Daniel
Ele encontrava-se no laboratório de pesquisas da Química-USP São Carlos. Esperava pacientemente pela chegada do professor, que imputara em sua vida, o sentido que havia perdido. Seu coração batia forte no peito e suas mãos se encontravam ligeiramente trêmulas. Talvez aquele fosse o momento pelo qual eles tanto esperavam. Foram anos de pesquisas coordenadas pelo professor Alberto Cavendish, porém, com sua participação, apenas oito. E foi nesses oito anos, para sua sorte e deleite, que a substância apresentou eficácia nos pacientes portadores de câncer.
- Bom dia, Daniel – disse o professor Cavendish, adentrando à sala com seu jaleco branco balouçando por entre as pernas.
- Bom dia, professor. E então? – levantou-se aflito, procurando por um resquício de alegria no semblante do velho professor.
- Sinto muito filho, não foi dessa vez. De novo! – respondeu o professor, tirando o jaleco e se jogando na cadeira, diante do olhar perplexo de seu aluno.
- Não é possível. Eles só podem estar de brincadeira – esmurrou a mesa, enquanto apertava os lábios, transformando-os numa linha fina; visivelmente enfastiado.
- Eu meio que já esperava por isso.
- O que eles disseram agora? – a raiva tomou conta de sua voz, no momento em que encarava o professor.
- Sei como você se sente, Daniel. Também tinha esperança de que dessa vez sairíamos vencedores.
- Vamos falar com o Reitor. - disse andando de um lado para outro - Ele conhece o Governador. Com certo empenho político podemos m****r a ANVISA[1] para o inferno.
- Nem mesmo o governador poderá m****r a ANVISA para o inferno, meu filho – informou o velho com um sorriso cansado nos lábios.
- Mas esse ano é um ano de eleições. Além do mais, a FURP[2] fica aqui perto e é destinada à produção e distribuição de medicamentos para o SUS. Se falarmos com o Governador, ele pode autorizar a produção.
- Ainda assim, ele necessitará da aprovação da ANVISA. Precisamos que a Agência encare a Fosfoetanolamina como um coadjuvante para o tratamento e a transforme em remédio. Só que para isso vão requisitar dados clínicos!
- É claro - disse, sarcástico - Dados clínicos, que já fornecemos a eles quando testamos a substância no Hospital de Jaú. Esqueceram? Conveniente, não acha?
- Negam que tenham sido procurados por nós. Conheço bem essa história – revirou os olhos, resignado.
– O que eles pretendem com isso, professor? – Daniel esmurrou a mesa mais uma vez e ergueu as mãos para o alto - Por que se negam a nos ouvir? Não bastou a distribuição das 50 mil cápsulas a mais de mil pessoas por mês? Não bastou a cura dessas pessoas que hoje estão vivas para contar suas histórias?
- Acho que não bastou. E não se esqueça de que fomos proibidos de distribui-las.
- Essa portaria da Universidade é ridícula. Enquanto esperam pela autorização da ANVISA, muitos vão morrer.
- Os pacientes já entraram na justiça; mas, como tudo no Brasil é demorado, sabe-se lá quando poderemos distribui-las novamente. – disse o cansado professor.
- O que a Agência alegou agora?
- O de sempre. Querem documentos e dados clínicos.
- E como podemos fornecer mais dados clínicos se eles não disponibilizam um hospital público onde possamos fazer novos testes, já que os da universidade parece não convencê-los?
- Acho que a verdade é bem mais simples, meu filho. Eles não querem reconhecer a Fosfo, por ela ser apenas uma substância sinalizadora das células cancerosas, fazendo o sistema imunológico matá-las e removê-las.
- O que eles querem? Mágica? Só sintetizamos uma substância que nosso próprio organismo produz, para nos defender das células que se diferenciam. Talvez um dia possamos transformá-la numa substância preventiva.
- Para isso precisaríamos ter parceria com mais médicos, a ajuda de um laboratório, e isso seria um pouco mais complicado.
- Por quê? Podemos levar a Fosfo para o Butantan, ou FIOCruz.
- O Butantan[3] já sabe da existência da Fosfo. Existem mais de dez trabalhos publicados em revistas de Oncologia do mundo, inclusive internacionais, que trabalham juntas com o Instituto.
- E a FIOCruz[4]?
- Eles querem a patente, mas quem me garante que ao obtê-la, não a engavetarão?
- E deixar de obter dinheiro com isso? – perguntou Daniel, sarcástico, ao professor.
- Seria difícil produzir a Fosfo para distribuição, quando nós já informamos a vários meios de comunicação, que temos o produto e o fabricamos a um custo de R$ 0,10 por cápsula. Com certeza não fariam pelo mesmo valor. Há remédios de quimioterapia que acabam com o paciente e que chegam a custar R$ 16.000,00 a caixa.
- E esse funciona! Entendo bem esses meandros... E se nós continuássemos a produzi-la? A Universidade não precisa saber. Podemos dizer que estamos trabalhando em outra coisa.
- Você ainda é muito jovem, meu filho. Também era assim na sua idade. Aos trinta e dois anos somos cheios de sonhos. – sorriu afetuoso - Mas não podemos continuar nosso trabalho. Eu já estou velho e cansado, Daniel. Acho que não vou viver para ver o dia que a Fosfoetanolamina vire um remédio poderoso no combate ao câncer. Meu coração...
- Não diga isso, professor. Nós venceremos. Tenho certeza. A ANVISA acabou de aprovar o registro de um antineoplásico indicado para o tratamento de mulheres pós-menopausa, com câncer de mama inicial, ajudando a reduzir o risco do câncer se alastrar para a outra mama. Além de outro medicamento indicado para o tratamento de pacientes com melanoma metastático.
- Humpf. – sorriu forçado, o professor. – E por que será que aprovaram? Há muito em jogo. Talvez algum dia nós também consigamos, meu filho. Talvez, quando algumas emissoras de TV e alguns médicos deixarem de fazer reportagens mentirosas sobre a Fosfo. Mas eu não os condeno. Eles têm medo.
- Mede de quê? Alguns condenam por serem sionistas farmacêuticos. É claro que vão continuar falando que a Fosfo tem um efeito colateral terrível. Porém a quimioterapia, cujo tratamento é caríssimo, não acaba com o sistema imunológico do paciente? Isso eles não dizem! Antes de ficarem fazendo reportagens falsas, deveriam se importar com o ser humano e não com os lucros da indústria farmacêutica. Isso me enfurece, professor!
- Foi por isso que o escolhi, Daniel. Seu ímpeto, seu desprendimento, será seu maior trunfo, ou sua desgraça. Sua juventude o impele a lutar contra os tiranos, os donos do poder. Nós temos que ter a malícia, meu filho. Comer pelas bordas, como se diz. Não é lutando de forma direta contra eles que conseguiremos alguma coisa.
- E o que fazer então? Temos que incitar a população a se levantar contra a ANVISA, contra essas malditas reportagens mentirosas e contra essa indústria funesta que só pensa em lucro e nada mais. O câncer virou comércio, professor, e é isso o que mais me irrita.
- Eu sei meu filho. Mas precisamos ter cuidado. O Dr. Roberto Menguele, nosso grande parceiro, já foi ameaçado.
- Se todos os médicos fossem como ele, teríamos vencido essa luta – suspirou infeliz - E o que podemos fazer, professor? – sentou-se esgotado.
- Esperar, meu filho. Esperar.
Levantou-se cansado, apertou o ombro do aluno e deixou a sala. Três semanas depois, Daniel recebeu a notícia da morte do velho amigo e professor.
[1] Agência Nacional de Vigilância Sanitária, órgão ligado ao Governo Federal.
[2] Fundação Para o Remédio Popular, ligada ao Governo Estadual.
[3] Instituto Butantan, de São Paulo.
[4] Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro.
Carol Amenina estava sentada em frente a uma mesa de centro, numa sala insípida, penteando os longos cabelos loiros de uma boneca e balbuciando palavras de carinho para ela, quando o jovem doutor entrou e a viu. - Como vai, Carol? – perguntou, enquanto ela brincava e o ignorava. Ele sentou-se no sofá à sua frente, deixando sua prancheta e caneta descansarem a seu lado, enquanto a observava. - Você já deu um nome à sua boneca? A pequenina continuava a brincar, sem se importar com sua presença. - Acho que deveria chamá-la de Carol.- disse médico, observando-a. - Por quê? – enfim, perg
Daniel Após a morte do velho amigo, Daniel encontrava-se perdido naquele laboratório. A presença dele entre aquelas paredes era esmagadora; e saber que nunca mais o veria entrando por aquela porta, o deixava deprimido. As coisas haviam mudado depois que ele se fora. Havia rumores de que alguém o substituiria, e que esse alguém talvez não desse a devida importância ao trabalho que eles haviam desenvolvido juntos. Sentia-se preocupado diante da possibilidade de ver todo o seu trabalho escorrendo pelas mãos, como as substâncias despejadas em um béquer. - Ei Dan! Chegou cedo! – disse seu amigo, Renan, vendo-o fechar rapidamente o caderno que sempre mantinha a seu lado, e guardá-lo na mochila, ao mesmo tempo em que encerrava o cantar
Carol Sentindo-se entediada nas férias, que pareciam nunca ter fim, Carol procura algo para ajudá-la a passar as horas. Enquanto entrava na biblioteca particular de sua mãe, cantarolando baixinho, seu celular tocou. - Ei Carol? O que você está fazendo? – perguntou, eufórica, a garota do outro lado da linha. - Morrendo de tédio. E você? Já voltou para casa? - Ainda não. Por isso te liguei. Estou indo para lá nesse final de semana. Quer ir comigo? Sei que aquela cidade não tem muita coisa para fazer - aliás, aquilo parece uma fazenda gigante e graças a Deus que existe São Carlos – porém, preciso voltar para casa. Minha mãe está surtando, dizendo que não gosto mais deles e todo aquele blá blá blá que voc
DanielDepois algumas cervejas geladas, Daniel deixou Renan em sua casa. A conversa fora difícil. Renan estava contrariado, bem mais do que ele, na verdade. De repente tudo tinha virado de cabeça para baixo e ele ainda não tinha nenhuma ideia do que fazer. Mesmo tendo o amigo ao seu lado, sobreviver a uma briga como aquela, enfrentando as diretrizes da Universidade, ou mesmo os meios de comunição, que insistiam em atacar seu trabalho, não seria uma tarefa fácil. Não gostaria de ver o nome do professor Cavendish jogado na lama, não depois de tudo pelo que passara. Por outro lado, deixar que todos fossem para o inferno lhe soava cada vez mais atraente. Sentimos d&uac
CarolSentada em sua cama, ouvindo uma rádio pela internet, após mais um jantar onde teve que explanar suas atividades para os pais; Carol lembrou-se da foto que achara mais cedo. Tirou os fones de ouvido e abriu o livro onde a havia escondido.Olhou-a demoradamente, analisando o rosto descontraído do rapaz. Ao passar o dedo carinhosamente por sua face, o inesperado aconteceu. Imagens aceleradas surgiram em sua mente, como um trailer de um filme, cujo protagonista era o rapaz. Ela o viu naqueles mesmos degraus do CAASO, sorrindo para a moça escondida atrás da câmera. Viu-o dentro de uma sala estéril com touca e óculos de prot
DanielDaniel estava ansioso, parado em frente à porta do apartamento de Renan, pensando em como o amigo reagiria diante da novidade, quando esta foi aberta antes mesmo de ele tocar a campainha.- Ei, cara! - saudou Renan, enxugando as mãos no guardanapo – Entra, Dan. A Lilian tá fazendo arroz de forno com queijo e carne assada.- Humm. Pelo cheiro deve estar uma delícia.- Isso que ouvi foi um ronco? - sorriu ao ver o embaraço de Daniel. Renan gostava de implicar com o amigo.- Foi tão alto assim? Sabia que devia ter comigo um lanche antes de vir.- Tô brincando cara! Chega aí. - afastou-se da
CarolMamãe! Estou saindo – gritou Carol, da porta da frente da casa.- Aonde você vai menina? – perguntou a mãe da cozinha – Não vai jantar?- Vou ao Café Concórdia com a Pri. Nós queremos nos divertir antes de irmos para a casa dela, no sábado.- Não chega tarde.- Não chego. Tchau.Depois algum bate boca com a mãe, Carol, com a ajuda do pai, a convencera em deixá-la passar um fim de semana na casa de Priscila. Praticamente estava com a mala pronta e ansiosa para a liberdade. Entretanto, mesmo tendo em foco sua partida, não havia se esquecido do rapaz que passara a arreba
DanielAquela manhã de segunda-feira, tão igual a tantas outras, trouxe um gosto amargo na boca de Daniel. Embora estivesse cumprindo a última vontade de seu antigo professor, mentor e amigo, sentia um peso na alma. Ter o direito de exploração e de se tornar detentor de metade de algo que poderia mudar a vida da humanidade, não o fazia se sentir melhor. Sabia que o caminho seria árduo e que teria que enfrentar inúmeras batalhas até ver a Fosfo transformada em um remédio. E ainda tinha o problema com a Universidade, que não fazia nada que a pusesse em maus lençóis com o governo. Olhou pesaroso para o advogado que acabara de