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Ela Não Pertence A Cidade

Janaína Messias

Horas antes...

Acordo com a voz suave de Maria, que cantava uma antiga música gospel enquanto passava o aspirador pelo meu quarto. Me reviro na cama e dou um sorriso tímido para minha madrasta, que o retribui.

— Bom dia, meu anjo. O café está pronto, e tem bolo.

Levanto contente ao ouvir suas palavras. Amo seus bolos. Maria ama cozinhar, e eu amo comer tudo que suas mãos mágicas preparam.

— Obrigada, Maria. Vou me arrumar e já desço para o café da manhã.

Beijo sua bochecha, e ela resmunga algo sobre meu hálito matinal. Não posso evitar rir enquanto corro em direção ao banheiro.

Tiro meu pijama, ficando completamente nua. Meus olhos se perdem no reflexo do espelho. Nunca me achei um exemplo de beleza; meu pai sempre me ensinou que a vaidade é um pecado gravíssimo. Tenho um corpo magro, seios pequenos, coxas um pouco grossas e a pele levemente morena. Sempre me senti estranha por ter apenas 1,55 de altura. Meu pai diz que puxei minha mãe, que era pequena e tinha cabelo loiro escuro e olhos verdes, assim como eu. Nunca conheci minha mãe; meu pai diz que ela morreu quando eu nasci, era filha do caseiro do sítio da minha avó. Ter alguma semelhança com ela me acalma às vezes, embora Maria seja uma ótima madrasta e eu seja grata por toda sua dedicação, nada na vida substitui o amor materno. É estranho pensar que o dia que comemoro meu aniversário é o dia em que a mulher que me deu a vida morreu. Por isso, nunca comemoramos essa data. Maria faz questão de fazer nesse dia um de seus maravilhosos bolos e um jantar com minhas comidas favoritas, mas nunca tocamos no assunto, agimos como se fosse um dia comum sem grandes comoções.

Fico imaginando como eu seria se minha vida fosse diferente. Com uma mãe, com uma família mais liberal. Não que eu deteste minha vida, pelo contrário; mas às vezes sinto falta de algumas coisas, como ter amigas verdadeiras, daquelas que você dorme na casa para uma festa do pijama, conversam sobre coisas bobas da vida, contam suas experiências com os meninos.

O único homem que já tive contato foi o meu noivo; nunca tivemos algo mais íntimo que conversas em jantares familiares, mas não tem tanta importância, o noivado já está confirmado por nossos pais.

Me afundo na banheira tentando afastar os pensamentos confusos. Sempre fico pensativa pelas manhãs, sempre penso em minha mãe e no meu futuro casamento.

Minha irmã Melissa é como uma mãe para mim. Mel é minha melhor amiga, com ela compartilho todos meus segredos e medos. Meu pai e a Melissa se odeiam por algum motivo, e isso impede bastante suas visitas, mas ela sempre me encontra aos sábados para um passeio pela cidade.

A Mel sempre tenta me ajudar a fazer amizade com outras meninas da minha idade; ela é totalmente contra meu casamento. Às vezes nem sei se eu mesma absorvi essa ideia toda. Nunca fui boa em fazer amigos; meu pai não aprova quase nenhuma pessoa da cidade. Segundo ele, todos são pecadores ou más influências.

Resolvo mudar meus pensamentos para meus afazeres diários. Faço mentalmente uma agenda das minhas tarefas e suspiro cansada.

Hoje teria um dia muito atarefado e exaustivo, os jovens da igreja programaram um dia bem produtivo. Iríamos protestar em frente à casa daquela aberração. Como o prefeito permitiu essa pouca vergonha? Um filme tão pecaminoso em nossa cidade... Isso só pode ser uma piada de péssimo gosto! Tenho até pena do castigo divino que ela receberá. Rio ao imaginar a cena de todas essas aberrações homossexuais no fogo eterno do inferno.

— Está rindo de que?

Maria pergunta me assustando. Sorrio sem graça por não ter notado sua presença. Em suas mãos estavam toalhas secas e um roupão. Olho para meus dedos enrugados e percebo que estou a um bom tempo na banheira.

— Nada de importante... - ela faz um gesto para que eu me levante. Assim faço, e ela me envolve com uma toalha - eu apenas pensei em como Deus punirá os pecadores dessa cidade... - Saio da banheira e enrolo uma toalha no cabelo. - Ainda não acredito que esse prefeito vendeu sua alma por publicidade e dinheiro.

Ela suspira me entregando meu roupão, removo a toalha do meu corpo e visto o roupão. Embora Maria fosse religiosa, suas opiniões eram opostas às minhas. Ela não se envolvia em protestos ou nos projetos organizados. Apesar disso, ela era uma pessoa muito boa e caridosa.

— Minha garotinha... Não se envolva em algo dessas proporções... Deixe as pessoas serem elas mesmas.

Ignoro seu comentário ligando o secador de cabelo. Maria me observava com preocupação enquanto secava meu cabelo.

— Sabe que essas coisas não podem passar impunes. O mundo não pode se tornar uma Babilônia!

Digo pegando meu vestido no armário.

Coloco minha lingerie e, em seguida, o vestido. Penteio meu cabelo enquanto a vejo se aproximar.

— Não podemos obrigar ninguém a seguir nossas vontades.

Me viro rapidamente olhando para minha madrasta com total irritação. A mais velha me encara sem expressão.

— Essa não é a minha vontade e sim a de Deus!

Digo em um tom firme enquanto a encaro nos olhos. Ela nega com a cabeça e murmura algo que não consigo entender. Volto a me arrumar tentando manter a calma.

— Você às vezes me assusta com tanto ódio gratuito... Parece seu pai falando aquelas coisas terríveis sobre as pessoas.

Rio debochada, e ela me lança um olhar de reprovação.

Apesar dela estar errada, sempre tive muito respeito por ela, e isso faz com que guarde meus comentários ácidos. O clima no quarto era de tensão; tento amenizar as coisas com um meio sorriso. Murmuro um "desculpa" a contragosto, e ela se aproxima.

— João ligou, disse que está animado para o jantar.

Suspiro sem ânimo. Apesar de ter mudado de assunto, falar sobre João ainda era algo que me deixava extremamente tensa.

João é o meu noivo. Nossos pais fizeram um acordo sobre nosso casamento há muitos anos. Meu pai diz que assim não serei enganada ou me contaminarei com os pecadores. A verdade é que fui obrigada a aceitar essa união. Ele é 26 anos mais velho, e isso é bem assustador. Seu pai é sócio da empresa do meu. Ele vem de uma família muito religiosa. As garotas da cidade elogiam sua beleza; para mim, isso é constrangedor, pois me sinto um patinho feio.

Nunca beijei alguém, e o fato de pensar em intimidades com ele me faz corar. Agradeço mentalmente por Maria não perceber meu rosto envergonhado. Dou leves batidinhas nas bochechas para explicar a vermelhidão.

— O jantar vai oficializar o noivado. O pai dele fez questão de avisar que quer todos da família presentes. - Ela me lança um olhar de dúvida, e seu tom é preocupado - mas caso não queira comparecer, posso inventar alguma desculpa... Ainda acho que não é certo essa união. Você é jovem demais!

— Em falar nisso - falo mudando o assunto rapidamente. - Hoje vou protestar com os jovens da igreja.

A ruiva suspira profundamente e me lança um olhar acolhedor.

— Minha querida, sei que ama seu pai, mas não precisa fazer todas as suas vontades... Esses protestos contra o prefeito não mudarão em nada os planos do filme.

Me levanto irritada. Apesar de tudo, Maria tem razão de certa forma. O prefeito não mudaria de ideia. Mas... Caso afastássemos os atores, não haveria filme.

Sorrio perversa. Hoje iríamos fazer a mudança! Chamamos pessoas de outras igrejas, tudo vai acontecer de acordo com o combinado. Usaremos a mídia dela contra ela. Vamos aproveitar que toda a imprensa está cobrindo as notícias desse filme para mandarmos nosso recado.

Vamos obrigar essa devassa a sair de nossa cidade junto com todos os pecadores!

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