Daniel
Depois algumas cervejas geladas, Daniel deixou Renan em sua casa. A conversa fora difícil. Renan estava contrariado, bem mais do que ele, na verdade. De repente tudo tinha virado de cabeça para baixo e ele ainda não tinha nenhuma ideia do que fazer. Mesmo tendo o amigo ao seu lado, sobreviver a uma briga como aquela, enfrentando as diretrizes da Universidade, ou mesmo os meios de comunição, que insistiam em atacar seu trabalho, não seria uma tarefa fácil. Não gostaria de ver o nome do professor Cavendish jogado na lama, não depois de tudo pelo que passara. Por outro lado, deixar que todos fossem para o inferno lhe soava cada vez mais atraente. Sentimos dúbios o acometiam. Evitava pensar neles, por enquanto. Despedira-se de Renan, observando seus olhos acuados, dizendo o que se é mais fácil quando não se sabe como consolar alguém, ou a si mesmo:
- Vai ficar tudo bem. - sorriu, apertando o ombro do amigo. Sabia que Renan precisava de sua força.
Mas será que tudo ficaria bem? Era o que sua mente questionava. Deitado em sua cama, no apartamento recentemente mobiliado, Daniel ouviu o telefone tocar.
- Sim.
- Daniel Monteiro Novaes? – perguntou a voz neutra e encorpada.
- Ele mesmo. Quem está falando?
- Sou o Doutor Emiliano Rezende, advogado do falecido Professor Cavendish.
- Advogado? – perguntou, sentindo um frio percorrer sua espinha.
- Isso mesmo. Antes de morrer ele me incumbiu de algumas alterações em seu testamento. Podemos marcar uma hora para conversarmos? Segunda de manhã está bom?
- O senhor pode adiantar o assunto? Não fazia ideia de que o professor tinha feito um testamento.
- Não vejo problema, uma vez que a família já está ciente da decisão do professor. Talvez essa informação lhe dê um fim de semana prazeroso.
- Bem que estou precisando. - disse passando a mão pelos cabelos revoltos.
- O professor, antes de morrer, pediu-me para entrar com os papéis para incluí-lo no registro da patente da Fosfoetanolamina. Ele gostaria que o senhor continuasse sua luta, porém, fez uma única exigência. – disse, ouvindo o suspiro forte de Daniel, do outro lado da linha. – O senhor está bem?
- Surpreso. Eu jamais poderia esperar...
- Ele gostava muito do senhor. Bem, como ia dizendo, há uma exigência em seu testamento.
- Acho que posso imaginar qual seja.
- Ele esperava por isso. O senhor jamais poderá passá-la para algum laboratório. O professor sabia que dispõe de todo tempo do mundo, ainda é muito jovem, segundo ele. Tinha esperança de que o senhor, algum dia, consiga fazer da Fosfo um medicamento aceito pela ANVISA. Seu sonho era ver as pessoas usufruindo dela e se curando, sem precisar recorrer a produtos carissimos do mercado. Mas não preciso lhe dizer isso. Sei que o conhecia bem.
- Sim. Eu o conhecia muito bem. Pórem não sei se verei esse dia chegar, doutor, mas juro que farei tudo o que estiver ao meu alcance para cumprir sua última vontade.
- Sei que sim. Espero vê-lo na segunda de manhã. Vai ter que assinar alguns papéis e depois estará livre.
- Como a família reagiu?
- Estão torcendo para que você consiga.
- Obrigado, doutor. Agradeça a família Cavendish por mim, e diga-lhes que darei o meu melhor.
- Até segunda, então.
Daniel desligou o celular chocado. Jamais pensou em fazer parte da patente. Isso mudava toda sua vida, porém, ele sabia que a jornada seria longa. Ter a patente não significava a vitória, pelo contrário, a luta estava apenas começando. Encontraria força para fazer o que precisava ser feito? Deitou-se mais uma vez, porém o sono demorou a chegar.
******
Na manhã seguinte seguiu para o laboratório. O peso da conversa com o advogado não lhe saía da cabeça. Encontrou-se com Renan, entretanto, enquanto não tivesse a plena certeza de como agiria, após a inclusão de seu nome na patente da Fosfo, manter-se-ia calado. Não convinha que a Universidade soubesse. Não ainda. Apenas Renan saberia. Tinha uma ideia de como ele reagia quando soubesse da novidade.
- Ei, Renan – cumprimentou Daniel, juntando-se a ele na bancada.
- E aí, cara. Tá atrasado. De novo - disse Renan, fazendo pilhéria.
- Falou o doutor Todo Certinho. Não era assim que te chamavam na graduação?
Renan entrou na USP quando Daniel estava no último ano da graduação. Viera de uma cidade próxima a São Paulo, depois de dois anos de cursinho. Ficaram amigos logo que o Professor Alberto convidou Renan para auxiliar Daniel no Laboratório.
- Cara! Não sei como você descobriu – Renan fechou a cara para o amigo – Por acaso tá querendo que eu volte a te chamar de Cigarra? – olhou, fingindo sentir raiva, ao ver o sorriso debochado de Daniel - É melhor deixarmos os apelidos pra lá. Esse tempo já passou. Agora você é doutor, e eu tô quase chegando lá.
- Mas aquele tempo despretensioso da graduação era bom, né cara?
- Bom? Pelo que eu soube, durante a graduação, você e seus amigos músicos só queriam saber de tocar em barzinhos e beber cerveja. Na minha graduação eu tive que ralar pra caramba.
- Não tenho culpa se você foi certinho demais. Eu me formei, não me formei? E que mal há em curtir um pouco a vida? - perguntou Daniel sentindo um aperto estranho lhe consumir o peito.
- Você sabe que nunca fui muito de curtir. Sempre tive que me virar para conseguir as coisas.
- Nós também. Tinha dia que tocávamos apenas para defender uma boa comida e bebida de graça.
- E o dinheiro da sua bolsa?
- Não era tanto assim. A gente se ajudava, cara. Quando um tava apertado de grana, quem tinha uns trocados sobrando, emprestava para o outro. Quase sempre não sobrava nada, mas a gente dava um jeito de sobreviver.
- E por onde andam seus amigos de curtição?
- Meus parceiros musicais, você quer dizer? Todos formados e muito bem de vida – sorriu abrindo os braços – Como vê, aproveitamos a vida senhor Todo Certinho. Sem falar das namoradas que arranjávamos. Nossa! Que saudade daquele tempo.
- Não faz tanto tempo assim.
- Não! Só uns seis anos. Mas não é sobre nosso passado que vim lhe falar. Precisamos conversar, só que tem que ser fora daqui.
- Quer jantar em casa? Posso ligar para Lilian e pedir para ela fazer um assado.
- Hum, seria bom. Faz tempo que não como uma comidinha caseira.
- Então tá combinado. A gente se vê à noite. Agora, ao trabalho, Cigarra.
- Não começa, senhor Todo Certinho. Aliás, nem sei o que estamos fazendo aqui.
- Aproveitando enquanto podemos. Semana que vem isso aqui vai virar um inferno. Sabe Deus o que o Dr. Schiavon vai nos fazer estudar.
- Vai ver será alguma planta que aumenta os seios da mulherada.
- Bem, se fosse isso, eu até que gostaria de participar.
- Acho que a Lilian não gostaria que você trabalhasse nisso; já nós, os eternos solteiros...
- Ah, cala a boca, cara!
CarolSentada em sua cama, ouvindo uma rádio pela internet, após mais um jantar onde teve que explanar suas atividades para os pais; Carol lembrou-se da foto que achara mais cedo. Tirou os fones de ouvido e abriu o livro onde a havia escondido.Olhou-a demoradamente, analisando o rosto descontraído do rapaz. Ao passar o dedo carinhosamente por sua face, o inesperado aconteceu. Imagens aceleradas surgiram em sua mente, como um trailer de um filme, cujo protagonista era o rapaz. Ela o viu naqueles mesmos degraus do CAASO, sorrindo para a moça escondida atrás da câmera. Viu-o dentro de uma sala estéril com touca e óculos de prot
DanielDaniel estava ansioso, parado em frente à porta do apartamento de Renan, pensando em como o amigo reagiria diante da novidade, quando esta foi aberta antes mesmo de ele tocar a campainha.- Ei, cara! - saudou Renan, enxugando as mãos no guardanapo – Entra, Dan. A Lilian tá fazendo arroz de forno com queijo e carne assada.- Humm. Pelo cheiro deve estar uma delícia.- Isso que ouvi foi um ronco? - sorriu ao ver o embaraço de Daniel. Renan gostava de implicar com o amigo.- Foi tão alto assim? Sabia que devia ter comigo um lanche antes de vir.- Tô brincando cara! Chega aí. - afastou-se da
CarolMamãe! Estou saindo – gritou Carol, da porta da frente da casa.- Aonde você vai menina? – perguntou a mãe da cozinha – Não vai jantar?- Vou ao Café Concórdia com a Pri. Nós queremos nos divertir antes de irmos para a casa dela, no sábado.- Não chega tarde.- Não chego. Tchau.Depois algum bate boca com a mãe, Carol, com a ajuda do pai, a convencera em deixá-la passar um fim de semana na casa de Priscila. Praticamente estava com a mala pronta e ansiosa para a liberdade. Entretanto, mesmo tendo em foco sua partida, não havia se esquecido do rapaz que passara a arreba
DanielAquela manhã de segunda-feira, tão igual a tantas outras, trouxe um gosto amargo na boca de Daniel. Embora estivesse cumprindo a última vontade de seu antigo professor, mentor e amigo, sentia um peso na alma. Ter o direito de exploração e de se tornar detentor de metade de algo que poderia mudar a vida da humanidade, não o fazia se sentir melhor. Sabia que o caminho seria árduo e que teria que enfrentar inúmeras batalhas até ver a Fosfo transformada em um remédio. E ainda tinha o problema com a Universidade, que não fazia nada que a pusesse em maus lençóis com o governo. Olhou pesaroso para o advogado que acabara de
CarolNaquela noite, deitada em sua cama, Carol sentia-se frustrada. Não esperava ter sucesso em sua empreitada logo de cara, contudo, nutria uma fina esperança de que alguém pudesse dizer que o conhecia, ou que pelo menos se lembrava de Daniel. Será que ele havia desistido do curso? Não é nada incomum os alunos se matricularem num curso, enquanto esperam a lista de aprovação de outras Universidades. Talvez esse fosse o caso do rapaz. Matriculou-se e depois foi embora. Isso explicaria porque ninguém se lembrava dele.Mas então, outro pensamento a atormentou: Se fosse assim, o que uma foto dele estaria fazendo num livro da sua biblioteca
DanielDaniel deixou a sala de reunião com uma raiva incontida. Como pôde ser tão tolo ao deixar Renan levá-lo a uma reunião que, bem lá no fundo, sabia que não iria dar em nada? Ainda teve que aguentar a arrogância do velho, olhando-o por cima dos óculos, como se eles fossem míseras baratas prontas para serem esmagadas. Como odiara cada momento daquilo. Trabalhar com o Professor Alberto o ensinara a ler os meandros das palavras contidas nas bocas dos manipuladores. Odiava ser manipulado. E era exatamente o que o velho Doutor tentara fazer com eles. Sempre fez tudo o que quis e não seria agora que deixaria que lhe dissessem o que deveria fazer. E
DanielDaniel deixou a sala de reunião com uma raiva incontida. Como pôde ser tão tolo ao deixar Renan levá-lo a uma reunião que, bem lá no fundo, sabia que não iria dar em nada? Ainda teve que aguentar a arrogância do velho, olhando-o por cima dos óculos, como se eles fossem míseras baratas prontas para serem esmagadas. Como odiara cada momento daquilo. Trabalhar com o Professor Alberto o ensinara a ler os meandros das palavras contidas nas bocas dos manipuladores. Odiava ser manipulado. E era exatamente o que o velho Doutor tentara fazer com eles. Sempre fez tudo o que quis e não seria agora que deixaria que lhe dissessem o que
DanielCom tantas coisas atormentando sua cabeça, Daniel não sabia se iria ao bar do Béba rever os amigos de faculdade. O pedido de Renan, o jeito como implorou que relevasse a decisão de não aceitar trabalhar naquele maldito laboratório, mexeu com ele. Não queria dizer não ao amigo, mas aquilo não se parecia com ele. Enquanto tomava banho, relembrou o encontro com o Minduim e deixou sua mente vagar para o período de sua vida em que fora mais feliz e descompromissado. Lembrou-se da sensação que sentia ao subir ao palco de alguma pizzaria, ou de algum barzinho, com os amigos e ver as pessoas curtirem seu som. Todos sempre foram como ele.