Proposta Tentadora

Rebecca

Deixar minha cidade natal não foi uma decisão fácil, mas foi necessário. Minha paixão pela pintura sempre foi uma constante em minha vida. Meus pais, devotos fervorosos de uma vida simples e religiosa, nunca compreenderam essa paixão. Para eles, minha arte era uma distração tola.

"Você precisa se concentrar nas coisas importantes, Rebecca. Deus tem planos para você, mas a pintura não é um deles," meu pai dizia sempre, seu tom severo e inflexível. 

Minha mãe, embora mais compreensiva, também não conseguia enxergar além do horizonte limitado da nossa pequena cidade no interior de São Paulo.

Quando finalmente tomei a decisão de ir embora, estava assustada, mas determinada. Juntei todas as minhas economias, coloquei minhas poucas roupas e meus materiais de pintura em uma mochila e deixei uma carta para meus pais, explicando minha partida. 

Peguei o primeiro ônibus para São Paulo, minha cabeça cheia de planos e expectativas. Quando finalmente desci na estação de metrô mais movimentada da capital paulista, senti um misto de excitação e medo. Tudo era novo e assustador. 

Foi no meio desse turbilhão que fui abordada. Um homem se aproximou rapidamente, puxando minha mochila com força. Tentei resistir, mas ele era mais forte e determinado. Em segundos, ele desapareceu na multidão, levando não só minhas economias, mas também minhas esperanças.

Desesperada e sem saber o que fazer, prestei queixa sobre o roubo e fui orientada a procurar um Centro de Acolhimento. Aquilo estava tão longe de tudo o que imaginei encontrar, que resisti a seguir aquela orientação. Triste e decepcionada, apenas vaguei pelas ruas por horas, sem saber o que fazer ou para onde ir. 

O sol começou a se pôr e o frio da noite se instalou. Meus pés doíam e meu estômago estava vazio. Estava sozinha, perdida em uma cidade onde não conhecia nada. Foi quando encontrei o Centro de Acolhimento. Entrei, hesitante, o calor e a luz interior contrastando com a escuridão fria do lado de fora. Fui recebida por uma mulher de olhar gentil, que me guiou para dentro  e me ofereceu uma refeição quente.

Quando ela me entregou a tigela com sopa, a qual parecia muito apetitosa, sua atenção foi para o meu braço.

— Está machucada? — a mulher se assustou.

Expliquei o que tinha acontecido e que nem mesmo tinha prestado atenção ao ferimento em meu braço. 

— Provavelmente foi quando ele puxou a minha bolsa — concluí com tristeza.

— O Doutor Silveira faz trabalho voluntário aqui no Centro de Acolhimento. Vou pedir que ele verifique, pois não podemos deixar que infeccione ou algo assim.

Após terminar de comer, a mulher me levou até um corredor onde haviam algumas pessoas sentadas em cadeiras plásticas, as quais também estavam à espera de atendimento. Após aguardar a minha vez, entrei no pequeno consultório improvisado. 

— Você é nova aqui — O médico disse, mais uma constatação do que uma pergunta.

Concordei, minha voz falhando ao tentar explicar. 

— Cheguei hoje. Fui assaltada e não tenho para onde ir.

— Vai ficar tudo bem. Estamos aqui para ajudar. Amanhã podemos conversar mais, ver como podemos te ajudar a se reerguer.

Aquelas palavras foram um consolo inesperado. Pela primeira vez naquele dia, consegui sorrir.

Naquela noite, enquanto tentava dormir em um dos colchões espalhados pelo chão, pensei no médico que tinha me atendido. Eric Silveira. Além de jovem, o doutor Silveira também foi encantador e a tratou de maneira exemplar. Os seus pais teriam gostado de conhecer um homem tão bom quanto ele.

*******

.

Acordei no Centro de Acolhimento com uma sensação pesada no peito. Olhei ao redor, vendo rostos cansados, alguns ainda dormindo, outros já se preparando para o que quer que fosse a rotina deles. Não sabia o que faria agora. 

Levantei-me lentamente, tentando não fazer barulho. Meu estômago roncava de fome, mas a ansiedade era tão grande que mal conseguia pensar em comida. Ao caminhar pelo Centro de Acolhimento, ouvi algumas pessoas comentando sobre atividades socioeducativas. Pareciam ter uma rotina, um jeito de seguir em frente, mas eu ainda não conseguia absorver minha nova condição como pessoa em situação de rua.

Não queria ligar para meus pais. O orgulho me impedia de admitir que estava errada, que precisava de ajuda. Mas, ao mesmo tempo, sabia que não podia continuar assim. Sem dinheiro, sem conhecer ninguém que pudesse me ajudar.

Aproximei-me da coordenadora do centro de acolhimento,a mesma que me recebeu na noite anterior.

— Bom dia — disse ela, com uma voz suave. — Como está se sentindo hoje?

— Confusa — respondi, honestamente. — Não sei o que fazer. Não quero voltar para casa, mas não posso ficar aqui para sempre.

— Talvez ligar para sua família possa ajudar. Sei que é difícil, mas às vezes é o melhor a fazer.

Suspirei, lutando contra o orgulho e a vergonha. Eu não sabia se eles iriam me aceitar de volta. Meu pai deve ter ficado furioso quando percebeu o que eu tinha feito.

Com relutância, concordei. Ela me conduziu a uma pequena sala, oferecendo-me privacidade para fazer a ligação. A chamada pareceu durar uma eternidade antes que minha mãe atendesse.

— Mãe, sou eu, Rebecca — disse, tentando conter as lágrimas.

— Rebecca! — A voz dela era uma mistura de alívio e preocupação. — Onde você está?

— Estou em São Paulo. Estou em um Centro de Acolhimento. Fui assaltada quando cheguei e... eu não tenho para onde ir — expliquei, as palavras saindo aos tropeços. – Quero voltar para casa.

Houve uma longa pausa do outro lado da linha. 

— Seu pai está muito bravo, Rebecca. Ele disse que não te aceitaria de volta em casa.

— Por favor, mãe. Eu estou na rua. Não tenho ninguém. Preciso de ajuda.

Minha mãe suspirou, sua voz cheia de tristeza. 

— Eu queria poder fazer algo, mas não posso ir contra seu pai. Ele disse que, se você ligasse, era para pedir que não nos procurasse mais.

— Por favor, mãe… — implorei, mas a ligação já havia sido interrompida.

Desabei em lágrimas. Como tudo havia dado tão errado? Estava sozinha em uma cidade enorme, sem família, sem amigos, sem esperança. 

Ao sair da minúscula sala onde havia realizado a ligação, ainda tentando conter as lágrimas, esbarrei em alguém. O impacto me fez dar um passo para trás e, ao levantar o rosto, percebi que era o Dr. Silveira. 

— Rebecca, estava procurando por você — disse ele, sua voz calma e reconfortante.

Tentei limpar o rosto com as costas da mão, sentindo o calor do embaraço subir pelo meu rosto.

— Por quê? — perguntei, minha voz trêmula.

— Quero conversar com você a sós. Não se preocupe, não vou fazer mal algum.

Hesitei. Na noite passada, ele parecia belo e muito respeitoso, alguém em quem eu podia confiar. Mas agora, à luz do dia, ele passava uma impressão diferente. Havia algo nos seus olhos que me deixava nervosa, uma intensidade que eu não havia percebido antes.

— Eu... não sei se devo — respondi, tentando manter a voz firme.

Ele percebeu minha insegurança e fez um gesto conciliador. 

— Vamos tomar um café no restaurante ao lado? Podemos conversar lá, em um ambiente mais tranquilo. Prometo que é só uma conversa.

Olhei ao redor, tentando decidir se aquela era realmente uma boa ideia. Porém, logo me dei conta de que não podia recusar a ajuda que ele estava me oferecendo, especialmente quando minha situação era tão desesperadora.

— Está bem — concordei, ainda relutante. 

Ele sorriu novamente, um sorriso que parecia tentar dissipar minhas dúvidas. Caminhamos juntos até o restaurante ao lado, um lugar modesto mas acolhedor. Sentamos em uma mesa no canto, longe do barulho da rua. Um garçom trouxe dois cafés, que Eric pediu prontamente.

Enquanto mexia no meu café, tentando acalmar meus nervos, Eric começou a falar.

— Sei que você está passando por um momento difícil, Rebecca. Vi como você estava ontem à noite, e quero ajudar.

— Por que quer me ajudar? Mal me conhece — Perguntei de maneira direta, deixando explícita a minha desconfiança.

Ele deu de ombros, a sinceridade aparente em seu rosto. 

— Porque todos precisam de uma chance, especialmente quando estão no fundo do poço. 

— E como exatamente você pretende me ajudar?

Ele tomou um gole de café antes de continuar. 

— Sei que não tem para onde ir e acredito que voltar para casa não é uma opção. Mas tenho uma proposta para você, algo que pode mudar sua vida.

Meu coração acelerou, a curiosidade se misturando ao medo.

— Que tipo de proposta?

Eu jamais aceitaria algo que fosse ilegal ou ferisse a minha dignidade. Nem mesmo na situação em que estou, eu faria algo assim. A minha criação foi muito rigorosa e seria difícil abandonar tudo aquilo que vivi até hoje. 

Eric respirou fundo, seus olhos fixos nos meus. 

— Eu conheço alguém que precisa de ajuda, e você pode ser a pessoa certa para isso. Pode parecer estranho, mas essa oportunidade pode resolver muitos dos seus problemas atuais.

Fiquei em silêncio, tentando processar suas palavras. O que ele queria dizer com "ajuda"? E por que eu? Mas, ao mesmo tempo, sabia que estava sem opções. Se isso pudesse ser uma saída, talvez eu devesse ouvir.

— Conte-me mais — disse, finalmente.

Eric sorriu, parecendo bastante satisfeito com minha resposta.

— Vou explicar tudo. Mas, primeiro, quero que saiba que qualquer decisão será sua. Não há pressão. Só quero que você tenha todas as informações antes de tomar uma decisão.

Enquanto Eric explica tudo de maneira detalhada, porém sucinta, eu sinto o choque inicial ser substituído pelo interesse. Ele estava oferecendo segurança financeira e o apoio que preciso para realizar o meu sonho de me tornar uma artista reconhecida. 

A proposta feita por Eric era tentadora e naquele momento da minha vida, eu não sou forte o suficiente para recusar.

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