Acordo.
Seringas injetam um líquido transparente em linhas veias, pessoas caminham de lá para cá, vozes invisíveis sussurram nomes de remédios baratos e reclamam sobre estoques vazios. Crianças choram, velhos resmungam, mães perdem a paciência e pais dizem que vão embora.
Cortinas verdes se estendem até o chão, cadeiras desconfortáveis e lençóis cheirando a água sanitária são arrastados pela sala.
Alguém pergunta meu nome, não respondo de imediato. Alguém repete a pergunta e se zanga.
— Angie — sussurro.
Alguém anota e faz mais perguntas, alguém merece um soco na cara e amigos novos.
— Dezoito — respondo. Talvez, eu esteja bêbado, ou sob efeito de qualquer outra droga. Talvez, tenha sido sequatrado e essa seja a papelada que tenho que assinar caso queira voltar para casa.
Alguém anota e faz outra pergunta.
— Tennessee.
Talvez, eu te
Mais uma vez, sou arrastado e encapsulado em um carro. Serei levado para longe dos lobos, obrigado a ser quem agora comanda minha pelagem.Mais uma vez, a vista é interrompida por janelas e o tempo acelerado com gasolina.Mais uma vez, conhecerei humanos coloridos, ganharei lar e amigos, então serei levado embora por um outro eu que não suporta vidas assim.Mais uma vez, o mundo chacoalha sob meu corpo, os bancos de couro emitem barulhos estranhos e meus olhos se fecham.Mais uma vez, serei amado e procurado, perseguido e achado, serei morto por mim mesmo e renacerei como outro.Mais uma vez, as árvores rodeiam meu caminho torto e me julgam por estar deixando-as para trás.Mais uma vez, penso como eles.Mais uma vez, odeio e amo... eles.Mais uma vez, sou um deles .Até quando?
Angie ligou para mim às cinco da manhã. Disse que precisava voltar para casa e que não o deixaram dirigir seu carro - que não é seu.Ele me contou toda a história até chegarmos a sua casa. Contou sobre o Adeus e sobre persegui-lo na chuva, sobre o caçador estranho e que o carro pertence a ele, alertou sobre o perigo de haver caçadores em Astoria nesse momento, em como nosso homem-lobo corre perigo e todos sobre todas as formas como ele pode morrer.- O caçador tinha um rifle de caça, parecia o bastante para matar um elefante voador gigante de oito patas, se um desse existir - Angie tem falado sobre uma mitologia própria desde que atendi o celular. Todas as coisas que ele descreve parecem exageradamente piores do que realmente são.Talvez eu deva levá-lo ao hospital outra vez. Ele pode estar sobre efeito de uma droga forte, ou ter batido com a cabeça. Ninguém disse isso quando perguntei por ele na recepção, mas, talvez, pela quantida
Como sempre, Cerise foi a única pessoa a quem pude recorrer para sair do hospital. Era madrugada quando acordei e a enfermeira chata fez questão de manter-se no trabalho até ter alguém, quem quer que fosse, a minha procura.Fui liberado, levado para casa e contestado sobre meu estado. Dizer que sinto algo forte o suficiente a ponto de doer por um cara e já foi um lobo e que, visivelmente, está, ou estava, apaixonado por minha melhor amiga, e vice-versa, não seria a melhor resposta para nenhuma das perguntas que mal merecem atenção.Tranquei-me no quarto até que a voz de Cerise se calasse do outro lado da porta.Talvez estejamos calmos em relação ao Adeus, vendo que há um caçador na cidade. Mas, no momento, nossos próprios problemas egoístas, e ainda assim importantes a sua maneira, tomam conta de nossos corpos e nos impede de agir.Antes de adormecer, ainda pensando em pular a janela com uma mochila nas costas, pron
Adrenalina, foi o que o médico disse quando o garoto foi afastado de mim mais uma vez. Eles tiveram que reanimá-lo ainda na ambulância e quase o perderam três vezes. Se acontecer mais uma vez, talvez, jamais o encontrem.Eles perguntaram sobre o garoto, seu nome e o fazíamos tão longe da cidade. Eu poderia ter dito que ele saiu de casa quando ainda beirava os doze anos de idade, que vagou por esse mundo tênue em busca de uma resposta para sua maldição, eu poderia ter dito que, agora, sei a resposta para tudo, todos os detalhes e erros, todas as tangentes e pausas, poderia dizer que nenhum remédio irá curá-lo, que sua vida pode ter alcançado o ápice, que não adianta fazer perguntas obsoletas pois nada do que eu disser fará sentindo à seus ouvidos ignorantes.— O encontrei — disse com desânimo, segurando os fios de esperança que tentavam rolar para fora dos olhos. —Não sei quem é ou de onde veio.O médico, enfiado em calças azuis tão
O mundo é uma enorme caixa branca, com barulhos estranhos e incômodos. Nesse novo mundo ao qual eu mal pertenço, minhas pálpebras são demasiado pesadas para manter abertas por muito tempo. E quando as fecho, sou arrastado novamente para um passado glorioso com tantos pontos finais que até cansa de tentar entender.Porque preciso ser diferente? Porque preciso ser um animal selvagem?— Está em seu sangue — mamãe diz sorrindo, seus olhos à deriva, afogados em lágrimas sem sentido.— Em meu sangue?— Haverá um dia em que o mundo inteiro será seu quintal, e você será livre para fazer o que quiser. Porém, esse tempo será curto, e, às vezes, doloroso e solitário. Nenhum de nós poderá lhe mostrar o caminho ou te erguer quando cair, você precisará fazer tudo isso sozinho.— Sozinho?— É, sozinho. Seu amor por essa liberdade será gigante, mas sempre estaremos aqui — ela tocou meu peito, sobre
Adormeci ali mesmo, sobre os assentos duros e o ar condicionado congelante. O corpo trêmulo, mais trêmulo de emoção que de frio. Quando me permitiram entrar no quarto, após tantas perguntas que tentei não responder e todas as outras que fiz a mim mesmo, encontrei o garoto caído para fora da cama, com os olhos semiabertos e um sorrindo estranho sobre os lábios sem cor, quase azuis.— Ei! O que está tentando fazer? —perguntei ao levantá-lo. Deitei-o sobre a cama novamente, e o cobri com o lençol, então ele ergueu os braços, como de praxe, e logo os baixou, mantendo-os cruzados sobre o peito. O movimento repentido abalou-me relativamente. É como se ele ainda fosse apenas uma criança, a criança que costumava ser. — Depois de todo o esforço para conseguir encontrá-lo...— Ela me contou tudo — sussurrou em seus devaneios, interrompendo-me.— Ela? — afastei-me devagar.— Minha vida é frágil como uma folha
A decisão de procurar pelo garoto lobo que, talvez, não seja mais um lobo, partiu da Cerise e, como bom amigo e admirador secreto que sou, ajudei do modo que pude.Primeiro, passamos a manhã inteira — e uma boa parte da tarde — procurando na floresta. Mas, nenhum dos lobos que encontramos era o nosso. Com a primeira opção totalmente frustrada, passamos a procurar próximo próximo às casas. Tínhamos certeza de que ele apareceria, se jogaria em frente ao carro e passaria mais dois ou três dias desacordado sobre minha cama, mas... Também falhamos. Com o dia já por clarear outra vez, foi preciso voltar para casa e descansar ao menos um pouco.Após o café, voltamos à busca. O novo trajeto seria o rio Columbia. Tínhamos certeza de que ele não atravessaria a ponte, não enquanto fosse um lobo, então não procuramos muito naquela área. Há as chances de ele ter ido para outra cidade, Warrenton é a mais próxima e Chinook não fica tão longe. Essas são as mais pro
Seja otimista. Sempre, sempre. Não desista, ainda não. Você não pode. Não pense em caçadores, nem em hospitais, sequer cogite em qualquer coisa que rime com necrotério.— Ele ainda é um lobo — sorri repetindo pela décima vez à Angie, que, por sua vez, estava muito sério.— Claro que é.A ideia de sair de Astoria já rondava minha mente desde o princípio. Talvez, o Garoto-Adeus tenha lembrado de casa e esteja a caminho da mesma. Não sabemos onde nem para que lado fica, mas, com certeza, com toda a certeza, a encontramos. Não importa se parece impossível, visto que não temos informação alguma, iremos encontrá-la assim mesmo.Talvez seu pai o esteja procurando também. Uma hora ou outra encontraremos cartazes com um Adeus jovem e feliz, ao lado de pessoas que não conhecemos, um número pomposo como recompensa por informações válidas e outro número, ainda maior, para quem o encontrar e levar para casa.— T