Ele abriu os olhos, olhos cinzentos e caídos, um pouco misteriosos, também, e passeou com eles por todo o quarto. Angie estava deitado ao seu lado, ronronando e sussurrando palavras partidas que deveriam ser secretas, e isso lhe pareceu de grande incômodo.
Afastando-se lentamente, o garoto que era lobo acabou encolhido no canto da cama, com umas das pernas quase tocando o chão.
– Quer sair? – levantei-me do tapete e estendi uma mão, rezando baixinho para que ele não a mordesse. – Eu posso te ajudar.
O Mogli olhou para meus dedos e imitou meu movimento, erguendo a mão e oferecendo-a para mim. A segurei, com caltela, não quero um lobo enfurecido me mostrando seus caninos. O ajudei a levantar, mostrando-lhe os movimentos não tão certos que é preciso fazer para levantar-se de uma cama. Uma perna, depois a outra, ele seguiu os passos, e, apoiando-se cabeceira, conseguiu ficar de pé.
As roupas lhe parecem um erro, e
O humano vermelho cortou meus cabelos, disse que quando eu parasse de me embaraçar neles, seria legal deixá-los crescer novamente.Ele me apresentou sua floresta, sua casa e caixas de cereal. Me explicou como fazer fogo com palitos e caixas minúsculos, como fazer a barba mesmo sem ter uma e como usar uma faca para autodefesa.Falou sobre livros, filmes e canais de TV. Mostrou-me seu carro, onde apertar para fazer barulho e onde nunca encostar caso uma senhora lenta esteja atravessando a rua.Explicou a eficácia de alguns remédios, a inutilidade de outros e o que não se fazer com eles em caso de solidão, desejo por morte ou coração partido.Ajudou a amarrar os cadarços e a fazer mágica com eles.Depois, me levou para dar uma volta, mostrou-me os limites da cidade, o rio e os lugares onde encontrar comida boa e barata em tempos de crise.Quando voltamos, a moça estava lá, nos olhando
O céu de Astoria estave livre de nuvens durante toda a noite, como se quisesse estar limpo para dar as boas vindas ao novo humano.Mogli não nos disse nada desde o "maluca" estremecido e arranhado de ontem. Mas, ao menos ele anda agora, come sem enfiar a cara toda no prato, bebe sem por a língua para fora e, embora ainda precise de um pouco de ajuda e monitoramento, é capaz de tomar um banho mais ou menos decente - mesmo que sabonete ainda lhe pareça suculento e sempre acabe com shampoo nas orelhas.Cerise e eu optamos por deixá-lo abrir-se para nós e não fazer perguntas que com certeza o faria sair correndo durante a madrugada. Todavia, ainda me é doloroso ter que tratá-lo como um cãozinho abandonado. Talvez possamos lhe dar um nome, ou um apelido melhor que Mogli - apesar de esse se encaixar perfeitamente, ao menos até que sua memória humana, caso ele tenha mesmo uma, volte. Ele também não parece muito feliz com isso. As vezes, o vejo observar a n
Cerise arrumou a dispensa — que sempre fora vazia — com lençóis amarrados de um jeito cômico, alguns dos quadros da sala e o futon dos tempos das vagas esqueléticas. Deu um jeito de trazer alguns dos móveis velhos do porão sem que sua mãe soubesse, além de coisas inúteis que um ex-lobo jamais usaria, mas dão um ar jovial e vivo ao local.Mogli olhou tudo com olhos gulosos, fez questão de tocar as paredes e tudo o que, agora, lhe pertence.Ele gostou das cortinas de lençol, da janela pequena e baixa, de todos os tons de vermelho e lilás que conseguimos colar naquelas paredes verdes.Bem depois de todas as luzes terem sido apagadas, ouvi passos em frente a porta. Ao abrir, o vi parado lá, em frente a janela da cozinha, olhando para a noite e todas aquelas árvores robustas.Fui a seu encontro.— Não consegue dormir?Ele não respondeu, apenas suspirou um pouco e tocou seu próprio
O garoto que era lobo deitou-se na grama, os olhos sempre voltados para o céu. As nuvens do fim de tarde mancham o horizonte de rosa e laranja enquanto os últimos pássaros se recolhem em silêncio.– Eu queria ter sido um pássaro – disse Angie, abrindo os braços e a chacoalhando os dedos. — Se tivesse o mesmo poder que você e pudesse esconder, escolheria ser um pássaro.– Não é um poder – indagou o garoto, sentando-se.– E o que é? Uma doença? Uma maldição?– Angie, não pergunte essas coisas! – interferi. Ele me ouviu, baixou os braços e encostou-se em uma das pilastra da varanda.– Que tipo de pássaro você seria, Vermelho? – o garoto voltou a deitar-se, sentindo-se incomodado apenas com a abrupta chegada da noite.– Vermelho? – Angie fingiu estar irritado, apontando um de seus dedos pálidos para o Mogli. – É assim que você me chama?Mogli manteve-s
— Papai, papai... — a criança correu por toda a casa, sem cuidado algum, quase se batendo nas pilhas de livros ao longo corredor. Suas mãos estavam apertadas em forma de concha, esticadas para cima para que não batesse em nada.— Na cozinha! — uma voz masculina soou do outro lado da parta.— Pode abrir pra mim? Minhas mãos...O homem robusto, alto e barbudo abriu a porta como foi pedido e a criança correu para lhe mostrar o que trazia em meio às palmas curvadas.— Olha o que eu achei — ele separou os dedos bem devagar, revelando o que havia naquela pequena redoma. Pequenas e finas patas se ergueram para a luz, buscando uma forma fácil de escapar. — Ele se chama Timothy!— O que temos aqui? Um escaravelho! — o homem pegou o besouro das pequeninas mãos do garoto e o colocou no chão. Enquanto observavam, agachados, as voltas que o escaravelho dava em volta de si mesmo, buscando um caminho p
As convulsões voltaram.Mogli uiva sobre a cama, febril e instável. Seus dedos tremem, seus olhos lacrimejam, seus dentes batem uns conta os outros.É uma guerra.Cerise chora enquanto testa sua temperatura, ela troca os lençóis a cada cinco minutos, e chora enquanto os troca. Ela me pergunta o que fazer...Eu não sei.O garoto que era lobo parece prestes a rebobinar a fita, ele quer voltar à seus pelos negros e unhas afiadas.Eu não sei.Cerise grita, é a sétima vez que o faz. Está desesperada, estou desesperado.As convulsões param. Ele não responde...— Mogli! — é a oitava vez.Mogli uiva, mas ainda não está completo, ainda não voltou ao lobo que era. Ele ainda é um de nós, ainda é um humano. Mas, até quando?
Dedos percorrem meus dedos, braços invadem meus braços, pés caminham com os meus pés.A sinto voltar... Aquela agonia, a dor, aquele outro ser que reside em mim. Está mais forte agora, forte e feroz.Dentes rasgam a pele, unhas arrancam o que está por baixo... Eu preciso pará-lo, preciso continuar assim. Preciso encontrar Joe, preciso entender quem ele é, reter respostas para isso, para quem eu sou, para o que me tornei. Não quero perder-me ainda, não quero perdê-los, Cerise e Angie, não quero ter que deixá-los... Ainda não.As mordidas cessão.Ainda estou aqui, ainda sou o eu com pele e pernas. Mas, até quando?
Ele acordou. Seus olhos cinzentos estão ainda mais nebulosos, sua pele, quase translúcida. Ele estica os braços para as luzes de Natal ao redor da janela do Angie, murmura palavras inaudíveis e sorri.É bom vê-lo em sua carne e humanidade, no entanto, a sensação de que isso está prestes a acabar grita em meus ouvidos, afastando a esperança que ainda deposito nele.Sentando-se, agora, o garoto que era lobo repete a mesma frase para seus próprios dedos:— Volte para casa. Volte para casa...— Ih — Angie se escondeu atrás de mim, fingindo estar assustado com a nova situação do Mogli. — A sanidade dele foi embora e não disse quando volta.— Cala essa boca, Angie! — afastei-me. — Ele pode estar lembrando de alguma coisa. Algo relacionado aquele tal Joe, ou de sua vida antes da "transformação".Angie me seguiu pelo quarto e, quando me sentei na cama, ele finalmente aquietou-se