O mundo é uma enorme caixa branca, com barulhos estranhos e incômodos. Nesse novo mundo ao qual eu mal pertenço, minhas pálpebras são demasiado pesadas para manter abertas por muito tempo. E quando as fecho, sou arrastado novamente para um passado glorioso com tantos pontos finais que até cansa de tentar entender.
Porque preciso ser diferente? Porque preciso ser um animal selvagem?
— Está em seu sangue — mamãe diz sorrindo, seus olhos à deriva, afogados em lágrimas sem sentido.
— Em meu sangue?
— Haverá um dia em que o mundo inteiro será seu quintal, e você será livre para fazer o que quiser. Porém, esse tempo será curto, e, às vezes, doloroso e solitário. Nenhum de nós poderá lhe mostrar o caminho ou te erguer quando cair, você precisará fazer tudo isso sozinho.
— Sozinho?
— É, sozinho. Seu amor por essa liberdade será gigante, mas sempre estaremos aqui — ela tocou meu peito, sobre
Adormeci ali mesmo, sobre os assentos duros e o ar condicionado congelante. O corpo trêmulo, mais trêmulo de emoção que de frio. Quando me permitiram entrar no quarto, após tantas perguntas que tentei não responder e todas as outras que fiz a mim mesmo, encontrei o garoto caído para fora da cama, com os olhos semiabertos e um sorrindo estranho sobre os lábios sem cor, quase azuis.— Ei! O que está tentando fazer? —perguntei ao levantá-lo. Deitei-o sobre a cama novamente, e o cobri com o lençol, então ele ergueu os braços, como de praxe, e logo os baixou, mantendo-os cruzados sobre o peito. O movimento repentido abalou-me relativamente. É como se ele ainda fosse apenas uma criança, a criança que costumava ser. — Depois de todo o esforço para conseguir encontrá-lo...— Ela me contou tudo — sussurrou em seus devaneios, interrompendo-me.— Ela? — afastei-me devagar.— Minha vida é frágil como uma folha
A decisão de procurar pelo garoto lobo que, talvez, não seja mais um lobo, partiu da Cerise e, como bom amigo e admirador secreto que sou, ajudei do modo que pude.Primeiro, passamos a manhã inteira — e uma boa parte da tarde — procurando na floresta. Mas, nenhum dos lobos que encontramos era o nosso. Com a primeira opção totalmente frustrada, passamos a procurar próximo próximo às casas. Tínhamos certeza de que ele apareceria, se jogaria em frente ao carro e passaria mais dois ou três dias desacordado sobre minha cama, mas... Também falhamos. Com o dia já por clarear outra vez, foi preciso voltar para casa e descansar ao menos um pouco.Após o café, voltamos à busca. O novo trajeto seria o rio Columbia. Tínhamos certeza de que ele não atravessaria a ponte, não enquanto fosse um lobo, então não procuramos muito naquela área. Há as chances de ele ter ido para outra cidade, Warrenton é a mais próxima e Chinook não fica tão longe. Essas são as mais pro
Seja otimista. Sempre, sempre. Não desista, ainda não. Você não pode. Não pense em caçadores, nem em hospitais, sequer cogite em qualquer coisa que rime com necrotério.— Ele ainda é um lobo — sorri repetindo pela décima vez à Angie, que, por sua vez, estava muito sério.— Claro que é.A ideia de sair de Astoria já rondava minha mente desde o princípio. Talvez, o Garoto-Adeus tenha lembrado de casa e esteja a caminho da mesma. Não sabemos onde nem para que lado fica, mas, com certeza, com toda a certeza, a encontramos. Não importa se parece impossível, visto que não temos informação alguma, iremos encontrá-la assim mesmo.Talvez seu pai o esteja procurando também. Uma hora ou outra encontraremos cartazes com um Adeus jovem e feliz, ao lado de pessoas que não conhecemos, um número pomposo como recompensa por informações válidas e outro número, ainda maior, para quem o encontrar e levar para casa.— T
A enfermeira disse que o estado de saúde dele é estável. Apesar da magreza e a palidez, nada está fora de ordem. Seu nível de glicose está um pouco baixo, mas isso pode ser resolvido em alguns dias, tomando algumas vitaminas cujos nomes foram anotados em um papel amarelo e fino. Me deram fichas para assinar com perguntas que eu deveria mas não respondi. Talvez seja eu quem precisa de um médico especializado e de vitaminas, muitas. Ou só as fichas que não caíram.Nunca fui tão frio quanto nesses últimos dias. Sempre estive otimista, mantendo a procura por meu filho como um caminho qual precisava percorrer até o fim. Agora, quando o possível fim finalmente deu as caras, me sinto mais vazio do que costumava ser. Procurá-lo não era o propósito, a jornada não era o propósito, encontrá-lo, sim, era isso que eu queria, o que eu precisava. E ele está bem ali, me contando sobre as conversas secretas com a mãe, me dizendo que ser uma fera de vez em quando não é uma maldição e
Quando meus olhos abriram, mais tarde. Papai disse que estávamos livres daquela caixa branca, que voltaríamos para casa e que tudo seria como antes. Ele me chamou por meu nome, um que eu ainda não sei pronunciar, segurou minha mão e andamos sem rumo por uma vizinhança de carros coloridos.Papai escolheu um vermelho, disse ter conhecido com garoto com o cabelo daquela mesma cor e me advertiu sobre ter essas ideias punk. Comemos bolo com sorvete sobre uma mesa de plástico num pequeno quarto azul e roxo. Ele disse que odiava aquelas paredes e sorriu muito alto quando se sujou com o sorvete.Ele perguntou sobre a vida de lobo, queria saber como é, se existem palavras mágicas ou só uma metamo... Essa palavra gigante que ele disse significar “mudar de forma”. Eu contei sobre a dor, e a falta de momoria, sobre como meus olhos são melhores e meus ouvidos e o nariz quando estou em minha forma selvagem. Ele disse que eu poderia trabalhar para a polícia e sorr
Já tínhamos desistido há muito tempo, mas continuamos nossa procura. Era desalentador o modo como as pessoas as vezes riam quando um de nós mudava o assunto, de garoto para lobo, em instantes. Mas nos mantinhamos calmos, até que Angie decidiu desabafar na minha – e em sua própria – cara.– Certo – ele parou o carro no acostamento e o motor soltou um ruído de alívio. – Talvez aquele caçador tenha pego o menino-lobo e se mandado daqui. Ou, o meio-lobo tenha ficado assustado com algum disparo e tomou um rumo totalmente diferente dos que seguimos. Não adianta procurar tanto assim por ele. Ele não é ninguém, afinal. Nós só quase o matamos, mas já era, pagamos nossa dívida.Ele bateu as mãos no volante como se este fosse uma bateria improvisada. Seus pés seguiam o mesmo ritmo repleto de desespero disfarçado de aceitação. Angie encarou o retrovisor, parecia pronto para algo grande.– Não vai adiantar nada continuar me iludindo
Não dormi essa noite, embora estivesse sentido meu corpo extremamente cansado. Invés disso, rondei todo o quarto e também os estreitos corredores do pequeno hotel. Eu estava pensando sobre tudo o que o garoto me disse, sobre sua mãe e sobre nós, sobre seu futuro e o futuro que não tive.Quero levá-lo para casa, me assegurar que ele nunca mais saia por aí, encarando suas lutas de cachorro grande. Mas, e a fera? E a grande fera selvagem que vislumbra todo o mundo por trás de seus olhos e as vezes toma esses olhos para si? O que farei quanto a ela? E se ela quiser habitar seu mundo outra vez? E se, dessa vez, ela não quiser ir embora? O que farei? A adestrarei como a um cão e então a deixarei em uma coleira, presa a todo tempo? Talvez eu seja morto numa dessas tentativas, morto por meu filho que também é um cachorro grande.Se tudo o que ele me disse no hospital for verdade, caso ele se transforme outra vez, sua vida não será tão longa. E o que posso f
Papai me levou até a ponte, me deixou ver o rio sob ela. Esta manhã, bem cedo, arrumamos nossas poucas coisas e deixamos o hotel.– Vamos para casa – ele disse, extremamente animado.Eu concordei – apesar de parecer que ainda não devo ir, que há algo que preciso fazer, pessoas a quem preciso dizer adeus. Devem ser apenas os lobos, ou os cervos, ou os coelhos, ou as árvores. Talvez todos eles. Afinal, não recordo de muito mais que isso. O lobo tem roubado a maioria das memórias. Talvez isso o acalme. Mas não tem me deixado muito satisfeito.Há dias em que acordo com medo de esquecer quem sou agora, então recebo lampejos de memórias antigas, que podem pertencer ao lobo, não a mim. São borrões coloridos, manchados de vermelho, olhos felizes, um garoto meio triste que não sabe o que está fazendo e uma garota seguindo seus passos, um pouco atordoada, mas seguindo ainda assim. Não sei seus nomes, eles só falam sobre despedidas e des