4.Camille

Quando minha infância passa por meus olhos como um filme, não sinto aquela nostalgia boa que a maioria dos adultos sentem, eu simplesmente não consigo me sentir bem quando as lembranças resolvem me fazer uma visita. Estaria mentindo se dissesse que nunca fui feliz, porém foram tão raros os momentos em que a felicidade fez parte da minha vida naquela época, que posso enumerá-los nos dedos. Dos meus pais, infelizmente, só me restou uma mágoa profunda, por nunca terem me dado a vida digna de uma criança, por eles não terem me amado, por estragarem o pouco que eu tinha quando me viam felizes. Mas, apesar de todos os momentos conturbados que enfrentei ainda uma menina, sou grata a Deus por ter trazido Rafael para minha vida, e com ele a esperança de dias melhores para mim. Com o tempo descobri que não ganhei apenas um amigo, namorado e consequentemente um marido, eu havia ganhado um porto seguro. Que não importava o quão ruim estivesse minha vida, ele sempre estaria li, para me amparar. Como ninguém nunca ousou fazer.

Porém, aqui, agora com minha barriga enorme, sinto que estou a ponto de explodir. Não por ter ganhado oito quilos, vomitado praticamente todos os meus órgãos juntamente as minhas refeições nos primeiros meses. Por ter reduzido as horas de trabalho que eu tanto amo, é por meu peito apertar a cada dia mais, por não me sentir capaz! Sinto que a qualquer momento irei falhar com esse bebê. Assim como minha mãe falhou comigo, e isso me machuca mais do que eu queira admitir. Mais do que eu possa suportar.

— Cami. — Sua voz calma me chama. Dou conta de que havia divagado pela terceira vez em apenas alguns minutos de sessão. Olho minha psicóloga sentada do outro lado da mesa, ela continua com sua mesma expressão de sempre, avaliativa. Seus olhos negros estão fixos em mim, esperando que eu dê uma resposta para sua pergunta, que eu mais uma vez fingi não ouvir.

— Oi. — Tento a todo custo manter focada em Sara, porém meus olhos novamente se perdem no pequeno feixe de luz da janela de seu consultório.

Eu não quero estar aqui.

— Se voltarmos a estaca zero, não vai dar certo, Camille. — Sua voz calma chama minha atenção, como se eu fosse uma criança birrenta.

— Não tenho nada a falar por hoje, só isso. — Desvio minha atenção para um objeto qualquer sobre sua mesa. E oro mentalmente para que Sara não toque no assunto que tanto tento apagar de minha mente.

— Sabemos que não é verdade, Cami.

— Sabemos? — Arqueio minha sobrancelha. Sei muito bem aonde Sara deseja chegar, mas não me sinto preparada para falar do ocorrido da semana passada, mesmo que o combinado na alta do hospital era que eu deveria buscar ajuda psicológica.

— Cami, temos que falar a respeito — Sua voz é cautelosa — Por que, Camille, por que fez aquilo?

— Eu não sei, ok!? Eu não sei! Eu não sei o porquê de ter feito aquilo. —Minto. Eu sabia o porquê, só me recusava admitir, por saber o quão egoísta e idiota havia sido.

— Como se sente, Cami? — Ela muda instantaneamente o rumo da conversa, e se já não a conhecesse tão bem quanto conheço, diria que ela havia desistido. Sinto vontade de rir, porque mesmo conhecendo seus métodos, eu sempre cedo. Sara no começo vai direto ao ponto, e quando não consegue o que quer, ela faz uma pergunta simples, mas não espera respostas monótonas e muitas vezes falsas, me sinto bem, ela deseja a verdade, embora já saiba. Porque segundo ela, quando dizemos em voz alta o que realmente estamos sentindo, o fardo torna-se mais leve. Aceitação é o caminho.

Eu já fiz isso uma vez, expus todos os meus receios, disse em voz alta tudo o que me atormentava, funcionou por um tempo, contudo quando jurei ter me livrado desse fardo, ele voltou, mas sinto que já não é como era antes, é como se estivesse mais pesado do que nunca. E eu sinto que dizer em voz alta que o passado ainda me atormenta, fará a dor, a insuficiência sólida, real de mais para eu aguentar. Já não tenho forças para lidar com os meus monstros antigos, internos. Eu não quero lutar mais contra isso...

— Eu não sei. — Minto novamente.

— Camille, como se sente? — Sara se ajeita em sua cadeira, abaixo a cabeça não querendo ceder, eu não posso ceder, minha mão fecha em um punho — Como, Camille? — Minha boca abre e fecha, mas nada além de minha respiração quente sai. Eu poderia sair pela porta como muitas vezes o fiz, mas o seu olhar intenso, como se dissesse eu vou lhe socorrer, me predem, induzem as palavras saírem por meus lábios.

— Sinto que vou falhar com ele — Minha voz sai um pouco alta demais, minhas mãos descem em minha barriga, desvio o meu olhar para a janela e suspiro, cedendo — Eu não... — Fecho meus olhos e sinto as lágrimas descerem por minha face — Eu não consigo olhar no espelho sem me sentir uma estranha no meu próprio corpo, sem sentir como se estivesse falhando comigo, com Rafa. Se estou falhando com a gente, imagine com um bebê, Sara. Eu não posso fazer isso. — Sussurro as últimas palavras como confessasse um segredo.

— Seu bebê, Cami, você não o quer? — Ela já havia me feito essa pergunta muitas vezes nos últimos meses, mas em nenhuma delas havia respondido. Eu não me sentia capaz de cuidar dele, mas não o querer? Já não sabia. Pouso meus braços sobre sua mesa, e sobre eles sustento minha cabeça, tendo a impressão de tudo girar, de tudo estar desabando sobre mim.

Eu não aguento mais.

Deus... Eu não aguento mais.

— Não, eu, eu não sei...

— Cami, na sexta feira... Você tentou...— Sara não completa sua fala, mas sei muito bem o que viria depois daquelas palavras, Rafa fez aquela mesma pergunta quando saímos do hospital, fiquei brava, gritei e neguei de imediato, afinal eu nunca iria contra a vida do pequeno ser dentro de mim. Mas o modo impulsivo que havia ingerido aqueles comprimidos e como havia me deitado na banheira esperando que seus efeitos surgissem passa nitidamente por meus olhos. Então a culpa vem...

... você tentou machucar nosso bebe, Cami? A voz de Rafa ecoa em minha cabeça, fazendo-a latejar...você tentou, Cami?

— Não — Grito, pondo-me a olhá-la dentro de seus olhos. Sara arqueia a sobrancelha, então abaixo a cabeça — Eu não tentei machucá-lo, Sara, eu não tentei...

— Então o que houve?

— Eu só queria que esse sentimento de insuficiência acabasse. Sei que foi egoísmo ­— Fungo desviando meu olhar para ela — Mas eu só não queria me sentir fraca, sentir que estava falhando. Eu não vou conseguir Sara, eu não vou conseguir ser uma boa mãe, eu nunca serei.

— Você sabe que não é igual a eles, Cami. — Ela se refere aos meus pais, sinto suas mãos macias tocar as minhas. Suspiro sabendo que quem estava ali já não era apenas minha psicóloga, era uma amiga.

— Eu não tenho tanta certeza assim... tomar aquele tanto de comprimido sabendo que poderia prejudicar meu bebê, me fez pior do que meus pais, eles não me deram amor, não me protegeram, mas nunca, nunca tentaram tirar a minha vida.

— Você disse que queria que o sentimento acabasse, Cami, é normal se sentir fraca as vezes, é normal tentar aliviar as nossas dores, não é como se você tivesse o intuito de machuca - lo.

— Mas... — Fungo mais uma vez engolindo o nó angustiante que se formou em minha garganta.

— Não tem mas. Você só tem que aprender que não é igual a sua mãe, seu pai. É uma mulher maravilhosa, Cami! É uma guerreira! Se permita viver além da sombra de seus pais, se permita a amar, querer o seu bebê— Sara sorri depositando um beijo sobre minhas mãos, seus olhos fitam os meus. — Você merece mais do que um legado sujo de falta de amor, Cami. Você tem muito mais que isso!

— Mas, eu não consigo, não posso fazer isso — Olho para minha barriga — Não posso aceitá-lo sem ter a certeza que serei capaz de ser diferente, Sara.

— Cami, isso que vou dizer é algo bem genérico — Sara me oferece um sorriso ameno — Você só saberá tentando. — Mesmo não concordando com Sara, balanço a cabeça em positivo, com o propósito de sair de sua sala o quanto antes.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo