O único barulho do quarto é o bip suave do medidor de pulsação cardíaca ligado a Cami. A expressão serena, e a respiração regulada dela me trazem alívio, mas não posso dizer que essa sensação me livra do medo, do pânico que insiste em estar presente desde que a socorri. Um murmúrio baixo sai por seus lábios, o que me deixa em alerta, arrasto uma poltrona para próximo ao leito de minha esposa, sento-me perto o suficiente para pegar sua mão, onde deposito um beijo demorado. Enquanto velo seu sono, nossos melhores momentos passam como um filme em minha cabeça. Quando olhei para a garota solitária no campus da universidade me bateu a certeza de querê-la em minha vida, clichê eu sei, mas foi isso que aconteceu, e ao passar dos anos cada um de nossos momentos, até mesmo os ruins, confirmava aquela certeza. Então veio o primeiro sim, o primeiro beijo, o primeiro toque.... Eu a amei a cada segundo que pude estar do seu lado, e eu a amei mais um pouco quando descobri a vida turbulenta que Camille tinha ao lado dos pais abusivos, não que eu gostasse daquilo, eu gostava da maneira que Cami não deixava se abater, como ela ainda podia sorrir mesmo estando com um roxo no braço, e despedaçando-se pouco a pouco por dentro. Eu odiava vê-la tão machucada, tão alheia a tudo, porém amava cuidar de cada uma de suas feridas, amava abraçá-la a cada dia ruim, mostrando que mesmo que o mundo virasse contra ela, eu ainda estaria ali, ao seu lado.
Comigo não foi tão diferente, ela poderia não me dizer eu te amo corriqueiramente como eu fazia questão de demonstrar, mas seu abraço era melhor do que qualquer palavra, sempre transbordando amor. E no meio disso tudo, não ganhei apenas a mulher da minha vida, ganhei uma amiga cumplice que me apoiava na mesma medida, ou até mais que eu lhe apoiava. Meus pais a amaram no primeiro instante que a conheceram, ela não era de muitas palavras até passar a conviver com eles, acho que encontrou em nós a família que nunca teve. Confesso que não foi fácil chegar até onde nos encontramos hoje, principalmente no começo, nas incontáveis vezes que os pais de Cami tentaram afasta-la de mim, mas mesmo tendo que lutar por ela e ter sido um pouco doloroso vê - lá ter pesadelos nos primeiros anos juntos após a morte de seus progenitores em um grave acidente, não mudaria nada. Tudo que fizemos, passamos nos trouxe aqui, juntos.
Como pude deixar nós nos perdemos assim? Como, se eu sempre soube que afastar as pessoas é o único modo que ela vê para proteger a si mesma?
— Eu sinto tanto Cami — Aperto sua mão — Amo você Cami, e eu não sei o que fazer — Sussurro, sabendo que ela certamente não me ouviria — Eu...eu não consigo entender você Cami, me diga o que fazer — Uma lágrima solitária desce por meu rosto, e eu não sei dizer se é por alívio de tê-la aqui ou medo que ainda circula dentro de mim.
Deitando minha cabeça sobre suas pernas, sinto as lágrimas mais uma vez vir a tona, eu não reprimo, me permito chorar, tentando outra vez entender tudo. Mas, por mais que existisse inúmeras possibilidades, nenhuma com lógica plausível vem em minha mente, nada faz sentido. Entre uma lágrima e outra, e murmúrios baixos, adormeci ali, em suas pernas.
***
Sinto uma mão passar timidamente pelos fios de meus cabelos, a sensação é tão boa que demoro um pouco para tomar coragem de abrir os olhos e virar meu rosto em direção a dona do toque, e quando finalmente o faço, consigo ver os olhos cor de mel me olhando com um certo receio, apesar de querer fazer inúmeras perguntas, chacoalha-la e implorar para que nunca mais faça o que fez na noite anterior, me reprimo e apenas sorrio. Enquanto suas mãos descem vagarosamente por meu maxilar, observo atento ao percurso de seus dedos, seu toque é tão suave que me esqueço por hora a noite turbulenta que tivemos, quando noto seus dedos acariciam meus lábios, fecho os olhos novamente e com um pouco de dificuldade, com uma dor angustiante nas costas por ter dormido sentado, me levanto da poltrona, fazendo suas mãos caírem sobre suas pernas. Minha mulher me fita, seus lábios se movimentam, mas nenhum som sai por eles, como se não soubesse o que falar, afasto um pouco a poltrona da cama com meu olhar fixo no dela, e logo sento me ao seu lado, podendo em fim puxa-la para um abraço apertado. Quando meus dedos começam a acariciar os fios dourados de seus cabelos, Camille suspira, então funga e começa a chorar baixinho na curva de meu pescoço, apertando seu frágil corpo contra o meu,
— Ei, vai ficar tudo bem. — Eu a nino, como faria a uma criança assustada. Preciso acalmar a ela, e a mim também.
— Eu não... não sei o que está acontecendo...— Seus braços me soltam por um tempo.
— Vai ficar tudo bem, ok? — Cami não diz nada, apenas volta a me abraçar mais forte como resposta. Sinto algo semelhante a um soco vindo da barriga de minha mulher.
— Isso — Meus olhos novamente enchem de lágrimas, tento reprimir o sentimento indecifrável dentro do meu peito, mas não consigo! Um sorriso involuntário enfeita meus lábios e minhas mãos descem em sua barriga, minha esposa ainda chora, mas suas mãos acompanham as minhas, não sei o que esse gesto possa significar, mas me emociono, me emociono por que no fim estar tudo bem, por eu ainda tê-los em minha vida.
Quando minha infância passa por meus olhos como um filme, não sinto aquela nostalgia boa que a maioria dos adultos sentem, eu simplesmente não consigo me sentir bem quando as lembranças resolvem me fazer uma visita. Estaria mentindo se dissesse que nunca fui feliz, porém foram tão raros os momentos em que a felicidade fez parte da minha vida naquela época, que posso enumerá-los nos dedos. Dos meus pais, infelizmente, só me restou uma mágoa profunda, por nunca terem me dado a vida digna de uma criança, por eles não terem me amado, por estragarem o pouco que eu tinha quando me viam felizes. Mas, apesar de todos os momentos conturbados que enfrentei ainda uma menina, sou grata a Deus por ter trazido Rafael para minha vida, e com ele a esperança de dias melhores para mim. Com o tempo descobri que não ganhei apenas um amigo, namorado e consequentemente um marido, eu havia ganhado um porto seguro. Que não importava o quão ruim estivesse minha v
Minha vista começa a embaralhar quando tento pela enésima vez manter o foco na tela do computador, um suspiro longo e frustrado foge por entre meus lábios, estou parada olhando para o mesmo lugar a quase uma hora. Há fotos a tratar, entregar e orçamentos a serem feito, mas não consigo me concentrar, não consigo ao menos avaliar as fotos que minha assistente fizera! Pouso minhas mãos sobre a mesa e sobre ela descanso minha cabeça, que continua girando, latejando desde a hora que vim do consultório de Sara. Por mais que uma parte minha quisesse se apegar as palavras dela como um bote salva vidas, algo dentro de mim não permitia, ele não só me acusava, como me convencia de que eu havia sido uma mãe negligente, que só pensou em si mesmo no instante que deixei meus receios vencerem, tomando aqueles comprimidos, esquecendo-se totalmente do ser inofensivo que habitava dentro de mim. Um novo nó
Assim que fecho a porta principal de casa, meu olhar acompanha Cami, que depois de jogar sua bolsa no sofá, caminha em direção a cozinha, faço menção de acompanha-la com o propósito de retomar a conversa que iniciamos na clínica, mas meu celular toca interrompendo-me, minha mulher olha para mim brevemente, mas logo volta sua atenção para o que fosse que estivesse fazendo. Apanho meu aparelho celular no bolso da calça, e sorrio por ver que é minha mãe. — Oi mãe, tudo bem? — Indago com um sorriso em minha face, busco os olhos de Cami mais uma vez, eles me fitam, seus lábios curvam-se em um sorriso ameno. —Se está tudo bem? Como tem coragem de me perguntar isso depois de me abandonar? — Tento controlar minha risada por ver que apesar de estar fazendo seu drama rotineiro, minha mãe fala sério, uma risada e ela com certeza m
— Cara, você está péssimo. — Gustavo, meu sócio do escritório murmura assim que adentra minha sala, sem bater, por sinal. Desvio minha atenção da tela do computador e arqueio as sobrancelhas. — Invade meu escritório para falar de minha aparência? Sério Gustavo? — Ele ri se jogando todo esparramado na cadeira a minha frente, o observo por um tempo, então bufo sabendo o que provavelmente o levara em minha sala. — O que houve dessa vez? — Pergunto, afrouxando minha gravata, meu amigo ri nervoso então deita a cabeça em minha mesa. — A mulher está louca cara — Diz, se referindo sua mulher, que só aceitou assinar o divórcio deles, se o mesmo lhe pagasse uma quantia absurda de indenização (qual deixaria a conta bancária do meu amigo limpa), por que segundo ela, a parte que pede divorcio se
Rejeitada. Palavra e sensação que desde muito nova odiei. Com as intermináveis brigas de meus pais, eu me sentia assim corriqueiramente, não podia fazer nada, mas esse fato não me impediam de me por entre eles quando se empurravam, agrediam entre si, ambos gritavam comigo, mas ao invés de me amuar em algum canto, eu permanecia ali, em fogo cruzado, e essas minhas ações me proporcionou uma coleção de roxos – quais eu tentava sempre cobrir com as maquiagens de minha progenitora. Apanhei muito acreditando que um dia poderia fazê-los parar de brigar, fazê-los me amar, porém, conforme os anos foram passando, e minha mente foi amadurecendo, aprendi que nada os faria me amar, me aceitar. Aprendi que ser rejeitado por quem deveria nos acolher, embora por muito tempo pareça, não é nossa culpa, não é minha culpa. Mas esse meu saber não impede que eu me sinta assim agora na fase adulta, e embora c
Um sorriso estica meus lábios, com a imagem de meus pais rindo de algo no jardim, mamãe como de costume quando vem para o chalé está com um chapéu exageradamente grande cobrindo sua cabeça do sol, suas mãos habilidosas cortam algumas ervas daninha no meio de suas roseiras. Papai a assiste como se ela fosse o seu entretenimento preferido, vejo amor em seu olhar, muito amor, que chega ser um tanto que contagiante a energia que os dois emana sempre que estão juntos, faço uma busca rápida em minhas lembranças, e eu não consigo lembrar de algum momento ter sido diferente, nem mesmo na época que mamãe ficara debilitada, e eu um jovem festeiro. O companheirismo que os acompanha no decorrer de suas vidas é invejável, com certeza. Me pergunto se Cami e eu teremos algo semelhante em alguma fase de nossas vidas, a um certo tempo pude jurar estar no caminho certo, no caminho de um casamento quão bonito quanto ao dos meus progenitores, porém agora sin
— Me desculpe por ter saído praticamente correndo mais cedo. — Digo me aproximando de minha sogra que está na pia da cozinha lavando algo, suas mãos vão até a torneira fechando-a, e logo ela apanha o pano de prato para enxugar as mãos, abaixo a cabeça envergonhada assim que seu olhar entra em contado com o meu. — É que, tem sido... — Filtro minhas palavras antes de continuar, Beatriz me espera pacientemente, como sempre fez — Dias difíceis, diferente do que imaginei, a alguns meses, anos atrás. — Me escoro no balcão, Beatriz observa meus movimentos atentamente, como se meus gestos fossem revelar o que minha consciência impedia de meus lábios proferirem, tenho medo de seu olhar. O que me leva a refletir se Rafa contou a Sara do ocorrido, por ele não contaria aos pais, que ele sempre considerou seus amigos? Abaixo a cabeça, esperando de alguma forma que ela me acuse, ou quem sabe grite, brigue comigo, não iria debater, pois sei que a única
Desde a hora do almoço Cami está aérea. Conversamos brevemente quando decidimos subir para descansar um pouco antes de descer para jantar, e quando descemos novamente, suas palavras poderiam ser contadas de tão poucas. Meu olhar não a deixava um se quer segundo, mas não disse nada, enquanto papai conversava animadamente, dizendo o quanto iria mimar a primeira neta, minha mulher estava contida, e muitas vezes se perdia na conversa, podia ver que ela fazia um esforço para acompanha-lo, mas como se estivesse fora de seu controle, ela falhava. Mas o mais estranho de tudo era, minha mãe também, estava mais quieta do que o normal, seus olhos estudavam a nora sempre que podia, e uma vez ou outra a pegava olhando em minha direção, me perguntei se Cami havia finalmente falado com alguém além de Sara sobre o ocorrido de algumas semanas. Deixei que o jantar seguisse de maneira mais natural possível, e quando vi uma pequena brecha disse que Cami e eu