Saque

Waverly não recordava de ter corrido tanto em sua vida antes, tão pouco estava se esforçando em se parecer como uma dama. Mas como seu pai sempre dizia, "os fins justificam os meios".

Não que ele não fosse enfartar se a visse naquele momento, segurando a saia acima dos joelhos e se portando como uma canibal velocista. Ou um coelho belga saltitante.

Algo sobre aquilo tudo vinha estranho.

Alladieren era simplesmente a nova e maior potência monárquica de força esmagadora e a menos vulnerável de todo o Império. O melhor exército desde que o príncipe Rhajaran e a princesa Khiera oficializaram matrimônio, unindo as duas terras e as transformando em algo que os Estreitos de Argel nunca viram antes, mesclando o armamento à arte e solidificando a visão de um novo mandato democrático que nunca funcionara tão bem. Desde quando a possibilidade de vencer um saque sobre o reino com essas características se fizera possível em algum momento? Havia algo sobre isso que ela houvesse perdido com o passar do tempo? Waverly ouvira dizer que piratas eram criaturas do inferno, malditamente espertas.

Agora ela começava a questionar seriamente essa opinião popular de senso comum.

Apenas um autêntico a**o pirata lideraria um saque à Alladieren, e essa era toda a coisa.

O ar ebúrnio do reino estava manso, e enquanto descia a sequência de degraus de pedra que davam subida ao castelo, ela se esforçava em ir mais rápido.

Era uma idiota. Sobre esse ponto, ao menos, não poderia discordar.

Se havia uma pessoa que totalmente arriscaria seu pescoço, descendo sozinha ao reino com apenas um leque em mãos em meio à noite durante uma invasão pirata, este alguém era Waverly, claro.

"Oh, céus... que eu apenas não vire comida de enguias...".

Desde que vira a figura imponente do mastro aportado na costa, não pensara duas vezes.

Se haviam piratas aportando, as coisas ficariam complicadas, especialmente aos aldeões que se encontravam fora das muralhas do castelo, como ela, naquele momento. Mas o plano específico em sua mente tinha muito haver com chegar a tempo até seu pai. O rebocaria de volta ao castelo nem que para isso necessitasse atá-lo à mula da família. Mesmo que fosse, aparentemente, um homem completamente inofensivo e calmo, como todo vigário deveria ser, Waverly tinha lá suas dúvidas quanto ao que piratas lhe fariam durante uma invasão. A parte especialmente ruim do plano era o fato de estar sozinha na missão, tomando o cuidado de utilizar as vielas menos usadas para evitar aos guardas da corte. Se fosse vista, seria enfiada dentro de alguma carruagem do destacamento e seriamente impedida de sair até que a ameaça fosse neutralizada.

Ela era uma garota realista. Sabia que a prioridade dos soldados não se tornaria um vigário velho de um momento para o outro. A principal mira em questão seriam os ladinos, e Waverly não poderia se dar ao luxo de esperar que o destino se convalescesse com ela.

Ela apenas se atinha quase reverente à um tratado sobre piratas que lera uma vez, torcendo fervorosamente para que a parte em que alegava punição de morte para piratas que desonrassem donzelas fosse verídica e ainda estivesse valendo, do contrário, não fazia ideia do que fazer caso tivesse a má sorte de se deparar com algum pelo caminho.

"Os guardas estão indo... tudo ficará bem.".

Só necessitava agir como uma sombra, infiltrar-se no coração do grande povoado, passar a ponte do promontório, chegar até a Catedral de Alladieren, adentrar no grande arcobotante a algumas poucas léguas de distância, onde se encontrava a propriedade Wistewdon, encontrar um modo de entrar e arrastar seu pai por todo o caminho de volta. Tudo isso sem ser notada. Uhum. Fácil.

Mais fácil que isso, só escalar a Catedral com as mãos amarradas e uma linguiça atravessada na garganta.

Porque a casa tinha de ser tão malditamente distante? Havia o inferno para caminhar ainda.

"Vai dar certo..."- ela garantiu a si mesma, empenhando os joelhos a não fraquejarem enquanto trabalhavam, tensos sob as anáguas do vestido. O espartilho não estava contribuindo em nada com sua falta de ar pelo nervosismo, e ela prontamente se lembraria de queimar aquela coisa quão logo estivesse segura no castelo novamente, com seu pai.

Waverly havia feito alguns cálculos.

Até que chegasse em sua antiga casa, duvidava que o confronto já tivesse acontecido. A costa era distante, e seriam alguns longos minutos até que algo de sangrento possivelmente acontecesse. Longos minutos que ela teria de usar com sabedoria.

E enquanto puxava o capuz da capa emprestada às pressas sobre a cabeça com mais vigor, estranhando a quietude fantasmagórica das ruas desertas do reino, ela empalideceu sobre a perspectiva de estar completamente só na noite. As portas estavam trancadas, o alarme já devia ter sido soado, apenas bolas de feno solitárias rolavam preguiçosamente pelo chão, as sombras que os archotes espalhados pelas paredes criavam refestelando ameaçadoramente ao seu redor. Waverly não poderia culpá-los. Desde a última vez que souberam de uma invasão pirata dentro de um dos reinos dos Estreitos, não seria de se admirar o terror mudo que se apregoara nos alladierianos com tanta convicção perante a possível ameaça de um saque parecido.

Havia sido o comentário principal discutido pelas ruas de Alladieren por meses seguidos.

O temível e gigantesco QUEEN'S HANSEY havia deixado marcas aterrorizantemente memoráveis em sua rota, e se contavam histórias de que mais nove embarcações _entre elas Corvetas, Brigues, Clippers, Fluyts, Fragatas e outros navios velozes de pequeno porte_, o seguiam com fidelidade, completando assim a satânica Irmandade de Hansey. Waverly sentia as pernas moles apenas ao tentar imaginar o tamanho do estrago que uma frota pirata desse porte causaria em um reino. A teoria, em escala, era o bastante convincente para secar sua boca e incitá-la a girar sobre os calcanhares e correr de volta por onde havia vindo.

E ela possivelmente o faria aos gritos.

Mas não poderia se dar ao luxo enquanto seu pai estivesse desprotegido.

Por isso, não hesitou ao cortar caminho pelo centro comercial do reino, onde até as maiores tabernas haviam sido fechadas, apenas um ou dois aldeões perdidos pelas ruelas mais afastadas, bêbados demais para fazer qualquer outra coisa a não ser cair sobre as muradas numa posição estranha e bastante questionável, babando como cães.

Oh, eles possivelmente teriam uma morte horrível em alguns minutos.

Waverly apenas torcia para demorasse mais do que ela supunha.

Sabia que as entradas e saídas do reino eram bem vigiadas, sendo guarnecidas com segurança duplicada desde que...

Desde aquele dia.

Waverly se encolheu por baixo da capa.

Ela tinha apenas três anos de idade quando tudo aconteceu, por isso, não havia como se lembrar de muita coisa útil com nitidez, mas ouvira ávidamente cada fragmento de cada história, por mais fantasiosa que fosse. A maior festividade recorrente em Alladieren, era sem dúvida os Jogos dos Tronos, onde diferentes etnias e vários povos de Impérios diferentes marcavam presença no reino, trazendo muito ouro para dentro dos limites da potência, disputando apenas com o Festival das Lanternas. Os jogos costumavam durar semanas, e eram aglomerados de feiras, mercadores, teatros, óperas, clubes de apostas, disputas e apresentações de dança, e... a mesclagem autorizada de várias crenças de atividade questionável.

Entre elas, os ciganos. Waverly não se lembrava de ter sido permitida a entrada do povo chal pelas fronteiras depois disso. Não depois de os nômades sequestrarem covardemente seu primogênito e sumirem no mundo com o último rastro de sangue descendente real. Waverly se recordava bem do caos, os olhos esverdeados da incrível rainha dourada inchados e vermelhos por um grande espaço de tempo em seus passeios pelo povoado, éditos reais oficializando buscas infindáveis por todos os Impérios conhecidos em busca do menino perdido, o próprio e inacreditável Rei Rhajaran guiando brigadas coronilhas de resgate em cada território não mapeado das redondezas e além, buscas, buscas e mais buscas. Buscas que nunca resultaram em nada. Alguns embusteiros apareceram, na esperança de usurpar o trono através da lenda do príncipe perdido, mas nunca nenhum inteligente o suficiente para apresentar o selo real que fora raptado com o menino, a tatuagem no ombro ou mesmo o anel de sinete.

Waverly não se lembrava de Aaron com clareza, mas por alguma razão, seu coração sempre parecia mitigar e se encolher dentro do peito cada vez que pensava sobre o menino príncipe. Não que ela romantizasse a história do lendário monarca, mas sua essência se enchia de pavor cego sempre que pensava sobre o futuro que o encontrou, longe de casa e da vida saudável que levava, nas mãos dos ciganos. Teria ele se convertido em um chal também? Teria morrido? Sido vendido como um escravo? O que um cigano faria com uma criança raptada? Uma criança real?

A situação de grande desespero só foi amainada com a chegada da princesa Katherinne, três anos depois, à qual atualmente Waverly servia como Dama de Honra.

Mas Waverly entendia sobre a dor. As pessoas se acostumavam a ela, mas não a esqueciam. Vivendo no palácio, ela entendia muito mais sobre o assunto, acompanhando mais de perto a vida do casal real, aquele que levara tempos para compreender. Isso porque, quando não estavam brigando, estavam discutindo possíveis pretextos de briga, e enquanto isso, se pertenciam de uma maneira tão avassaladora e intensa, que punha Waverly em imediato estado de letargia. Waverly não entendia a intensidade daquele amor, mas gostaria de tentar, um dia.

O amor que ela conhecia tinha muito haver com o motivo de ter arriscado o pescoço daquela forma. Não havia conhecido sua mãe, não possuía nenhum irmão... apenas ele, seu pai, a única razão pela qual sabia valer a pena viver.

E foi firmemente pensando sobre isso que ela sorrateiramente se embrenhou entre as faias que salpicavam a corcova que antecedia a ponte larga do promontório. Havia plenitude de paz por toda parte, e Waverly passou a desconfiar do silêncio que chegava até ela. De onde viera a fumaça e os gritos que ela deslumbrara? Waverly sondou o caminho a sua frente e a temerária vastidão vazia a sua volta, estudando as chances de não estar sozinha. Mas havia apenas um grande nada ao redor de si. Dali, ela já conseguia enxergar o pico abobadado da Catedral, sendo costeada pela visão maravilhosa da enseada, onde um enorme salão amplo e sem paredes, com teto de vidro intrincado em arabescos indianos havia sido construído, para as festividades maiores, tal como foi no casamento real.

Depois de estudar e espreitar muito o caminho, Waverly se precipitou para a ponte de pedraria rústica, recebendo a rajada impetuosa de vento que vinha do mar sobre o rosto corado, o gosto de água salgada agarrando sua língua. Waverly degustou o sabor familiar por um momento, se permitindo dar uma olhada na cardentia vislumbrante que se espumava entre as ondas escuras, a florescência do mar crepitando brilho perolado refletido da lua cinzenta no céu. Mas ao invés de se deliciar com a visão da vastidão eterna de beleza eclipsante das águas ondulantes, ela se sentiu gelar de alto a baixo quando detectou corpos estranhos à léguas de distância, quase do outro lado da costa serpenteante.

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