Daniel
Após a morte do velho amigo, Daniel encontrava-se perdido naquele laboratório. A presença dele entre aquelas paredes era esmagadora; e saber que nunca mais o veria entrando por aquela porta, o deixava deprimido. As coisas haviam mudado depois que ele se fora. Havia rumores de que alguém o substituiria, e que esse alguém talvez não desse a devida importância ao trabalho que eles haviam desenvolvido juntos. Sentia-se preocupado diante da possibilidade de ver todo o seu trabalho escorrendo pelas mãos, como as substâncias despejadas em um béquer.
- Ei Dan! Chegou cedo! – disse seu amigo, Renan, vendo-o fechar rapidamente o caderno que sempre mantinha a seu lado, e guardá-lo na mochila, ao mesmo tempo em que encerrava o cantarolar que saía de sua boca – coisa que sempre fazia quando estava concentrado em algo.
- E aí cara?
- Sabe em que vamos trabalhar hoje? Parece que a Fosfoetanolamina vai ser enterrada para sempre nesse laboratório.
- Por que diz isso? – sentiu o coração pular dentro do peito, sentindo-se um tanto enfastiado.
- Por que o nosso novo orientador vai começar novas pesquisas e não quer nem ouvir falar na Fosfo.
- Quem te disse isso? - perguntou ríspido, sentindo uma pontada na têmpora.
- Tá correndo solto por todo o Campus. Acho que ele não quer correr o risco de comprar nossa briga com a ANVISA e os laboratórios.
- Mais um cretino!
- Se for verdade, o que vamos fazer?
- Não sei. Preciso pensar. - concluiu passando a mão pelos cabelos, encarando Renan com cara de poucos amigos.
- Acho que não podemos fazer nada. A patente pertencia ao Professor Cavendish, e com sua morte...
- Então vai ser assim? Ele morreu e todo o projeto morre com ele?
- Acho que suspiraram aliviados com sua morte – disse Renan, erguendo as sobrancelhas e mordendo o lábio inferior.
- Pode ter certeza que estão aliviados, mas, se depender de mim, não continuarão por muito tempo.
- O que pretende fazer, Dan?
- Ainda não sei. Mas, você está comigo? - perscrutou a face do amigo, sem perceber que havia prendido a respiração.
- Com certeza. Não quero passar a estudar plantas da Amazônia para fazer cosméticos.
- Era isso que eu precisava ouvir, cara. - um meio sorriso desprendido aliviara um pouco a tensão que sentia.
– Se pelo menos os familiares dele continuassem sua luta, poderíamos entrar com uma liminar e continuar produzindo as cápsulas.
- Talvez isso seja possível. Quem sabe?
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Poucas horas depois desse diálogo, todos os pesquisadores do IQ[1] e os bolsistas da FAPESP[2] foram chamados ao Anfiteatro da USP.
- Boa tarde a todos – disse a jovem de saia e blusa plissadas, enquanto ajeitava os óculos, de aros grossos e vermelhos, no nariz empinado. – Gostaria que ouvissem com atenção o nosso renomado Dr. Schiavon. Ele estará assumindo o Laboratório de Química no lugar do nosso querido Professor Alberto. – afastou-se do pódio dando lugar ao referido doutor, mantendo a sala em absoluto silêncio.
- Boa tarde a todos – cumprimentou o homem baixo e magro, com um cavanhaque pontudo, tão grisalho quanto seus cabelos – como explanou com perfeição nossa colega Dra. Lídia, estou aqui para continuar o belíssimo trabalho do Professor Alberto.
Suspiros aliviados foram proferidos, quebrando o silêncio do anfiteatro, arrancando um sorriso discreto da boca do Dr. Schiavon.
- Vejo que estão aliviados. – todos sorriram de forma acolhedora – porém, sinto-me no dever de informá-los que teremos um vasto campo de pesquisa, que tenho certeza, agradará a todos vocês. – Seus olhos percorreram o anfiteatro, enquanto seus braços permaneciam estendidos, apoiando as mãos de dedos finos no pódio, salientando as grossas veias azuis.
- Beleza, professor – alguém gritou do meio do anfiteatro, assobiando em seguida.
- E quanto a Fosfoetanolamina Sintética? – outro aluno se manifestou aflito.
- Eu ia deixar essa questão para o final, porém, como o senhor se adiantou... – continuou com um sorriso discreto nos lábios – Devo informá-los que seguiremos a determinação da Justiça e da Universidade.
- Isso quer dizer que não poderemos mais fabricá-la? Não vamos continuar lutando na Justiça?
- Meu jovem, temos outros grandes projetos para serem pesquisados e tenho certeza de que contaremos com o seu entusiasmo e determinação.
- Mas o que acontecerá ao nosso laboratório? – perguntou Renan, levantando-se inflamado da poltrona. – Todos esses anos de pesquisas e contribuição às pessoas ficarão arquivados?
- Esse foi o excelente trabalho do Professor Alberto, porém, como deve saber, temos normas a seguir. Enquanto a justiça não determinar como serão os testes, se é que vai determinar algum dia, manteremos o projeto suspenso.
- Mas isso é errado. Milhares de pessoas devem ser beneficiadas com essa descoberta. – continuou Renan, enquanto Daniel permanecia calado ao seu lado.
- Senhor... – esperou o Doutor Schiavon.
- Meu nome é Renan. Eu era assistente direto do professor Alberto junto com meu colega aqui – apontou desafiadoramente para o amigo – Daniel. Trabalhamos com afinco na Fosfo e estamos dispostos a continuar a luta do Cavendish, custe o que custar.
- Isso não será mais possível, como já deve saber – falou de forma impetuosa, encerrando o assunto – Começaremos na próxima semana. Até lá desejo a todos um ótimo final de semana.
O Doutor Schiavon deixou o anfiteatro junto com a Doutora Lídia, debaixo do clangor de vozes alteradas.
- Eu sabia que isso ia acontecer, Dan.
- Você deveria ter se mantido calado, véio. Agora ele vai tornar sua vida um inferno.
- Você deveria ter me ajudado, e não ficar sentado e mudo, como ficou.
- Eu disse a você que estou pensando no que fazer. Somos apenas dois contra todos. Se quisermos sucesso em nossa empreitada deveremos usar a cabeça e não nossas emoções.
- Não sei como pode se manter tão frio.
- Como disse, Renan, preciso manter as emoções de lado e usar somente a razão. Vamos embora daqui. - declarou, embora sentisse o sangue ferver em suas veias.
- Merda, cara! Eu devia ter ficado de boca fechada.
- Não esquenta. Vamo toma uma no bar do Escobar.
- Não, cara! Eu acho que vou pra casa. Preciso esfriar a cabeça.
- E tem algo melhor do que uma cerveja gelada? – sorriu Daniel, apertando o ombro do amigo cabisbaixo. – Vão bora, cara. Eu pago.
[1] Instituto de Química da USP São Carlos.
[2] Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Carol Sentindo-se entediada nas férias, que pareciam nunca ter fim, Carol procura algo para ajudá-la a passar as horas. Enquanto entrava na biblioteca particular de sua mãe, cantarolando baixinho, seu celular tocou. - Ei Carol? O que você está fazendo? – perguntou, eufórica, a garota do outro lado da linha. - Morrendo de tédio. E você? Já voltou para casa? - Ainda não. Por isso te liguei. Estou indo para lá nesse final de semana. Quer ir comigo? Sei que aquela cidade não tem muita coisa para fazer - aliás, aquilo parece uma fazenda gigante e graças a Deus que existe São Carlos – porém, preciso voltar para casa. Minha mãe está surtando, dizendo que não gosto mais deles e todo aquele blá blá blá que voc
DanielDepois algumas cervejas geladas, Daniel deixou Renan em sua casa. A conversa fora difícil. Renan estava contrariado, bem mais do que ele, na verdade. De repente tudo tinha virado de cabeça para baixo e ele ainda não tinha nenhuma ideia do que fazer. Mesmo tendo o amigo ao seu lado, sobreviver a uma briga como aquela, enfrentando as diretrizes da Universidade, ou mesmo os meios de comunição, que insistiam em atacar seu trabalho, não seria uma tarefa fácil. Não gostaria de ver o nome do professor Cavendish jogado na lama, não depois de tudo pelo que passara. Por outro lado, deixar que todos fossem para o inferno lhe soava cada vez mais atraente. Sentimos d&uac
CarolSentada em sua cama, ouvindo uma rádio pela internet, após mais um jantar onde teve que explanar suas atividades para os pais; Carol lembrou-se da foto que achara mais cedo. Tirou os fones de ouvido e abriu o livro onde a havia escondido.Olhou-a demoradamente, analisando o rosto descontraído do rapaz. Ao passar o dedo carinhosamente por sua face, o inesperado aconteceu. Imagens aceleradas surgiram em sua mente, como um trailer de um filme, cujo protagonista era o rapaz. Ela o viu naqueles mesmos degraus do CAASO, sorrindo para a moça escondida atrás da câmera. Viu-o dentro de uma sala estéril com touca e óculos de prot
DanielDaniel estava ansioso, parado em frente à porta do apartamento de Renan, pensando em como o amigo reagiria diante da novidade, quando esta foi aberta antes mesmo de ele tocar a campainha.- Ei, cara! - saudou Renan, enxugando as mãos no guardanapo – Entra, Dan. A Lilian tá fazendo arroz de forno com queijo e carne assada.- Humm. Pelo cheiro deve estar uma delícia.- Isso que ouvi foi um ronco? - sorriu ao ver o embaraço de Daniel. Renan gostava de implicar com o amigo.- Foi tão alto assim? Sabia que devia ter comigo um lanche antes de vir.- Tô brincando cara! Chega aí. - afastou-se da
CarolMamãe! Estou saindo – gritou Carol, da porta da frente da casa.- Aonde você vai menina? – perguntou a mãe da cozinha – Não vai jantar?- Vou ao Café Concórdia com a Pri. Nós queremos nos divertir antes de irmos para a casa dela, no sábado.- Não chega tarde.- Não chego. Tchau.Depois algum bate boca com a mãe, Carol, com a ajuda do pai, a convencera em deixá-la passar um fim de semana na casa de Priscila. Praticamente estava com a mala pronta e ansiosa para a liberdade. Entretanto, mesmo tendo em foco sua partida, não havia se esquecido do rapaz que passara a arreba
DanielAquela manhã de segunda-feira, tão igual a tantas outras, trouxe um gosto amargo na boca de Daniel. Embora estivesse cumprindo a última vontade de seu antigo professor, mentor e amigo, sentia um peso na alma. Ter o direito de exploração e de se tornar detentor de metade de algo que poderia mudar a vida da humanidade, não o fazia se sentir melhor. Sabia que o caminho seria árduo e que teria que enfrentar inúmeras batalhas até ver a Fosfo transformada em um remédio. E ainda tinha o problema com a Universidade, que não fazia nada que a pusesse em maus lençóis com o governo. Olhou pesaroso para o advogado que acabara de
CarolNaquela noite, deitada em sua cama, Carol sentia-se frustrada. Não esperava ter sucesso em sua empreitada logo de cara, contudo, nutria uma fina esperança de que alguém pudesse dizer que o conhecia, ou que pelo menos se lembrava de Daniel. Será que ele havia desistido do curso? Não é nada incomum os alunos se matricularem num curso, enquanto esperam a lista de aprovação de outras Universidades. Talvez esse fosse o caso do rapaz. Matriculou-se e depois foi embora. Isso explicaria porque ninguém se lembrava dele.Mas então, outro pensamento a atormentou: Se fosse assim, o que uma foto dele estaria fazendo num livro da sua biblioteca
DanielDaniel deixou a sala de reunião com uma raiva incontida. Como pôde ser tão tolo ao deixar Renan levá-lo a uma reunião que, bem lá no fundo, sabia que não iria dar em nada? Ainda teve que aguentar a arrogância do velho, olhando-o por cima dos óculos, como se eles fossem míseras baratas prontas para serem esmagadas. Como odiara cada momento daquilo. Trabalhar com o Professor Alberto o ensinara a ler os meandros das palavras contidas nas bocas dos manipuladores. Odiava ser manipulado. E era exatamente o que o velho Doutor tentara fazer com eles. Sempre fez tudo o que quis e não seria agora que deixaria que lhe dissessem o que deveria fazer. E