Quando minha infância passa por meus olhos como um filme, não sinto aquela nostalgia boa que a maioria dos adultos sentem, eu simplesmente não consigo me sentir bem quando as lembranças resolvem me fazer uma visita. Estaria mentindo se dissesse que nunca fui feliz, porém foram tão raros os momentos em que a felicidade fez parte da minha vida naquela época, que posso enumerá-los nos dedos. Dos meus pais, infelizmente, só me restou uma mágoa profunda, por nunca terem me dado a vida digna de uma criança, por eles não terem me amado, por estragarem o pouco que eu tinha quando me viam felizes. Mas, apesar de todos os momentos conturbados que enfrentei ainda uma menina, sou grata a Deus por ter trazido Rafael para minha vida, e com ele a esperança de dias melhores para mim. Com o tempo descobri que não ganhei apenas um amigo, namorado e consequentemente um marido, eu havia ganhado um porto seguro. Que não importava o quão ruim estivesse minha vida, ele sempre estaria li, para me amparar. Como ninguém nunca ousou fazer.
Porém, aqui, agora com minha barriga enorme, sinto que estou a ponto de explodir. Não por ter ganhado oito quilos, vomitado praticamente todos os meus órgãos juntamente as minhas refeições nos primeiros meses. Por ter reduzido as horas de trabalho que eu tanto amo, é por meu peito apertar a cada dia mais, por não me sentir capaz! Sinto que a qualquer momento irei falhar com esse bebê. Assim como minha mãe falhou comigo, e isso me machuca mais do que eu queira admitir. Mais do que eu possa suportar.
— Cami. — Sua voz calma me chama. Dou conta de que havia divagado pela terceira vez em apenas alguns minutos de sessão. Olho minha psicóloga sentada do outro lado da mesa, ela continua com sua mesma expressão de sempre, avaliativa. Seus olhos negros estão fixos em mim, esperando que eu dê uma resposta para sua pergunta, que eu mais uma vez fingi não ouvir.
— Oi. — Tento a todo custo manter focada em Sara, porém meus olhos novamente se perdem no pequeno feixe de luz da janela de seu consultório.
Eu não quero estar aqui.
— Se voltarmos a estaca zero, não vai dar certo, Camille. — Sua voz calma chama minha atenção, como se eu fosse uma criança birrenta.
— Não tenho nada a falar por hoje, só isso. — Desvio minha atenção para um objeto qualquer sobre sua mesa. E oro mentalmente para que Sara não toque no assunto que tanto tento apagar de minha mente.
— Sabemos que não é verdade, Cami.
— Sabemos? — Arqueio minha sobrancelha. Sei muito bem aonde Sara deseja chegar, mas não me sinto preparada para falar do ocorrido da semana passada, mesmo que o combinado na alta do hospital era que eu deveria buscar ajuda psicológica.
— Cami, temos que falar a respeito — Sua voz é cautelosa — Por que, Camille, por que fez aquilo?
— Eu não sei, ok!? Eu não sei! Eu não sei o porquê de ter feito aquilo. —Minto. Eu sabia o porquê, só me recusava admitir, por saber o quão egoísta e idiota havia sido.
— Como se sente, Cami? — Ela muda instantaneamente o rumo da conversa, e se já não a conhecesse tão bem quanto conheço, diria que ela havia desistido. Sinto vontade de rir, porque mesmo conhecendo seus métodos, eu sempre cedo. Sara no começo vai direto ao ponto, e quando não consegue o que quer, ela faz uma pergunta simples, mas não espera respostas monótonas e muitas vezes falsas, me sinto bem, ela deseja a verdade, embora já saiba. Porque segundo ela, quando dizemos em voz alta o que realmente estamos sentindo, o fardo torna-se mais leve. Aceitação é o caminho.
Eu já fiz isso uma vez, expus todos os meus receios, disse em voz alta tudo o que me atormentava, funcionou por um tempo, contudo quando jurei ter me livrado desse fardo, ele voltou, mas sinto que já não é como era antes, é como se estivesse mais pesado do que nunca. E eu sinto que dizer em voz alta que o passado ainda me atormenta, fará a dor, a insuficiência sólida, real de mais para eu aguentar. Já não tenho forças para lidar com os meus monstros antigos, internos. Eu não quero lutar mais contra isso...
— Eu não sei. — Minto novamente.
— Camille, como se sente? — Sara se ajeita em sua cadeira, abaixo a cabeça não querendo ceder, eu não posso ceder, minha mão fecha em um punho — Como, Camille? — Minha boca abre e fecha, mas nada além de minha respiração quente sai. Eu poderia sair pela porta como muitas vezes o fiz, mas o seu olhar intenso, como se dissesse eu vou lhe socorrer, me predem, induzem as palavras saírem por meus lábios.
— Sinto que vou falhar com ele — Minha voz sai um pouco alta demais, minhas mãos descem em minha barriga, desvio o meu olhar para a janela e suspiro, cedendo — Eu não... — Fecho meus olhos e sinto as lágrimas descerem por minha face — Eu não consigo olhar no espelho sem me sentir uma estranha no meu próprio corpo, sem sentir como se estivesse falhando comigo, com Rafa. Se estou falhando com a gente, imagine com um bebê, Sara. Eu não posso fazer isso. — Sussurro as últimas palavras como confessasse um segredo.
— Seu bebê, Cami, você não o quer? — Ela já havia me feito essa pergunta muitas vezes nos últimos meses, mas em nenhuma delas havia respondido. Eu não me sentia capaz de cuidar dele, mas não o querer? Já não sabia. Pouso meus braços sobre sua mesa, e sobre eles sustento minha cabeça, tendo a impressão de tudo girar, de tudo estar desabando sobre mim.
Eu não aguento mais.
Deus... Eu não aguento mais.
— Não, eu, eu não sei...
— Cami, na sexta feira... Você tentou...— Sara não completa sua fala, mas sei muito bem o que viria depois daquelas palavras, Rafa fez aquela mesma pergunta quando saímos do hospital, fiquei brava, gritei e neguei de imediato, afinal eu nunca iria contra a vida do pequeno ser dentro de mim. Mas o modo impulsivo que havia ingerido aqueles comprimidos e como havia me deitado na banheira esperando que seus efeitos surgissem passa nitidamente por meus olhos. Então a culpa vem...
... você tentou machucar nosso bebe, Cami? A voz de Rafa ecoa em minha cabeça, fazendo-a latejar...você tentou, Cami?
— Não — Grito, pondo-me a olhá-la dentro de seus olhos. Sara arqueia a sobrancelha, então abaixo a cabeça — Eu não tentei machucá-lo, Sara, eu não tentei...
— Então o que houve?
— Eu só queria que esse sentimento de insuficiência acabasse. Sei que foi egoísmo — Fungo desviando meu olhar para ela — Mas eu só não queria me sentir fraca, sentir que estava falhando. Eu não vou conseguir Sara, eu não vou conseguir ser uma boa mãe, eu nunca serei.
— Você sabe que não é igual a eles, Cami. — Ela se refere aos meus pais, sinto suas mãos macias tocar as minhas. Suspiro sabendo que quem estava ali já não era apenas minha psicóloga, era uma amiga.
— Eu não tenho tanta certeza assim... tomar aquele tanto de comprimido sabendo que poderia prejudicar meu bebê, me fez pior do que meus pais, eles não me deram amor, não me protegeram, mas nunca, nunca tentaram tirar a minha vida.
— Você disse que queria que o sentimento acabasse, Cami, é normal se sentir fraca as vezes, é normal tentar aliviar as nossas dores, não é como se você tivesse o intuito de machuca - lo.
— Mas... — Fungo mais uma vez engolindo o nó angustiante que se formou em minha garganta.
— Não tem mas. Você só tem que aprender que não é igual a sua mãe, seu pai. É uma mulher maravilhosa, Cami! É uma guerreira! Se permita viver além da sombra de seus pais, se permita a amar, querer o seu bebê— Sara sorri depositando um beijo sobre minhas mãos, seus olhos fitam os meus. — Você merece mais do que um legado sujo de falta de amor, Cami. Você tem muito mais que isso!
— Mas, eu não consigo, não posso fazer isso — Olho para minha barriga — Não posso aceitá-lo sem ter a certeza que serei capaz de ser diferente, Sara.
— Cami, isso que vou dizer é algo bem genérico — Sara me oferece um sorriso ameno — Você só saberá tentando. — Mesmo não concordando com Sara, balanço a cabeça em positivo, com o propósito de sair de sua sala o quanto antes.
Minha vista começa a embaralhar quando tento pela enésima vez manter o foco na tela do computador, um suspiro longo e frustrado foge por entre meus lábios, estou parada olhando para o mesmo lugar a quase uma hora. Há fotos a tratar, entregar e orçamentos a serem feito, mas não consigo me concentrar, não consigo ao menos avaliar as fotos que minha assistente fizera! Pouso minhas mãos sobre a mesa e sobre ela descanso minha cabeça, que continua girando, latejando desde a hora que vim do consultório de Sara. Por mais que uma parte minha quisesse se apegar as palavras dela como um bote salva vidas, algo dentro de mim não permitia, ele não só me acusava, como me convencia de que eu havia sido uma mãe negligente, que só pensou em si mesmo no instante que deixei meus receios vencerem, tomando aqueles comprimidos, esquecendo-se totalmente do ser inofensivo que habitava dentro de mim. Um novo nó
Assim que fecho a porta principal de casa, meu olhar acompanha Cami, que depois de jogar sua bolsa no sofá, caminha em direção a cozinha, faço menção de acompanha-la com o propósito de retomar a conversa que iniciamos na clínica, mas meu celular toca interrompendo-me, minha mulher olha para mim brevemente, mas logo volta sua atenção para o que fosse que estivesse fazendo. Apanho meu aparelho celular no bolso da calça, e sorrio por ver que é minha mãe. — Oi mãe, tudo bem? — Indago com um sorriso em minha face, busco os olhos de Cami mais uma vez, eles me fitam, seus lábios curvam-se em um sorriso ameno. —Se está tudo bem? Como tem coragem de me perguntar isso depois de me abandonar? — Tento controlar minha risada por ver que apesar de estar fazendo seu drama rotineiro, minha mãe fala sério, uma risada e ela com certeza m
— Cara, você está péssimo. — Gustavo, meu sócio do escritório murmura assim que adentra minha sala, sem bater, por sinal. Desvio minha atenção da tela do computador e arqueio as sobrancelhas. — Invade meu escritório para falar de minha aparência? Sério Gustavo? — Ele ri se jogando todo esparramado na cadeira a minha frente, o observo por um tempo, então bufo sabendo o que provavelmente o levara em minha sala. — O que houve dessa vez? — Pergunto, afrouxando minha gravata, meu amigo ri nervoso então deita a cabeça em minha mesa. — A mulher está louca cara — Diz, se referindo sua mulher, que só aceitou assinar o divórcio deles, se o mesmo lhe pagasse uma quantia absurda de indenização (qual deixaria a conta bancária do meu amigo limpa), por que segundo ela, a parte que pede divorcio se
Rejeitada. Palavra e sensação que desde muito nova odiei. Com as intermináveis brigas de meus pais, eu me sentia assim corriqueiramente, não podia fazer nada, mas esse fato não me impediam de me por entre eles quando se empurravam, agrediam entre si, ambos gritavam comigo, mas ao invés de me amuar em algum canto, eu permanecia ali, em fogo cruzado, e essas minhas ações me proporcionou uma coleção de roxos – quais eu tentava sempre cobrir com as maquiagens de minha progenitora. Apanhei muito acreditando que um dia poderia fazê-los parar de brigar, fazê-los me amar, porém, conforme os anos foram passando, e minha mente foi amadurecendo, aprendi que nada os faria me amar, me aceitar. Aprendi que ser rejeitado por quem deveria nos acolher, embora por muito tempo pareça, não é nossa culpa, não é minha culpa. Mas esse meu saber não impede que eu me sinta assim agora na fase adulta, e embora c
Um sorriso estica meus lábios, com a imagem de meus pais rindo de algo no jardim, mamãe como de costume quando vem para o chalé está com um chapéu exageradamente grande cobrindo sua cabeça do sol, suas mãos habilidosas cortam algumas ervas daninha no meio de suas roseiras. Papai a assiste como se ela fosse o seu entretenimento preferido, vejo amor em seu olhar, muito amor, que chega ser um tanto que contagiante a energia que os dois emana sempre que estão juntos, faço uma busca rápida em minhas lembranças, e eu não consigo lembrar de algum momento ter sido diferente, nem mesmo na época que mamãe ficara debilitada, e eu um jovem festeiro. O companheirismo que os acompanha no decorrer de suas vidas é invejável, com certeza. Me pergunto se Cami e eu teremos algo semelhante em alguma fase de nossas vidas, a um certo tempo pude jurar estar no caminho certo, no caminho de um casamento quão bonito quanto ao dos meus progenitores, porém agora sin
— Me desculpe por ter saído praticamente correndo mais cedo. — Digo me aproximando de minha sogra que está na pia da cozinha lavando algo, suas mãos vão até a torneira fechando-a, e logo ela apanha o pano de prato para enxugar as mãos, abaixo a cabeça envergonhada assim que seu olhar entra em contado com o meu. — É que, tem sido... — Filtro minhas palavras antes de continuar, Beatriz me espera pacientemente, como sempre fez — Dias difíceis, diferente do que imaginei, a alguns meses, anos atrás. — Me escoro no balcão, Beatriz observa meus movimentos atentamente, como se meus gestos fossem revelar o que minha consciência impedia de meus lábios proferirem, tenho medo de seu olhar. O que me leva a refletir se Rafa contou a Sara do ocorrido, por ele não contaria aos pais, que ele sempre considerou seus amigos? Abaixo a cabeça, esperando de alguma forma que ela me acuse, ou quem sabe grite, brigue comigo, não iria debater, pois sei que a única
Desde a hora do almoço Cami está aérea. Conversamos brevemente quando decidimos subir para descansar um pouco antes de descer para jantar, e quando descemos novamente, suas palavras poderiam ser contadas de tão poucas. Meu olhar não a deixava um se quer segundo, mas não disse nada, enquanto papai conversava animadamente, dizendo o quanto iria mimar a primeira neta, minha mulher estava contida, e muitas vezes se perdia na conversa, podia ver que ela fazia um esforço para acompanha-lo, mas como se estivesse fora de seu controle, ela falhava. Mas o mais estranho de tudo era, minha mãe também, estava mais quieta do que o normal, seus olhos estudavam a nora sempre que podia, e uma vez ou outra a pegava olhando em minha direção, me perguntei se Cami havia finalmente falado com alguém além de Sara sobre o ocorrido de algumas semanas. Deixei que o jantar seguisse de maneira mais natural possível, e quando vi uma pequena brecha disse que Cami e eu
Sorrio me aproximando da janela da cozinha, podendo ver Rafa e Miguel rirem de algo no jardim. — É incrível como ele parece tão bem, mesmo um tanto inseguro. — Minha sogra para ao meu lado, esticando o copo com chocolate quente, o pego sem me pronunciar, enquanto meu olhar ainda está do lado de fora. Meu marido toca o ombro do pai e mais uma vez ri de algo que ele provavelmente falou, meu sogro não demora para acompanhar meu marido, a leveza, cumplicidade entre os dois me deixa feliz, o final de semana apesar de me fazer sentir amedrontada, envergonhada pela culpa latente em minha cabeça, foi útil, pois meu marido parece feliz apesar dos pesares, e isso me deixa feliz por que sei que ele, mais do que ninguém merece isso. — Uma das coisas que eu mais amo nele, é sua capacidade de tirar algo bom de um momento ruim. — Murmuro em resposta