de esperança que tentavam rolar para fora dos olhos. —Não sei quem é ou de onde veio.O médico, enfiado em calças azuis tão