Capítulo 3

Sim.

            Sem dúvida ela era bonita.

            Sentado sobre o pequeno muro da estebaria, Gavin analisava a foto que tinha nas mãos. Claro que seu maior foco era a sobrinha, aquela linda neném que ― com sorte ― muito em breve estaria sob seus cuidados, mas não podia ignorar a bela mulher que a sustentava nos braços.

            O detetive a tinha fotografado de cima, o que possibilitava ver perfeitamente o rosto do neném, contudo, também era possível distinguir perfeitamente o tom castanho mel de seu cabelo, o tom claro de sua pele, que fazia com que ela parecesse um pêssego macio, e os olhos ― desses ele se lembrava muito bem, por causa do tom inigualável que ficava entre o verde e o amendoado ― estavam voltados para baixo, como se sua atenção pertencesse totalmente ao bebê.

            ― Hummm, jeitosinha, hein!

            Tanto o tom de voz quanto o comentário machista e maldoso só poderiam pertencer a uma pessoa, é claro.

            Blake Smithson e Gavin eram amigos desde a infância. Ou melhor, Gavin sequer recordava de ser criança sem tê-lo por perto. Apesar de terem personalidades completamente diferentes, mesmo na época em que eram meninos, a amizade entre os dois era verdadeira. Desde pequeno, Gavin sempre foi mais quieto, calado, observador, enquanto Blake era o rei das traquinagens. Infernizava a vida dos pais e das irmãs, e muitas vezes colocava o amigo em problemas.

            E ao vê-lo falar daquela forma, percebeu que, por mais que tivessem envelhecido, Blake não tinha mudado muita coisa. Claro que o "jeitosinha" fora proferido para se referir a Meredith, não a Madeline.

            ― Quem é essa mulher, hein? Namorada nova?

            Com uma expressão de desapontamento, Gavin olhou para Blake.

            ― O importante da foto não é a mulher, mas a minha sobrinha, Madeline.

            ― Ah, então essa é a filhinha de Steve? Que bonitinha! ― ao menos ele sabia ser um pouco menos inconveniente. ― Mas você há de convir que a garota também é uma gata, hein?

            Ou talvez ele nunca deixasse de ser um mala...

            ― A garota é problema, Blake. É a irmã de Mallory, tia da criança.

            ― Ah, agora faz sentido. Mallory era uma gata também.

            ― Como pode falar assim de uma garota que já está morta? ― Gavin indignou-se.

            ― Ué, mas eu fiz um elogio; não desmereci a defunta ― disse, sem nenhum respeito. Gavin decidiu ignorar o comentáro, como já tinha feito muitas vezes.

            ― Acabei de conversar com o Dr. Lee...

            ― Ah, ele é ótimo. Garanto que a neném vai estar aqui com vocês antes que consiga comprar o berço!

            ― É, mas não queremos fazer nada sem pensar. Não pretendo tirar a criança de Meredith. Ela também tem direitos.

            Com isso, Blake riu.

            ― Do que está rindo? ― Gavin indagou sem entender nada.

            ― Ah, fala sério, Gav! Se fosse um tio ao invés de uma tia gata, você não estaria nem ai para os sentimentos do coitado. No fundo, no fundo, você é igual a mim ― ao dizer isso, Blake deu um soquinho camarada no ombro de Gavin.

            ― Não, nós somos completamente diferentes. Eu faria a mesma coisa se fosse um homem, um velho ou um alienígena. Além do mais, a ideia de tentar resolver tudo de forma civilizada foi tanto minha quanto da minha mãe. E garanto que a Sra. Randall não está atraída por Meredith Hart.

            ― Tá, tudo bem... ― Blake se deu por vencido. ― Mas o que vocês pretendem fazer? Não disse que a mulher está irredutível?

            ― É, a princípio sim. Quero ao menos conversar com ela. Acho que posso fazê-la ver que se deixar Maddy conosco será melhor para todo mundo. Vou deixar claro também que não vamos proibir que ela veja a menina... que ela sempre será bem-vinda na criação da sobrinha.

            ― Sabe o que eu acho? Que você deveria levá-la para cama. Ia conseguir o que quisesse dela...

            ― Pelo amor de Deus, Blake! ― irritado, Gavin desceu do muro. ― Eu não sei por que ainda te dou ouvidos!

            E assim, ele se afastou. Realmente muitas vezes se perguntava o que ainda o prendia àquela amizade.

            Vai ver era carma...

***

            Era bom chegar em casa um pouco mais cedo para variar. Normalmente, seu segundo emprego, de garçonete, exigia que permanecesse no restaurante até quase dez da noite, mas, para sua sorte, era aniversário do dono, e ele liberou todo mundo, fechando o estabelecimento para que pudesse comemorar com a família.

            Não era um patrão ruim; apenas não tolerava atrasos, faltas ou solicitações para sair mais cedo. E Meredith estava estrapolando um pouco no limite do que ele aceitava, tudo por causa de Maddy.

            Mas valia a pena. Principalmente quando podia chegar mais cedo, com o dia ainda claro, e ver a carinha linda de sua sobrinha antes de dormir.

            Tinha dias que sequer conseguia brincar com Maddy. Saía cedo, antes que pudesse vê-la de olhinhos abertos, e quando chegava ela já estava dormindo. Não podia negar que ela ser um neném calmo era uma bênção, pois podia descansar sempre que chegava muito cansada ― o que era comum depois de trabalhar de 9 às 14 em um consultório médico e de 16 às 22 em um restaurante bem movimentado. Algumas vezes precisava acordar de madrugada para atender a um chamado choroso, mas nada que durasse uma noite inteira. Era como se Maddy adivinhasse que precisava ser comportada para poupar a saúde de sua tia.

            Naquele dia, porém, chegou em casa às quatro da tarde e pôde liberar Jennifer de cuidar do neném por mais algumas horas. Além disso, pôde se dar ao luxo de sentar-se na cadeirinha de balanço de segunda mão que comprara de presente para Mallory e segurar sua sobrinha no colo.

            Por mais que já convivesse com Maddy há quase quatro meses, podia contar nos dedos quantas oportunidades teve de ficar com ela daquela forma, sem que o tempo estivesse contra elas. Sempre estava na correria para sair de casa ou para colocá-la para dormir, a não ser nos finais de semana, mas, pelo que se lembrava, era a primeira vez que olhava com tanta atenção para seu rostinho.

            Havia muitos traços de Mallory nela: os olhos azuis grandes, a boquinha em forma de coração e as bochechas rosadas. Contudo, infelizmente, a menina também fora agraciada com traços do pai. Nem mesmo Meredith tinha coragem de negar que se tratava de um rapaz muito bonito. E Maddy tinha herdado o cabelo castanho ― pelo que ela podia ver nos poucos fios que cobriam sua cabecinha ―, o nariz pequeno e arrebitado, além de outros detalhes menos perceptíveis para quem olhasse para ela uma vez só. Era uma mistura perfeita, eternizada ali dentro de seus braços. Porém, era a mistura de um relacionamento fadado à tragédia.

            Meredith se lembrava muito bem da noite em que Mallory deixou Maddy com ela, parecendo desesperada, dizendo que a tal festa era a única oportunidade que tinha para conversar com Steve, para pegá-lo desprevenido. Ela queria que ele assumisse a filha, que cumprisse com seus deveres. Queria que ele as ajudasse financeiramente, que se aproximasse da menina e tentasse ser um pai. Porém, Meredith já sabia quais eram suas reais intenções. Sabia que ela queria manter Steve por perto, criar uma aproximação e, quem sabe, conquistá-lo de verdade.

            E outra coisa que Meredith lembrava-se muito bem era do telefonema. Mallory ligara, para avisar que Steve iria com ela para conhecer a filha. Ela parecia tão feliz, como se todos os problemas do mundo tivessem sido resolvidos com aquela decisão.

            Ela lhe dissera que estaria em casa em menos de meia hora, mas Meredith a estava esperando até hoje.

            Pensar na irmã fez com que algumas lágrimas preenchessem seus olhos.

            Mas não teve nem sequer tempo para lamentar mais uma vez pela perda, pois a campainha de sua casa tocou.

            Não estava esperando por ninguém. Ou melhor, não queria receber ninguém, pois tinha planejado passar a tarde inteira com Maddy sem fazer nada. Esperava apenas que não fossem problemas.

            Mas quando abriu a porta, viu que era, sim, um problema.

            Winnifred Randall estava ali, parada à sua frente, calada, apenas olhando para Maddy, como se ela fosse um tesouro encontrado debaixo do mar.

Passaram-se alguns minutos antes que ela conseguisse falar qualquer coisa, mas o que disse, o fez com um sorriso no rosto. Pelo menos não parecia pronta para começar a terceira guerra mundial.

            ― Olá, Meredith! Posso entrar? ― ela indagou, controlando-se para não parecer ainda mais emocionada em ver a neta pessoalmente pela primeira vez.

            Sua vontade era dizer que não, que não autorizava que aquela mulher sequer chegasse perto de Maddy, que entrasse em sua casa para espionar sua vida e usar tudo contra ela em um possível julgamento. Mas não podia negar. Aquela mulher não parecia assustadora, não parecia disposta a trazer problemas. Não havia saída.

            ― Tudo bem ― Meredith abriu caminho para que Winnifred passasse. Depois, fechou a porta atrás de si, equilibrando Maddy em apenas um braço, e apontou uma poltrona para que ela se sentasse. ― O que veio fazer aqui, Sra. Randall? Veio comparar a casinha onde moro com sua mansão?

            ― Não, querida, vim em missão de paz.

            ― E em quê consiste essa missão exatamente? ― Meredith colocou a neném no carrinho e voltou para perto da mulher, sentando-se à sua frente.

            ― Quero conversar... Dizer que não temos intenção de tirar Madeline de você. Só queremos lhe proporcionar uma vida melhor.

            ― E para ter essa vida melhor ela teria que ir morar com vocês?

            Winnifred suspirou. Olhou ao seu redor e voltou a olhar para Meredith logo em seguida.

            ― Não estou dizendo que não tem condições de dar o melhor que pode para ela, mas ela teria mais chances se viesse morar conosco...

            ― Mais chances de quê? De virar uma riquinha mimada, sem amor?

            ― Acha mesmo que eu não daria amor à minha neta?

            ― Bem, seu filho não estava muito disposto a dar... ― falou, cruzando os braços, demonstrando um pouco de desdém.

            ― Steve era um bom rapaz. Eu fui a culpada. Ele quase não sobreviveu quando bebê, foi uma criança muito frágil, e acho que por isso o mimamos tanto. Bem... deu no que deu. Ele não foi capaz de amadurecer o suficiente para assumir os próprios erros.

            A expressão de dor no rosto de Winnifred Randall a redimia de muita coisa. Ela era uma mãe que tinha perdido seu filho, desesperada para ter a neta consigo. A verdade era que tendo dinheiro e uma posição favorável, ela poderia nem se dar ao trabalho de tentar uma aproximação amigável, poderia partir logo para a briga, pois, sem dúvida, iria ganhar.

            Mas ela estava ali. Meredith não sabia se era uma encenação, porém, precisava acreditar. Tentaria ao menos ser razoável.

            ― O que quer, Sra. Randall?

            ― Quero encontrar uma forma de cuidarmos de Maddy juntas ― ela disse e logo depois pensou por um tempo, encontrando, finalmente, uma solução que lhe pareceu muito lógica. ― Por que não vai morar lá em casa?

            ― O quê? ― exclamou. ― Com todo o respeito, mas a senhora ficou louca?

            ― Não, claro que não. É uma opção bem razoável.

            ― Não para mim. Eu tenho minha vida aqui, não sou uma aproveitadora. Não quero morar com uma família que me despreza, que abandonou minha irmã quando ela mais precisou.

            Foi nesse momento que Winnifred pensou que não deveria ter feito tal convite. Gavin já tinha lhe avisado que a garota era orgulhosa.

            Com um suspiro, ela tentou mudar de assunto.

            ― Posso, pelo menos, segurar minha neta um pouco? Não vai me negar isso, vai?

            Não, claro que não. Como poderia?

            Contudo, precisava confessar que entregar o bebê que ela tanto amava para aquela mulher fez com que seu coração fosse partido em mil pedaços.

            Winnifred pareceu ganhar um presente no momento em que sua netinha foi colocada em seu colo. Ela parecia tão nervosa que precisou se sentar.

            Naquele momento, porém, Meredith percebeu que a pequena Madeline teria sim muito amor naquela casa enorme e rica. Talvez tanto amor quanto teria com ela, mas com a certeza de que teria comida boa à mesa, que teria roupas, boas escolas e oportunidades. A verdade estava ali, à sua frente, ela só não estava querendo enxergar.

            Depois do que pareceu uma eternidade, a mulher devolveu o bebê à tia.

            ― Ela é maravilhosa ― falou, limpando algumas lágrimas do rosto.

            ― Ela é, sim ― concordou, com um tom de voz baixo, quase sussurrante, demonstrando um pouco de embaraço.

            As duas ficaram em silêncio por um bom tempo, até que Winnifred suspirou e voltou-se para ela novamente.

            ― Bem, Meredith, preciso ir. Obrigada por ter me deixado vê-la. Foi muito importante para mim.

            ― Não há de quê.

            Meredith colocou Maddy no carrinho e acompanhou Winnifred até a porta. Abriu-a, e a mulher cruzou-a, mas virou-se em sua direção para acrescentar mais alguma coisa:

            ― Não hesite em nos procurar se precisar de alguma coisa. E, por favor, escute o que Gavin tem a dizer. Ele é um bom homem, não vai fazer nada para prejudicá-la.

            De alguma forma, Meredith começava a acreditar nisso. O que a assustava, é claro, pois não podia se deixar levar pelos sentimentos daquelas pessoas. Não quando eles sequer se importaram com os sentimentos de Mallory, no momento em que ela mais precisou. Era nisso que precisava focar.

            Mas não era nisso que estava pensando quando ficou observando Winnifred se afastar, entrar em seu carro com motorista e partir.

            É, sua tarde, planejada para ser tranquila, não estava se mostrando mais tão promissora.

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