Capitulo 5 - Memórias

- Eu ainda não acredito que você chamou o carro dele de lataria – Tori fala e começa a rir de novo, o que é um pequeno problema para mim, porque toda vez que ela volta a esse assunto eu entorno mais um shot.... eu já estava no quinto.

A memória dos carros freando e eu caindo de bunda no chão só faz uma pequena cosquinha na minha dignidade, agora o fato de xingar o meu chefe no meio do estacionamento meio que dá um belo murro me colocando no chão de novo.

Mas caramba, eu não tenho culpa sabe? Foi sem querer, e ele tinha que ter noção disso. Aquele babaca...Droga, xinguei ele de novo.

- Eu vou ser demitida mais rápido que eu pensei – eu resmungo por sobre o som do pub.

- Não vai nada, vai mostrar serviço e pronto – Jasper apoia o braço em meus ombros e eu apoio minha cabeça em seu peito – Ele vai esquecer isso rapidinho

- Está usando o meu perfume? De novo? – eu falo e ele me empurra

- Seu perfume é muito bom

- Então deveria comprar um seu – ele mostra a língua e eu reviro os olhos – Meu perfume não é óleo corporal Jas, caramba, você passa em partes que nem são necessárias

- Quem disse que não são? – ele pisca para mim e vejo Tori se engasgando com a bebida

- Me poupe os detalhes – eu falo e bebo um pouco do meu drink. Aproveito as conversas safadas de Tori com Jasper e observo ao redor.

O pub Cavendish é um dos meus lugares favoritos para esquecer por poucas horas o que eu tenho que fazer no outro dia. O lugar é pequeno e aconchegante, a música nunca está alta demais e a comida é excelente.

As paredes são cobertas de instrumentos musicais antigos com algumas fotografias de personagens famosos que de alguma forma contribuíram para a construção do pub, seja direta ou indiretamente. Mas a minha parte favorita? As canções que eram tocadas.

Você simplesmente poderia ir até o jukebox e escolher aquela que mais te chamasse atenção, como agora. Vi o momento em que o casal se aproximou da máquina e inseriu o dinheiro, a música começou a tocar e a voz suave de James Arthur começou a ser ouvida.

Naked.

Bela escolha, eu penso com meus botões. Suspiro e tomo o restante do meu drink pensando o que eu deveria fazer na segunda feira, já que obviamente hoje não contava, porque passamos somente alguns minutos na presença um do outro antes que ele se levantasse e saísse pela porta sem nem olhar duas vezes para a minha mesa, isso fez com que eu corresse para fora do prédio o mais rápido que eu podia.

- Kallie? – pisco os olhos encontrando o olhar confuso de Tori – Ouviu o que eu disse?

- Não, desculpe

- Tudo bem, eu perguntei se você poderia fazer um favor para mim

- Claro, manda – Pego o copo de Jasper e bebo um gole antes que ele volte o olhar para mim e me belisque com força. Dou de ombros e sorrio para Tori esperando o pedido.

- Sabe aquele jantar? O...

- Não – eu respondo negando com a cabeça veementemente

- Mas você nem sabe o que eu ia pedir

- Sei sim, você ia pedir para que eu fosse naquele jantar besta dos seus pais em que seu ex-marido sempre comparece.

- Tá, era isso que eu ia pedir. Mas dessa vez ele disse que não ia, ele falou que iria viajar

- Não sei como você ainda acredita nele, está obvio que ele vai estar lá assim como esteve nos outros – Ela abre a boca para discutir, mas eu a interrompo levantando a mão - E aí vocês começam a brigar, seus pais me puxam para a briga, eu tento interromper e no final vocês acabam indo para o mesmo lugar e para a mesma cama se me permite dizer.

Jasper engasga com a bebida e começa a tossir enquanto Tori me mostra o dedo do meio, mas posso ver muito bem que ela sabe que é verdade. O relacionamento dela com o ex-marido John, era no mínimo hilário.

Eles se separaram quatro anos depois de se casarem, ele queria a liberdade de antes e ela queria encontrar o marido em casa quando chegasse, isso não deu certo, obviamente. Meses depois da separação, os pais fizeram o precioso jantar de todo ano, com algumas pessoas intimas e fofoqueiras, então John chegou como se fosse uma coisa normal e tudo foi aos ares. Tori começou a conversar bastante com um vizinho conhecido e John não gostou e tudo virou no máximo uma tragedia digna de um Oscar.

E advinha quem estava no meio da bagunça?

Acertou, eu estava. E só no dia seguinte que eu fiquei sabendo que os dois tinham ido juntos para casa, e isso meio que se repetiu durante os anos seguintes, nos últimos três anos exatamente. Mas dessa vez eu não iria, de jeito nenhum.

- E se eu prometer que eu não vou embora com ele? – Tori pergunta e eu volto o olhar para ela, negando, desacreditada.

- Amiga, o problema não está no dormir com ele, na verdade eu acho realmente que vocês deveriam ficar juntos de uma vez. O problema está nas brigas que nunca se resolvem, e seus pais sempre ficam chateados e adivinha quem escuta todos os conselhos que você deveria escutar?

- Eu sei, foi mal – ela suspira dentro do copo antes de entornar a bebida bebendo em um só gole, ela olha para Jasper e uma luz se acende nos olhos, opa, novo alvo – Jasper você bem que poderia ir, não é?

- Foi mal gatinha, vou estar trabalhando

- Eu nem disse a data – Tori pergunta abismada

- Ah bom, que dia é?

- 12 de junho

- Vou estar trabalhando – ele responde cinicamente e eu caio na gargalhada, Tori resmunga um palavrão e se encosta na cadeira emburrada.

- Não fica assim, é seu aniversário e esse jantar só vai ser daqui a três meses. Tempo o suficiente para encontrar um acompanhante – dou um sorriso malicioso e ela revira os olhos.

- Como se fosse fácil

- Não é, mas vamos dar uma ajudinha – Jasper fala e pega as nossas mãos nos puxando para cima e em direção a pista de dança quando escuta os primeiros acordes de Love Myself. Dançamos, rimos, cantamos e fizemos poses exageradas para marcar o aniversário de Tori nas fotos, e por um momento esqueço com o que eu tenho que lidar.

........................

A clinica St. Antony fica a uma hora de trem, o que me dá algumas horas de sono pela manhã e depois do almoço pego o primeiro trem e sigo em direção a clínica. Pesco o livro da bolsa e começo a ler sobre as aventuras dos irmãos Pevensie antes que acabe quebrando minha pulseira de tanto rodeá-la no braço.

Uma hora depois e cinco minutos de uma caminhada calma pelas ruas, eu chego à clínica. Steff, a enfermeira chefe sorri quando me vê chegando e acena para mim de longe, aceno de volta e sigo pelo corredor entrando no salão principal.

Hoje a área está iluminada e o som hesitante das notas chegam aos meus ouvidos me tirando um sorriso, dou alguns passos vendo Bianca do lado de uma mulher mais velha, a última está franzindo a testa para as teclas e tocando cada uma delas como se fosse algo novo, algo curioso.

- Boa tarde – eu falo baixinho e recebo um sorriso de Bianca e um olhar confuso de Melina – Como estão?

- Estamos muito bem, não é Mel?

Ela olha para mim e depois de volta para o piano, suspiro baixinho desanimada e Bianca se levanta vindo até mim.

- Vou deixar vocês a sós, estou na outra sala

- Obrigada

Ela acena dispensando o agradecimento e eu vou até o piano de cauda longa colocando a bolsa em cima dele. Fico observando-a de longe sem querer impor nada enquanto ela continua dedilhando os dedos, como se estivesse procurando algo.

- Não sei como fazer isso – ela fala finalmente e eu pisco os olhos contendo as lágrimas

- Como fazer o que?

- Tocar

Ela diz isso com tanta tristeza que meu coração vira uma pequena bola de papel, amassada, frágil...tão frágil. Engulo o caroço que teima em aparecer em minha garganta e me aproximo hesitante.

- Posso ajudar?

- Como? – Pois é vovó, como? Como eu posso te tirar dessa?

- Eu sei tocar um pouco, talvez se me vê fazendo consiga tocar

Vovó olha para mim desconfiada, mas assente concordando, ela se afasta alguns milímetros para a direita e eu me sento, tomando o cuidado de não a assustar. Arqueio a coluna e puxo uma respiração antes de colocar minhas mãos por sobre o teclado, e a partir daí é só eu, a vovó e a música. Como antes.

Dedilho os primeiros acordes da nossa música favorita, e Nocturne n° 2 de Chopin ressoa pela sala, repercutindo em todos os lugares inclusive e principalmente em meu coração.

Toco

Crio

Exponho

Relembro

Aceito

Demonstro, e continuo tocando por segundos, por minutos, por horas, até que os últimos acordes acabem e meus dedos toquem as últimas teclas e só aí eu olho para ela, e vejo seu rosto marcado pelas lágrimas derramadas em silencio.

- Minha Kallie, minha pequena musa

As primeiras lágrimas caem dos meus olhos enquanto eu me aproximo de vovó e a abraço com força, com saudade. Meus soluços ficam presos em meu corpo e ela me aperta ao seu encontro, me puxando para mais perto.

- Sinto saudades vovó

- Você é o começo, o meio e o fim – ela se afasta só o suficiente para me olhar e enxugar minhas lágrimas com os dedos – Você é a minha melhor melodia Kallie.

Encosto a minha bochecha em sua mão e fecho os olhos inspirando seu perfume doce, me permitindo pensar só por alguns minutos que aquilo é minha realidade, ter ela ainda perto de mim, sussurrando todo o tempo o quanto eu era forte, o quanto me amava. Porque era isso que ela queria dizer, eu era sua melhor melodia e ela era a minha, parte uma da outra. Beijo sua mão e me afasto sabendo que nosso momento estava acabando, rápido demais, passageiro.

Dou um sorriso e me afasto quando vejo seu olhar confuso aparecer de leve, ela pisca lentamente eu olho para o piano como se tivesse acabado de tocar.

- Desculpe, eu.... – Ela para no meio do caminho e eu me viro para ela enxugando os resquícios das lágrimas, ela olha ao redor e para em mim perto do piano – Nós conhecemos?

- Não, eu estava de passagem e vi a senhora tocando

- Eu estava tocando? Não me lembro disso – ela lança um olhar para a porta antes de voltar para o piano

- Estava sim, toca muitíssimo bem. A propósito, meu nome é Kalliope – estendo a mão e ela a pega apertando de leve – é Melina, não é?

- Sim, minha filha me chama de Mel, é o doce favorito dela – engulo em seco e pigarreio antes de me levantar devagar, mas paro quando ela me chama a atenção – Sabia que você tem o nome de uma das nove musas?

- Sabia sim, minha avó que escolheu o nome

- Verdade? – aceno afirmando e ela sorri gentilmente – Conhece a história? Dos dons?

Por dentro estou gritando que sim, estou lembrando das várias noites em que ela sentava comigo na cama e contava de novo e de novo, enquanto eu pedisse, com uma xicara de chocolate quente e vários biscoitos doces. Mas só o que eu faço é negar com a cabeça, e me acomodar no banquinho, animada, esperando a história. Então ela o faz, ela conta nos mínimos detalhes, e eu sorrio nos mesmos momentos, aproveitando esses poucos segundos.

E só quando ela fala que tem de buscar a filha Evie na escola é que saio da sala e passo pelas enfermeiras me olhando com simpatia no rosto, mas eu sorrio, eu dou tchau, eu sigo em frente.

As lágrimas só chegam horas depois, no meu quarto, debaixo dos lençóis.

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